Pequenos incêndios por toda parte – Celeste Ng

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Recorte da capa do livro. Ilustração em visão aérea de uma quarteirão residencial, é possivel notar uma casa de dois andares e garagem, uma rua em sua frente e outra atras, cercada por gramados e algumas árvores. Em primeiro plano o titulo em branco:
Recorte da capa do livro. Ilustração em visão aérea de uma quarteirão residencial, é possivel notar uma casa de dois andares e garagem, uma rua em sua frente e outra atras, cercada por gramados e algumas árvores. Em primeiro plano o titulo em branco: "Pequenos incêncios por toda parte".

As coisas nem sempre são o que parecem. Pontos de vista, vivências, objetivos: tudo pode influenciar a forma como se vê uma determinada situação. O fogo, ao mesmo tempo em que é acolhedor e aquece, também pode queimar. Assim como a aparente ordem pode esconder segredos e desejos reprimidos.

A complexidade das relações humanas, especialmente as familiares, é a força motriz do livro “Pequenos incêndios por toda parte”, de Celeste Ng. A obra, que é o segundo romance da autora, explora o encontro de duas famílias muito diferentes: Mia Warren é artista e mãe solteira com um passado misterioso, e aluga uma casa na idílica comunidade de Shaker Heights; o imóvel pertence aos Richardson, típica família-modelo que exala perfeição, com um casal bonito e bem sucedido, dinheiro e quatro filhos invejados e desejados.

De forma impressionante, Celeste Ng consegue explorar esses opostos, criando uma trama complexa e envolvente. A história começa com o incêndio da casa dos Richardson. Não se sabe o que aconteceu, mas todos desconfiam que a responsável foi uma das filhas do casal, Izzy. E, para solucionar o caso, a autora cria uma trama de narrativas aparentemente desconexas, mas que, ao longo da leitura, vão fazendo sentido e ajudando a montar o quebra-cabeça.

Ao contrário do que se possa imaginar a princípio, a autora não foca no ponto de vista da suspeita. Ela lança mão das histórias e vivências dos personagens ao redor — os filhos de Elena e Bill Richardson, Pearl, filha de Mia, e até mesmo o próprio casal. Tal escolha gera ainda mais expectativa sobre o que está por vir. Ao termos contato com a visão de outras pessoas sobre Izzy, sempre paira a dúvida se tais pontos de vista são confiáveis.

Necessidade de pertencimento 

Já no início da leitura, fica clara a diferença do estilo de vida dos Richardson e de Mia e Pearl. As duas chamam a atenção por subverterem e norma de Shaker Heights, um lugar planejado em todos os seus detalhes, que parece não ter nada (nem ninguém) fora do lugar. A princípio, é o local perfeito para se construir uma família. Mas a aparente perfeição, nas entrelinhas, sempre parece ser questionada, e somente ao longo da leitura que vamos entendendo onde estão as rachaduras da aparente comunidade perfeita.

Para Pearl, adentrar aquele lugar com cara de casa é um choque de novidade. Ela e a mãe vivem se mudando e não ficam mais do que alguns meses no mesmo lugar. A menina sente falta do senso de pertencimento, de criar raízes em um lugar.

Ela vê nos Richardson o exemplo do que queria para si: eles não apenas moram em Shaker Heights; eles SÃO aquele lugar. Pelo olhar dela, enxergamos um pedacinho do paraíso, o fogo como aconchego. Mas esse é apenas um ponto de vista.

Izzy, como vai ficando claro à medida que a leitura avança, não se sente parte daquele lugar e nem daquela família. Ela aparenta o tempo todo o desejo de abandonar a aparente perfeição, pois essa tal perfeição não a alcança; pelo contrário: o fogo a queima e a espanta.

Com essa oposição, logo fica claro para quem está lendo que o sentimento de pertencimento vai muito além do local onde se está. É uma camada a mais de complexidade que torna a leitura muito rica.

Presente e passado

Celeste Ng trabalha muito bem a alternância de pontos de vista e da linha do tempo. As transições são feitas de forma muito orgânica e não fica confuso, mesmo com tantas histórias paralelas sendo contadas.

