“Peça ao sr. Dickens para consertar o gerador”, pede a mãe da narradora. À primeira vista, parece se referir a um homônimo, talvez um parente do escritor inglês. Só que não é o caso no romance O Sr. Pip.
Matilda é uma menina que vive um período difícil da história de seu país, no início dos anos 1990. Há uma guerra civil em curso e os professores foram embora da ilha onde ela mora.
As crianças ficam sem aula e a escola é tomada pelas trepadeiras. Até que o único morador branco que restou, o sr. Watts (apelidado de Olho Arregalado ou Popeye, no filme), se oferece para ensinar os meninos e meninas que restaram – os que não morreram nem fugiram do conflito, nem se juntaram aos rebeldes.
O primeiro dia é de faxina – e ao final do dia, ele diz aos alunos, de idades variadas, que os apresentará “ao sr. Dickens”. As crianças se entreolham, imaginando onde está esse outro homem branco que eles não conhecem – e contam a novidade aos pais, que por sua vez enviam pedidos similares ao da mãe da narradora.
No dia seguinte, a turma descobre que o tão esperado homem branco desconhecido é na verdade um escritor, e não alguém com recursos materiais ou capacidade técnica para resolver seus problemas imediatos.
O conhecimento do mundo através da literatura em O Sr. Pip
A classe, a princípio, se sente decepcionada por não ver o professor improvisado acompanhado de outro homem branco. Olham pelas janelas, esperando vê-lo surgir a qualquer momento.
Mas o que o misterioso professor oferece a essas crianças é muito mais valioso do que que qualquer recurso material que porventura alguém desconhecido poderia trazer: um meio de estimular sua imaginação através da leitura de uma obra literária e a consequente descoberta de um mundo além daquela ilha.
Capítulo a capítulo, a classe convive com o personagem principal da obra Grandes Esperanças, de Charles Dickens. E para alguns alunos, como Matilda, Pip torna-se um amigo com quem se pode dividir o dia a dia, ampliar os sonhos e concepções do mundo.
A dialética entre o desconhecido e o tradicional
O alvoroço causado pela proposta pedagógica do Sr. Watts faz com que a comunidade se mobilize e leve para a sala de aula as visões de mundo dos adultos da ilha, por mais simplórias que pareçam. São histórias sobre sobrevivência, religiosidade e sexualidade, transmitidas de maneiras peculiares em O Sr. Pip.
O embate inicial se dá em torno do conflito entre Dolores, mãe da personagem principal, e o professor. O conflito surge entre a visão religiosa e a literária, quando a mãe proclama a realidade da existência de Deus e do Diabo, enquanto o mestre faz o mesmo com os personagens da história. Watts, no entanto, tem uma outra compreensão da materialidade daqueles que defende.
Em certa ocasião, pede às crianças que digam para si mesmas seus nomes. Qual o propósito disso? Muito mais tarde, a personagem/narradora irá descobrir que essa sensação é similar à que um autor sente quando procura a “voz” de seu personagem.
As relações aluno-professor
Além da descoberta da literatura e do mundo por meio dela, O S. Pip se trata de uma relação muito especial: a de aluno e professor. Explicada na obra de Joseph Campbell, O herói de mil faces, o encontro entre ambos faz parte da jornada do herói.
Vemos isso em Sociedade dos Poetas Mortos e em Os Escritores da Liberdade em relação a professores que usam obras literárias para ampliar a visão de mundo de seus alunos, por mais ignorantes que sejam ou mais isolados que estejam.
Eurocentrismo
Há um ponto, entretanto, a se levantar. Quando pensamos em cultura no Brasil, levamos em consideração uma visão eurocêntrica, com tendência estadunidense na atualidade. Ao pensarmos em cinema, por exemplo, a primeira coisa que nos vem à cabeça é o cinema de Hollywood, a premiação do Oscar, os atores de língua inglesa.
Quantos de nós prestamos atenção no nosso próprio cinema, e em festivais e premiações como os de Berlim, Cannes, Gramado?
Se olharmos para o que é considerado “literatura universal”, veja a concentração de obras anglófonas nessa categoria a partir do século 16, e muito mais aceleradamente a partir do século 19.
