Blade Runner, adaptação cinematográfica do livro Androides Sonham com Ovelhas Elétricas, consegue fazer um leitor de Kafka sentar em uma mesa com um fã de Star Wars e eles vão conversar por horas. Quem assistiu ao filme de Ridley Scott, muito provavelmente, fez isso mais de uma vez. E a nova adaptação cinematográfica de Denis Villeneuve é meio controversa de uma maneira engraçada: quem critica usa linhas e quem elogia se explica com textos.
Ainda há algo para falar?
Esta obra já não foi analisada, estudada e dissecada por horas e horas em podcasts, vídeos, entrevistas e debates? E o livro? Ele agrega algo? O filme superou a matriz de suas ideias? Os androides sonham ou não sonham com ovelhas elétricas?
Dizer que o livro é pior ou melhor que a adaptação cinematográfica é um pensamento preguiçoso. O clássico da ficção científica de Phillip K. Dick se sustenta por si só, conversa com as adaptações feitas pelo cinema e envolve o leitor em seu universo.
Envolvido
Obras, independes da mídia a qual foram desenvolvidas, gostam de conquistar o leitor pelo deslumbramento. Criam tecnologias com alto poder bélico, concebem aventuras em universos completamente diferentes do planeta terra ou maximizam conceitos já existentes na nossa sociedade. Philip K. Dick não usa o deslumbrar, ele prefere envolver o leitor em sua criação.
A visão futurista de uma sociedade controlada por grandes corporações não é explicada pelo narrador ou por qualquer personagem. O autor, tem tanta intimidade com seus personagens e com seu universo que envolve facilmente o leitor para dentro da sua obra ficcional. As tecnologias e os acontecimentos que levam a um segundo milênio pós-apocalíptico são inseridos em detalhes sutis na trama e soam com naturalidade na boca dos personagens.
Como ele consegue fazer isso?
Hoje, no ano de 2019, todo mundo conhece o 4G dos celulares. Muitos sabem o que essa tecnologia faz, sabem identificar se está bom ou ruim, mas não conseguem replicá-lo ou explicar o seu funcionamento em detalhes. Para um neurocirurgião ou um engraxate o 4G simplesmente existe, é algo natural. No livro, os personagens transmitem essa naturalidade com animais sintéticos, uma divindade que é um software, carros voadores e androides. Esse artifício, essa habilidade de Philip K. Dick de criar a vida cotidiana e a rotina dos personagens nesse mundo futurista envolve o leitor. Ao ler o leitor não se deslumbra, ele praticamente transita pela visão futurista concebida no livro. Como leitor, viver essa rotina é um ótimo exercício de imersão. Entretanto, Deckard (protagonista) tem um desejo peculiar e a sua rotina muda para nunca mais ser a mesma.
A grande diferença entre livro e filme
No filme de Ridley Scoot, Deckard precisa caçar os androides. Isso é o que faz prosseguir, conduzindo toda a trama. Desta busca há questionamentos sobre o que é ser humano, a perca da sensibilidade pela sociedade, o homem com complexo de deus e autodescoberta.
No livro todos esses temas também são debatidos, mas o autor acentua um ponto que a obra literária tem só para si. Deckard quer comprar uma ovelha elétrica de carne e osso e não uma sintética. Em um primeiro momento enxerguei esse desejo como uma tentativa de ter status. Isso é uma interpretação possível, porém, há sempre outra camada para atravessar.
(SPOILER)
Ter controle sobre algo vivo também pode ser uma prova de existência? Deckard não se sente vivo na sua rotina e decide não ter só uma ovelha elétrica e sim uma de verdade. O dono da grande corporação possui androides eficientes para o trabalho em Marte, mas evolui a sua máquina para algo cada vez mais vivo, mais humano. A relação de poder do androide Roy Batty com o humano Isidore e de indiferença com os seus semelhantes. Essa é uma visão, e a cada nova leitura podem surgir outras. O livro não trabalha com certezas, incentivando o leitor a absorver a obra de várias formas.