A autora acerta no uso do narrador em terceira pessoa onisciente, uma vez que são “pequenos incêndios” (como indica o título) que acontecem em diferentes momentos do tempo e do espaço que, juntos, causam o “grande incêndio” que abre a história. Fica claro, dessa forma, que os acontecimentos não podem ser entendidos como sendo causados por apenas um fator. São muitas histórias, muitas vivências acumuladas ao longo do tempo que vão formando a grande trama que é a vida e as relações humanas.

Temas atuais

A trama de “Pequenos incêndios por toda parte” se passa nos anos 1990, mas a autora não deixa de levantar temas que são relevantes ainda hoje. Celeste Ng é filha de chineses, e esse aspecto está presente nos seus dois livros. No caso desse, ela aborda o racismo por meio da história de Bebe, moça chinesa amiga de Mia que, em um momento de desespero, abandonou a filha recém-nascida na porta do Corpo de Bombeiros, mas depois se arrepende e quer ter de volta a guarda da menina (que está em processo de adoção por um casal amigo dos Richardson).

Esse tema é abordado de forma muito inteligente pela autora, pois nos faz repensar preconceitos e certezas ao colocar determinadas falas no boca dos personagens. A forma como a trama é conduzida nos faz questionar o tempo todo quem tem razão, uma vez que ambos os “lados” parecem ter argumentos convincentes para apresentar.

Outro tema importante abordado é o papel da mulher na família. Nas partes da história que são contadas sob o ponto de vista de Elena Richardson, fica evidente o quanto ela abriu mão de suas realizações em prol de viver a “vida perfeita”. Ela só saiu de Shaker Heights para fazer faculdade, e não pensou duas vezes em voltar pra comunidade e criar sua família ali. Mas, em alguns momentos, ela deixa transparecer a frustração de não ter crescido na carreira de jornalista e se questiona se valeu mesmo a pena.

Por conta disso, Mia causa em Elena uma verdadeira fascinação. Como aquela mulher consegue viver à margem de regras e da ordem? Elena parece sentir inveja dessa liberdade, ao mesmo tempo que se espanta, uma vez que ela não sabe o que é viver fora da organização que a comunidade em que ela nasceu e cresceu oferece.

Diante de tantas histórias e tanta complexidade, “Pequenos incêndios por toda parte” nos faz pensar que há muito por trás dessa fachada dos bairros mais planejados e das famílias mais perfeitas. O ser humano é complexo e, por isso mesmo, o ato de viver não pode ser totalmente enquadrado na ordem e no controle, pois não o temos o tempo todo. A leitura é uma ótima oportunidade para questionar: o que a “ordem” esconde?

Nota

5 selos cabulosos

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Ficha Técnica

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Nome: Pequenos incêndios por toda parte
Autora: Celeste Ng
Tradução: Julia Sobral Campos
Edição:
Editora: Intrínseca
Ano: 2018
Páginas: 416
ISBN: 9788551003121
Sinopse: Um encontro entre duas famílias completamente diferentes vai afetar a vida de todos.

Em Shaker Heights tudo é planejado: da localização das escolas à cor usada na pintura das casas. E ninguém se identifica mais com esse espírito organizado do que Elena Richardson.

Mia Warren, uma artista solteira e enigmática, chega nessa bolha idílica com a filha adolescente e aluga uma casa que pertence aos Richardson. Em pouco tempo, as duas se tornam mais do que meras inquilinas: todos os quatro filhos da família Richardson se encantam com as novas moradoras de Shaker. Porém, Mia carrega um passado misterioso e um desprezo pelo status quo que ameaça desestruturar uma comunidade tão cuidadosamente ordenada.

Eleito nos Estados Unidos um dos melhores livros de 2017 por veículos como Entertainment Weekly, The Guardian e The Washington Post, Pequenos Incêndios Por Toda Parte explora o peso dos segredos, a natureza da arte e o perigo de acreditar que simplesmente seguir as regras vai evitar todos os desastres.