Narrativas costumam levar um personagem do ponto A para o ponto B. Um caminho percorrido que conduz um medroso em direção a um monstro ou faz alguém triste descobrir maneiras de lidar com os sentimentos. Na obra Entre Rinhas de Cachorros e Porcos Abatidos a autora Ana Paula Maia usa o narrar e os personagens para demonstrar o cotidiano. Trata-se de um mostrar muito longe do rotineiro e que expõe sem receio muitos aspectos da realidade brasileira.
Vidas comuns, narrativas diferentes
O livro é composto por duas histórias. Na primeira é retratado um abatedor de porcos e na segunda o protagonista é Erasmo Wagner, alguém que trabalha na coleta de lixo. Talvez o termo “protagonizar” não seja o mais adequado pois o leitor acompanha a rotina desses dois trabalhadores. Não há um grande objetivo fora do normal a ser alcançado ou um risco iminente a sobrevivência. Começo pela primeira história do Erasmo Wagner e já informo que ela é cheia de violência, absurdos e até mesmo mortes. Porém, a autora usa a linguagem para criar um narrador que encara cada acontecimento de forma normal.
Não é empregado um tom melancólico, sádico ou de deleite no livro. Como também não existem descrições explícitas da violência contida na rotina do abatedor de porcos. Há um olhar acostumado. E este olhar é o que mais me chamou a atenção na obra Entre Rinhas de Cachorros e Porcos Abatidos. A história é cheia de reviravoltas, não dá para prever o próximo acontecimento no virar das páginas, a violência as vezes partilha o mesmo espaço com um tom cômico macabro abrasileirado e mesmo assim o leitor sente que está vivendo somente mais uma segunda-feira do Erasmo Wagner.
A linguagem fornece as cores
Nas duas histórias contidas em Entre Rinhas de Cachorros e Porcos Abatidos a linguagem é a ferramenta que Ana Paula Maia usa com mais maestria, principalmente nos diálogos. Somente através da linguagem o leitor é capaz de imaginar costumes, a paisagem e as pessoas das duas regiões retratadas.
Há outro ponto em comum entre as duas histórias: o descaso com a vida e a desumanização daqueles que exercem um trabalho de pouco prestigio na sociedade. Enquanto na história do coletor de lixo essa percepção é demonstrada na fala e nas reflexões, na noveleta do abatedor de porcos é escancarada através de ações. Tanto as mortes violentas como também as ocorridas devido ao acaso são encaradas da mesma forma. Isso não ocorre porque existe uma presença maligna. Não ter apego a própria vida e a dos outros é uma das peças que movimenta a rotina. Na leitura me veio o pensamento: “Essa região é assim, sempre foi assim e sempre será assim”. Este retrato é perfeito para escrita seca e dura. Entretanto, a autora, de maneira orgânica, insere momentos reflexivos e contemplativos.
Os momentos
“A polícia só chega mesmo para fazer a ocorrência dos fatos perante os mortos. É bem mais simples lidar com eles, os mortos. Fazem a ocorrência, abrem uma investigação e depois vão para casa jantar. Aqui também se janta. Ao menos por aqui, a morte não tira a fome de ninguém. Aprende-se a lidar com ela desde cedo. Aqui os bueiros não têm tampas, ficam expostos e tragam o primeiro descuidado. Ao menos aqui funciona assim.” (trecho da primeira história)
“Esta cidade atinge a todos: aos meninos, as mulheres, aos órfãos, aos velhos. Esta cidade não faz acepção. Tudo se transforma em lixo. Os restos de comida, o colchão velho, a geladeira quebrada e um menino morto. Nesta cidade tenta-se disfarçar afastando para os cantos o que não é bonito de se olhar. Recolhendo os miseráveis e lançando-os às margens imundas bem distantes.” (trecho da segunda história).
Deus está nos detalhes
As duas histórias estão cheias de pequenos detalhes. Não são detalhes pensados para montar um figurino, acentuar uma característica da personalidade de um personagem e nem nada do tipo. É algo que flerta com o verossímil, dá mais corpo para a história e torna-se uma marca registrada da autora. São detalhes que encontramos nas nossas vidas, tais como:
Aquele cobrador de ônibus que sempre está com sono; aquele primo que vive falando que vai colocar aparelho nos dentes e nunca coloca; aquele varal que vive arrebentando e o marido cisma em dar outro nó em vez de comprar outro.
O livro está cheio destes detalhes, destes rabiscos feitos no cotidiano do viver.
Um é melhor que o outro
Na historia de Erasmo Wagner há a construção de um companheirismo, a trama é preenchida com vários acontecimentos e o final é emocionante. Na narrativa logo em seguida os mesmos elementos são usados, mas não causam o mesmo impacto. E o final dela me deu a sensação de crônica, de uma narrativa curta. Além disso, tem um trecho confuso, onde um personagem é deixado em um local e depois marca presença em um diálogo como se não tivesse saído do lugar.
Conheça, simplesmente conheça
Narrativas intrigantes onde a linguagem exerce fascínio, experimentação com o narrador, rotinas retratadas de pessoas presentes no nosso dia a dia e o absurdo envolto com o violento sem deixar de lado o reflexivo e o contemplativo. Tantos elogios em duas histórias tão curtas. Conheça Ana Paula Maia.
Nota
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Ficha Técnica
Nome: Entre Rinhas de Cachorros e Porcos Abatidos
Autor: Ana Paula Maia
Edição: 1ª
Editora: Record
Ano: 2009
Páginas: 160
ISBN: 9788501085283
Sinopse: Neste livro, a autora mostra o cotidiano de homens que lutam para sobreviver em meio à pobreza e a falta de esperança de uma vida melhor. O volume reúne duas novelas. A primeira, que dá nome ao livro, tem como cenário um subúrbio distante, onde apostar em rinhas de cachorros assassinos é o divertimento mais saudável para homens que passam o dia a abater porcos. Na segunda narrativa, O Trabalho Sujo dos Outros, o personagem principal recolhe o lixo numa cidade, na qual “tudo se transforma em lixo” e a riqueza da sociedade pode ser medida pela sua produção de lixo.