Pele – Rafael Calça e Jefferson Costa

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Se você acha que não é racista, então Pele (Graphic MSP) talvez seja para você.

Você já questionou a capacidade intelectual de um negro, como suas notas altas ou o fato de ser um profissional com curso superior? Fez piadas sobre sua aparência, qualificando o cabelo dele ou dela como “duro”, de “Bombril”, por exemplo? Segurou seus pertences com mais força ao se ver diante de alguém de pele mais escura? Ou por acaso já foi abordado pela polícia e pensou “é por causa da minha cor de pele”?

Um breve histórico sobre A Turma da Mônica

Pele tem como personagem principal Jeremias, o único integrante negro da Turma da Mônica até o final do ano passado.

Mas como? você pode perguntar. Vamos deixar essa afirmativa para explicar mais para a frente.

Jeremias é um dos personagens mais antigos de Mauricio de Sousa. Nos quadrinhos infantis, é membro da “turma do bermudão” e é o único que usa um tipo de chapéu. A primeira história dele que me chamou atenção foi uma em que as crianças mostravam umas às outras os presentes que haviam ganhado (provavelmente uma de Natal ou de Dia das Crianças). Nela, o presente dele é um pandeiro. Empolgado, ele o mostra para toda a turma, mas ninguém o entende. Até que chega em casa, chateado.

Mas a tristeza vai embora quando os pais e ele acabam incorporando o envio estereótipo de negros sambistas.

Pele

Nesta história, feita pelos artistas Rafael Calça e Jefferson Costa para a linha Graphic MSP, é o personagem principal de uma história muito familiar aos negros, em especial, mas que afeta pessoas de outras etnias: o racismo.

O enredo trata dessa descoberta desagradável pelo olhar da criança. As primeiras páginas são idílicas: no cinema, em casa, brincando, vendo tevê. Nesse ponto, chama a atenção o anúncio do programa espacial brasileiro (no caso, a Brasa, agência responsável pelo Astronauta). Um dos responsáveis é um oficial negro. Vemos os olhos de Jeremias brilharem. Será pelo programa ou pela presença de alguém igual a ele?

Racismo

Os problemas começam na escola, na entrega da prova de História, em que Jerê é parabenizado por tirar a nota mais alta. Entre comentários de admiração, surge Johnny, que questiona se o Jeremias mereceu aquela nota: “colou”.

A professora pede aos alunos que venham caracterizados como profissionais. Todos se entusiasmam, mas ela resolve escolher o que cada aluno representaria. Há uma lista em que constam formações de curso superior. Até chegar a vez do nosso personagem. E a mesma que elogiou a prova dele diz: “pedreiro”.

Jeremias retruca e diz que gostaria de vir como astronauta. Os colegas riem, e a professora classifica a sugestão dele como “incomum”, encerrando o assunto. Ao chegar a outro aluno negro e indicá-lo para representar um jornalista, Johnny faz piada dizendo que ele teria “faro” para notícias.

As piadas e insinuações vão se acumulando até a briga no jogo de futebol, a ida à diretoria e o sermão do pai.

O dia seguinte mostra a necessidade de uma conversa mais ponderada entre pais e filho. E percebemos junto com o personagem os contrastes entre o que ele vê nas vitrines das lojas e nas ruas, por exemplo.

Chega com dia da apresentação das profissões e vemos o resultado dessa tomada de consciência. Como é? Tem que ler pra saber (ou sentir).

Sobre Jeremias ser o único personagem negro da Turma da Mônica

Se olharmos a produção dos Estúdios Maurício de Sousa como um todo, certamente Jeremias não é o único personagem negro ou de pele escura. Mas se compartimentarmos por grupos ou turmas, veremos que há um número maior de personagens negros nos núcleos dos personagens inspirados em jogadores de futebol, como Pelezinho, Ronaldinho Gaúcho, Ronaldo fenômeno e Neymar.

No caso de Pelezinho, há uma pluralidade étnica maior do que na própria Turma da Mônica. Há mais personagens negros além do personagem principal, brancos, turcos e japoneses.

Mas há uma forte estereotipação dos personagens de outras origens. O pai da Neusinha, namorada do Pelezinho, por exemplo. Seu sotaque japonês é carregado, ele trabalha como pasteleiro e sabe artes marciais. Pode se dar um desconto se considerarmos se as histórias se passam no final dos anos 1940, período da infância do Pelé. Mas se transportado para os anos 1970 e 80 (período em que foram publicadas as histórias)… Pisada feia na bola.

Tina, seus amigos e respectivos interesses amorosos são brancos. Nas histórias protagonizadas pelo Rolo, nunca vi ele paquerar uma garota negra. São sempre brancas. Se houve alguma, eu perdi essa edição.