Será que não há culturas e obras dignas de serem conhecidas, de autores africanos, asiáticos e americanos de outros idiomas?
E isso nos leva à citação de abertura. O enredo se passa na região da Papua Nova Guiné, no Pacífico Sul, próximo da Austrália. Quanto da cultura nativa dessas ilhas não se perdeu com a colonização? E torna-se justificável o desconhecimento por parte das crianças e de seus pais de quem fosse Charles Dickens.
Entretanto, em O Sr. Pip vemos com Dolores, a mãe de Matilda, o quanto a cultura judaico-cristã se inseriu na comunidade local e substituiu o sistema de crenças originalmente existente. Se não houve genocídio físico, em certa medida, houve genocídio cultural.
Exploração, violência e paralelos com o período colonial brasileiro
A história se passa no início dos anos noventa e a região vive da exploração do cobre, capitaneada pelos brancos, que se vão após o início do conflito. Os “inconfidentes” da região são apelidados de rambos por Matilda, apesar de não passarem de garotos maltrapilhos que têm uma pausa da guerrilha em um momento em que invadem a aldeia e têm a oportunidade de ouvir histórias.
Seus adversários, os “peles vermelhas”, são os que têm mais recursos – helicópteros, por exemplo – e colocam a aldeia – e o sr. Watts – em saia justa quando o exemplar de Grandes Esperanças desaparece.
O abandono da ilha pelos brancos e o isolamento militar dela lembram, em certa medida, a decadência do período mineiro no Brasil e o consequente abandono do Estado de Minas entre o final do século 18 e começo do século 20.
A escassez de recursos levou a um aumento da religiosidade e uma tendência ao isolamento, contrastado pelas aulas de Popeye, que levava as crianças a sonharem com um mundo diferente.
E, em certa medida, há um personagem comparável a Tiradentes. Não na mitologia que se criou em torno dele no início do período republicano, mas como bode expiatório.
O poder que um livro exerce
Na jornada de Eli (O Livro de Eli, Denzel Washington), ele se depara com Carnegie (Gary Oldman), que reconhece o poder que a obra que o mensageiro leva tem em suas palavras. E tenta tomá-lo para si, pois sabe que o tipo de conhecimento que aquele livro contém lhe dará poder sobre os demais.
As maiores obras, se tiverem um guia adequado, poderão empoderar quem as lê, tirando vendas que nem sabíamos que tínhamos. Algumas podem não nos fazer atravessar madrugadas, nem nos agradar à primeira vista, mas podem reverberar pelas nossas vidas de maneiras inesperadas.
O Sr. Pip é um livro que nos convida a ler outro livro, no caso, Grandes Esperanças, de Charles Dickens. E a descobrir como e porquê afetou tão intensamente a vida da narradora e de seu mestre. Você conhece outras obras que mencionam livros, que os levaram a ler esses textos citados? Coloque nos comentários.
Nota
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Ficha Técnica
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Nome: O Sr. Pip
Autor: Lloyd Jones
Edição: 1ª
Tradução: Léa Vivieros de Castro
Editora: Rocco
Ano: 2007
Páginas: 272
ISBN: 9788532522436
Resumo:Ambientado na Papua Nova Guiné nos anos de 1990, em plena guerra civil, o romance, contado sob a perspectiva de Matilda, de 13 anos, mostra como um personagem de um dos grandes escritores do século XIX, Charles Dickens, é capaz de mudar a vida da jovem e de toda a sua comunidade, na ilha de Bougainville.
Isolados por um bloqueio político, econômico e militar, os habitantes da ilha vivem com dificuldades e privações. A sorte de todos só mudaria quando o único homem branco que restara na aldeia decide reabrir a esquecida e também única escola do local, iniciando a leitura do clássico de Dickens Grandes esperanças. O impacto das aventuras do protagonista do livro, conhecido pelo apelido de Sr. Pip (nome do personagem principal na obra de Charles Dickens), ilumina de grandes esperanças Matilda e a gente de sua aldeia, sobrevivendo até ao inferno provocado pela guerra.