(FIM DO SPOILER)
Deckard é ou não é um Androide?
Essa pergunta marca muitos debates sobre a adaptação cinematográfica. Ridley Scott trabalha de forma sutil com esse mistério no filme. No livro, Phillip K. Dick sobe um pouco a escala. Na narrativa o narrador cola nos personagens (humano ou androide) e é atento aos sentimentos deles. Esse humanizar sempre cria uma bela confusão na cabeça do leitor. O autor mostra alguém com dúvidas, conflitos, ideias e sentimentos e a perguntas surgem: “Ele é mesmo um androide? Deckard é tão diferente deles? Deckard tem empatia pelos androides porque é um deles?”. Por um momento parece que a obra responde a todas essas perguntas. Mas, é só começar a pensar um pouco mais, que novas perguntas surgem com novas teorias.
Muito com pouco? Qual é o segredo?
Ecossistema que entra em colapso; um mundo pós-apocalíptico; androides; animais sintéticos; carros voadores; um deus, um produto que promove uma religião; teste de Voight-Kampff, controle das emoções e muitas outras coisas em menos de 300 páginas. Como? Isso é possível?
Dick consegue porque cada palavra, cada trecho e cada detalhe da rotina dos personagens é importante. Estou acostumado a ler obras que se concentram em descrever ou tentar explicar o “grande” (universo) para depois se aprofundar no “pequeno” (personagem). No livro Androides Sonham com Ovelhas Elétricas há uma preocupação constante em se aprofundar em algum personagem, e o universo, na maioria das vezes mostrado em lugares fechados, surge de forma natural na rotina desses personagens.
Ler o livro de Phillip K. Dick é se aprofundar nos elementos do filme, é mergulhar em um universo que se torna plausível devido ao impecável trabalho do autor e um convite a criar suas próprias conclusões e teorias sobre um clássico da ficção científica.
Leia, tenha um novo olhar para os filmes. Desfrute da matriz de um eterno clássico.
Nota
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Ficha Técnica:
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Nome: Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?
Autor: Philip K. Dick
Tradução: Ronald Bressane
Edição: 1ª
Editora: Aleph
Ano: 2014
Páginas: 272
ISBN: 9788576571797
Sinopse: Philip K. Dick teve diversos livros adaptados para o cinema, mas nenhum foi tão aclamado e tão simbólico para sua época quanto Blade Runner: O Caçador de Androides, de Ridley Scott, que foi inspirado em Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?.
No romance, o planeta Terra foi devastado por uma guerra atômica e grande parte da população sobrevivente emigrou para os mundos-colônias, fugindo da poeira radioativa que extinguiu inúmeras espécies de animais e de plantas. Toda criatura viva se torna, então, um objeto de desejo para aqueles que permaneceram, mas esse é um privilégio de poucos. Para a maioria que não pode pagar por um espécime autêntico, empresas começam a desenvolver réplicas eletrônicas e incrivelmente realistas de pássaros, gatos, ovelhas… e até mesmo de seres humanos.
Rick Deckard é um caçador de recompensas. Seu trabalho: eliminar androides que vivem ilegalmente na Terra. Seu sonho de consumo: substituir sua ovelha de estimação elétrica por um animal de verdade. A grande chance aparece ao ser designado para perseguir seis androides fugitivos de Marte. É quando Rick percebe que a linha que separa humanos e androides não é tão nítida como acreditava.
Imperdível para os fãs de cinema e um clássico da ficção científica, a edição da Aleph leva ao leitor uma série de extras inéditos em português: uma carta emocionante de Dick aos produtores de Blade Runner, na qual enaltece o filme e profetiza seu sucesso, a última entrevista concedida pelo autor, publicada na revista The Twilight Zone na ocasião do lançamento do filme, e um posfácio escrito pelo jornalista, escritor e tradutor desta edição, Ronaldo Bressane, que faz uma análise crítica da obra e traça paralelos entre filme e livro.