A turma do Chico Bento tem um personagem de origem nipônica, o Hiro. Nenhum negro, a não ser o Saci. E na versão jovem (Chico Bento Moço), ele não tem entre seus amigos e colegas nenhum negro. Há uma francesa, um Russo e um colega de república de origem coreana.

Na edição 62 de CBM, protagonizada pela Rosinha, aparece uma universitária negra e mais personagens negros (afinal, a história se passa na África do Sul!).

No núcleo do Piteco, nem sombra de personagens de pele escura!

Sobre a questão indígena

Ah, mas tem o Papa-Capim!, você pode dizer. Sim, eles são retratados com pele mais escura. Sim, são índios. E suas histórias se passam num contexto muito específico, o da aldeia indígena. A maioria das interações com o homem branco são na floresta, havendo pouquíssimas interações dos índios com a cidade grande.

Mas se prestarem atenção, a maioria das histórias se passa em um tempo não determinado, trazendo uma visão idealizada desse mundo, como o mito do bom selvagem de Jean-Jacques Rousseau.

Não me lembro de histórias em que a aldeia do Papa-Capim, Cafuné e companhia interagisse com outros núcleos, como o do Chico Bento (o que seria de supor, por estar mais próximo do ambiente indígena – no caso, a zona rural). Mesmo em histórias passadas pelo caipira e pela turma da Mônica em florestas (no caso, as versões jovens – Chico Bento no Pantanal – CBM 9 e 10, e Mônica e seus amigos na Amazônia – TMJ 43 e 44, primeira série), os equivalentes jovens não apareceram. Teriam sido confinados em reservas distantes dos locais dos respectivos enredos, ou quem sabe, mortos por grileiros?

Marina, Do Contra e Nimbus – White Washing ou omissão?

A maior parte dos personagens infantis de Maurício de Sousa não tem os pais presentes nas histórias, com exceção dos protagonistas: Mônica, Magali, Cebolinha, Cascão e Chico Bento, para citar alguns são exemplos. Há alguns secundários cujas famílias aparecem nas histórias, como o Xaveco, o Franjinha e o Jeremias, já mencionados.

O caso da Marina é sui generis: quem leu sua história de estreia sabe que seu pai é o Maurício e ela chega às páginas da turma usando um lápis mágico que abre um portal da realidade para os quadrinhos. Mas nas histórias da infância, nunca vi a mãe ser mencionada. E o cabelo da personagem é castanho.

Na série que conta as peripécias em torno do seu aniversário de quinze anos (TMJ 26, 27 e 28, primeira série), vemos sua mãe, que tem traços orientais. Não me lembro também dessa ascendência ter sido mencionada ou insinuada nas histórias da infância.

No caso dos irmãos Nimbus e Do Contra, a maneira como são desenhados na infância lembra características nipônicas. Além dos olhos puxados do irmão mágico, ambos têm um corte de cabelo característico: o que lembra uma tigela. Na turma jovem, esses traços estão menos presentes, mas recentemente houve uma edição que remete à cultura japonesa (TMJ 12, série 2). Veja a história do boneco Teru Teru Bozu e a música em japonês.

Laços e manifestações dos fãs sobre o ator escolhido para intérprete do Cascão

Quero concluir com um tipo de comentário que surgiu nas redes sociais após a apresentação do elenco do filme Laços, baseado na Graphic MSP de mesmo nome. Muitos questionaram a escalação de um menino branco para interpretar o Cascão. Por que não um negro? Veja matéria do Extra (www.extra.globo.com): “Cascão nunca foi desenhado negro”.

Vamos pensar um pouco. Quais são as características marcantes do personagem? Ele não toma banho (na verdade, parece ter medo de água) e portanto cheira mal.

Em histórias mais antigas, ele gostava de ficar imerso no lixo e há uma capa em que ele mergulha no lixo, à la Tio Patinhas.

Perceberam aonde esses comentários queriam chegar?

PS: depois da cena em que o Jeremias conhece o Franjinha, volte ao cinema com os pais.

NOTA

5 selos cabulosos

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logo da “amazon” em preto num fundo amarelo

Ficha Técnica

Jeremias: Pele

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Nome: Pele
Autor: Rafael Calça (roteiro) e Jefferson Costa (desenhos)
Edição: 1ª
Editora: Panini Comics
Ano: 2018
Páginas: 98
ISBN: 9788542610956
Sinopse: Numa reinterpretação ousada, porém necessária, como enaltece Mauricio de Sousa, em seu prefácio, o roteirista Rafael Calça e o desenhista Jefferson Costa dão vida a uma história forte, dura, emocionante, na qual Jeremias lidará pela primeira vez com o preconceito por causa da cor da sua pele. A história é recheada de dor, superação, aprendizado e preparação para a vida