Eu nunca pensei que gostaria tanto de um livro de terror a ponto de dar 5 estrelas pra ele. Mas Hex, do holandês Thomas Olde Heuvelt, me surpreendeu de muitas maneiras e me fez ficar pensando na história mesmo depois de virar a última página.
Lançado no Brasil pela editora Darkside com tradução de Fábio Fernandes, o livro conta a história da pacata cidade de Black Spring, que há 350 anos vive sob a maldição da bruxa Katherine Van Wyler. Uma vez que a pessoa se muda para lá, não é possível mais sair ou passar muito tempo afastada, ou tem a mente invadida por pensamentos suicidas. Além disso, a bruxa circula pela cidade e sussurra a morte para quem chega perto demais para ouvir. Por isso, nada de mexer com a criatura de olhos e boca costurados e correntes atadas ao corpo.
Uma cidade com um segredo dessa magnitude faz de tudo para esconder essa maldição do resto do mundo, e, assim, população vive praticamente isolada. O que acontece em Black Spring fica em Black Spring.
À primeira vista, a história parece não ter nada muito diferente do que tem por aí: cidade pequena, bruxa, maldição, segredos. Mas o que me chamou a atenção logo de cara, além do clima de mistério, de que a qualquer momento vai dar algo errado, foi a forma casual com que a população trata a presença da bruxa. Uma das primeiras cenas do livro é uma família jantando em casa e a bruxa parada num canto da sala, como se fosse um objeto de decoração.
O autor tenta dar a impressão de que a maldição não é nada demais e que as pessoas que moram na cidade já se acostumaram com essa excentricidade. Mas é claro que não seria nada tão simples assim. Enquanto eu lia, especialmente no início, estava achando curiosa toda essa banalidade em torno da presença de Katherine, mas alguma coisa no fundo da minha mente apitava “não pode ser, tem alguma coisa errada aí”. E esse livro já merece uma chance só por provocar esses sentimentos desde as primeiras páginas; isso não é para qualquer obra.
Vários pontos de vista
A narração, feita em terceira pessoa, acompanha o ponto de vista de vários moradores da cidade, uma decisão acertada para mostrar diversos ângulos da história. O livro não visa dar respostas prontas, mas faz pensar. Ninguém ali é o que parece ser, nem mesmo a bruxa.
O que mais gostei desse aspecto do livro é como minha opinião sobre as pessoas e os acontecimentos foi mudando ao longo da leitura, e isso se deve muito à variação dos pontos de vista. É quase como se a cidade contasse a história, e não apenas uma pessoa.
O sobrenatural e o tecnológico
Um aspecto muito interessante de Hex é a mistura de elementos sobrenaturais e tecnológicos. A história se passa em 2012 e fiquei muito contente ao perceber que o autor não ignorou os smartphones e a internet para desenvolver a narrativa.
Para esconder a bruxa dos Forasteiros (pessoas de fora de Black Spring), toda a população é obrigada a usar um aplicativo para relatar dia, horário e local onde avistou Katherine. Além disso, há uma equipe que monitora todas as câmeras que existem na cidade para garantir que tudo esteja em ordem. Durante 24 horas por dia, não se perde a bruxa de vista.
“Isso é o quanto basta para as pessoas mergulharem na insanidade: uma noite a sós consigo mesmas e o que mais temem.”
Em Hex, o controle é pelo medo
Mesmo que na superfície a narração da história deixe transparecer a sensação de que todas as pessoas estão resignadas com a maldição e com a constatação de que elas jamais sairão de Black Spring, as entrelinhas vão mostrando que não é bem assim. Logo fica claro que liberdade não é a palavra da vez na cidade.
Com a desculpa de manter o segredo da maldição e evitar que pessoas se machuquem como aconteceu no passado, a internet é limitada, as visitas precisam ter hora marcada e há um clima de paranoia e medo que domina a cidade como um todo. Esse é um prato cheio para o controle. Até mesmo aspectos religiosos são abordados no livro: “líderes” religiosos se aproveitam do medo gerado pela bruxa para condenar tudo o que é diferente.
Não pode ter redes sociais? É pelo bem maior. Não é possível dar um passo sem que a central de controle tenha ciência? É para a segurança de todos. As pessoas são punidas de formas brutais se andarem fora da linha? Está na lei e precisamos cumpri-la. Mas somos todos cidadãos de bem.
Quem é mal?
Quando um grupo de adolescentes começa a questionar esse status quo e tenta subverter a aparente ordem, muitas dessas questões começam a ficar evidentes — e as coisas começam a dar errado e a sair do controle. Em Hex, o tempo todo os personagens falam da maldição da bruxa e do perigo que ela representa, mas não enxergam o mal que há neles mesmos.
Essa é uma história sobre a capacidade do ser humano de ser maldoso sob a justificativa de que não tem outro jeito. Pior: muitas vezes são maldosos sem enxergar que o são, e são poucas as pessoas corajosas o suficiente para bater de frente com o que foi estabelecido há séculos e continua em evidência. Conhecer a história de Katherine e por que ela amaldiçoou a cidade torna essa constatação ainda mais evidente.
Não é que justifique a maldade que ela pratica há mais 300 anos em busca de vingança, mas a realidade é mais complexa que isso. Não tem preto no branco, bons versus maus.
Mas será mesmo que a violência, seja ela qual for, é válida só porque alguém “atacou” primeiro? A verdade é que essas pessoas vivem num ciclo de paranoia e violência maquiado com aparente normalidade, mas que basta um questionamento ou uma ação fora da caixa para tudo ruir.
Hex é uma história que faz pensar e levanta questionamentos muito importantes sobre quem somos enquanto humanidade. Para quem, assim como eu, quer se aventurar pelo terror em um terreno “seguro” e sem muita chance de sustos e medo, essa leitura é ideal. Mais do que uma história sobrenatural sobre uma maldição, esse livro é o retrato do que podemos ser quando as linhas da moralidade se afrouxam pelo “bem maior”.
Nota
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Ficha Técnica
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Nome: Hex
Autor: Thomas Olde Heuvelt
Tradução: Fábio Fernandes
Edição: 1ª
Editora: Darkside
Ano: 2018
Páginas: 368
ISBN: 9788594540690
Sinopse: Toda cidade pequena tem segredos. Mas nenhuma delas é como Black Spring, o pacato vilarejo que esconde uma bruxa de verdade do resto do mundo. Os moradores sabem que não se deve mexer com ela. Assim como aconteceu com as bruxas de Salem, Katherine Van Wyler foi condenada à fogueira. Mas a feiticeira sobreviveu e continua rondando a cidade, mais de trezentos anos depois. Seus olhos e sua boca foram costurados, para impedir que ela lance maldições fatais.
Os habitantes de Black Spring controlam seu passos através do HEXApp, um aplicativo de celular, 24 horas por dia. A vigilância constante aumenta o clima de paranoia na cidade, enquanto um grupo de adolescentes desafia as regras e resolve zoar a bruxa para ver se ela é tão perigosa quanto dizem…