Conto de julho de 1940, “O Delírio” foi o primeiro conto de Clarice cujo personagem principal é um homem. De nome desconhecido, o personagem desponta a história em delírios causados por uma febre que o incapacita de raciocinar – e de diferenciar o real do surreal.
A introdução a este conto é, no mínimo, curiosa:
“O dia está alto e forte quando se levanta. Procura os chinelos embaixo da cama, tateando com os pés, enquanto se aconchega no pijama de flanela. O sol começa a cobrir o guarda-roupa, refletindo no chão o largo quadrado da janela.”
Aparentemente, parece ser um conto que não terá nada de incomum. Mas, novamente, Clarice nos pega de surpresa, pois alguns parágrafos depois somos surpreendidos pelo início do delírio febril do personagem.
“Afasta-se com desgosto. Volta para dentro, olha a cama desfeita, tão familiar após a noite insone… A Virgem-Mãe agora se destaca, nítida e dominadora, sob a luz do dia. Com as sombras, ela também um vulto, é mais fácil descrer. Vai andando devagar, arrastando as pernas moles, levanta os lençóis, bate no travesseiro e mete-se lá dentro, com um suspiro. Torna-se tão humilde diante da rua viva e do sol indiferente… Na sua cama, no seu quarto, os olhos fechados, ele é rei.”
Os delírios começam de maneira leve, de modo que de início é possível achar que se trata apenas da maneira como o personagem descreve o mundo à sua volta lucidamente.
Aos poucos, os delírios vão se agravando e ficando cada vez mais abstratos, de modo que fica difícil distinguir, em certo ponto, o que é real e o que não é, um verdadeiro mergulho na mente febril do personagem.
São delírios tão intensos que o homem começa a confundir os próprios cílios com aranhas, e a luz do sol com algum monstro dourado.
“É verdade que se abaixar as pálpebras, a aranha recolhe as unhas e reduz-se a uma nódoa vermelha e móvel. Mas é uma questão de honra. Quem deve se retirar é o monstro. Grita e aponta:
– Saia! Você é de ouro, mas saia!
A moça morena, de vestido claro, levanta-se e diz:
– Coitadinho. A luz está incomodando.”
Ao que tudo indica no conto, este delírio demora horas e horas a passar, indo e vindo em imaginações distorcidas daquilo que o homem vê e não é capaz de entender devido à febre causada por alguma doença não mencionada.
Entretanto, em determinado ponto do conto, o personagem, após descansar, volta a si mesmo e repara que não se lembra de onde está nem quem são aquelas moças que estão cuidando dele. Começa a forçar a própria memória para dar algum sentido a toda aquela situação, mas é informado por uma delas, a afilhada – e também causadora de desejos lascivos no personagem – da dona da pensão que está cuidando dele, que passou por um delírio febril durante horas a fio.
Mas, afinal, por qual motivo este conto é tão interessante?
O Delírio da Realidade Bíblica
Não é incomum encontrar referência bíblicas em histórias de Clarice, e isso também acontece neste conto.
Durante o período em que está delirando de febre, o personagem descreve muita coisa que vê de maneira bíblica, como na parte em que diz ver a “Virgem-Mãe”, e na parte em que ele descreve como a terra se vinga dos seus “seres criados”:
“Depois ela [a terra] se vingou, porque os seres criados sentiam-se tão superiores, tão livres que imaginaram poder passar sem ela. Ela sempre se vinga.”
São delírios reflexivos com um toque de bíblico, o que dá um charme todo especial a este conto de 9 páginas. É uma verdadeira imersão curiosa e fantástica em uma mente delirante, mas que, mesmo em seus momentos insanos, cria uma realidade paralela muito influenciada por referências cristãs.
Além disso, o momento em que o personagem volta a si mesmo mostra como ele vai gradualmente voltando à sua sanidade mental. Não acontece repentinamente de ele acordar renovado, muito pelo contrário: ele acorda bem, mas confuso, e vai aos poucos voltando ao normal. Isso dá uma sensação de real àquilo, como se aquela situação tivesse realmente acontecido, ou pudesse acontecer. Logo, por mais surreal que o conto pareça, ele é palpável. Afinal, quem não poderia delirar igual ao personagem em meio a uma febre alta e depois ir voltando aos poucos ao normal? Qualquer um poderia.
Sobre a autora
Clarice Lispector, nascida Chaya Pinkhasovna Lispector (Chechelnyk, 10 de dezembro de 1920 — Rio de Janeiro, 9 de dezembro de 1977) foi uma escritora brasileira, nascida na Ucrânia. Autora de linha introspectiva, buscava exprimir, através de seus textos, as agruras e antinomias do ser. Suas obras caracterizam-se pela exacerbação do momento interior e intensa ruptura com o enredo factual, a ponto de a própria subjetividade entrar em crise.
De origem judaica, terceira filha de Pinkouss e de Mania Lispector, a família de Clarice sofreu perseguição aos judeus durante a Guerra Civil Russa de 1918 a 1921. Seu nascimento ocorreu em Chechelnyk, enquanto percorriam várias aldeias da Ucrânia antes da viagem de emigração ao continente americano. Chegou no Brasil quando tinha dois anos de idade.
A família chegou a Maceió em março de 1922, sendo recebida por Zaina, irmã de Mania, e seu marido e primo José Rabin. Por iniciativa de seu pai, à exceção de Tania – irmã, todos mudaram de nome: o pai passou a se chamar Pedro; Mania, Marieta; Leia – irmã, Elisa; e Chaya, Clarice. Pedro passou a trabalhar com Rabin, já um próspero comerciante.
Clarice Lispector começou a escrever logo que aprendeu a ler, na cidade do Recife, onde passou parte da infância. Falava vários idiomas, entre eles o francês e inglês. Cresceu ouvindo no âmbito domiciliar o idioma materno, o iídiche.
Nota
Garanta a sua cópia de O Delírio – Todos os Contos e boa leitura!
Ficha técnica
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Nome: Todos os Contos
Autor: Clarice Lispector
Editora: Rocco
Ano: 2016
Páginas: 656
ISBN-13: 9788532530240
ISBN-10: 8532530249
Sinopse:
Autora de romances e contos que figuram entre os mais emblemáticos da literatura brasileira, Clarice Lispector é considerada uma das mais importantes escritoras do século XX. Sua popularidade alcançou níveis surpreendentes nas últimas décadas, especialmente após o fenômeno da internet, mas sua figura e sua obra seguem exercendo sobre leitores o mesmo e fascinante estranhamento que causaram desde sua estreia literária, em 1943.
Nesta coletânea, que reúne pela primeira vez todos os contos da autora num único volume, organizado pelo biógrafo Benjamin Moser, é possível conhecer Clarice por inteiro, desde os primeiros escritos, ainda na adolescência, até as últimas linhas. Essencial para estudantes e pesquisadores, para fãs de Clarice Lispector e iniciantes na obra da escritora, Todos os contos foi lançado nos Estados Unidos em 2015, figurando na lista de livros mais importantes do ano do jornal The New York Times e ganhou importantes prêmios, como o Pen Translation Prize, de melhor tradução. Agora é a vez de os leitores brasileiros (re)descobrirem por completo esta contista prolífica e singular.