Ajustar dados no Excel é uma arte, tal qual cozinhar — dizia Júlio. A receita é amarrada: uma xícara de y, três colheres de x, vinte e cinco minutos a 180 graus e está pronto. Mas seguir a receita ao pé da letra é certeza de comida insossa, crua ou dura. Então você aumenta um pouco disso, diminui um tanto daquilo, cozinha os dados e voilá: à moda da casa e ao gosto do freguês (no caso, do patrão). Chefe satisfeito e chef Júlio com o emprego a salvo, pelo menos até o próximo mês.
Aquele era um final de mês como outro qualquer e, portanto, Júlio ficou até mais tarde para realizar sua mágica gastronômica nas planilhas. Passava das oito e só o som da dança de uma fitinha presa na saída do ar condicionado quebrava o silêncio absoluto do escritório. Sentindo-se cansado, resolveu dar o expediente por encerrado e rumou para a saída.
Assim que o elevador fechou as portas ele notou um vulto recostado sobre a quinas do vagão vertical. Antes que pudesse reagir à presença inesperada, o elevador empacou entre um andar e outro e as luzes de emergência começaram a piscar, dando um ar epilético para a situação.
— É chegada a hora, Júlio — disse o vulto, com voz firme mas doce.
— Já passou, na verdade. Eu estava fazendo hora extra — respondeu o burocrata, ainda tentando decidir se tinha ou não visto a figura no elevador quando ele ali adentrou.
— Está me chamando de incompetente?
— Não senhora. Desculpe a confusão, é que estou morto de cansaço.
— Agora está me dizendo como devo fazer o meu serviço?
— Minha senhora, sem querer ofender, não estou entendendo nada dessa conversa.
— Eu sou a Morte, Júlio. Vim por você.
— Ai meu Deus, ai meu Deus… Socorro! Pelo amor de Deus, me poupe!
— Solte meus pés. Deus não existe, querido. Quanta inocência, acreditar nesses seres imaginários. Eu até tolerava esse lenga-lenga de deuses lá nos primórdios, quando sobrava um sacrificiozinho para mim. Mas agora… só me dá sono.
— Mas não posso partir, dona Morte. Preciso cuidar da minha mãe que está doente.
— Só Morte, Julinho. Não precisa desses formalismos de senhora e dona. Já somos íntimos.
— Sim senhora, dona Morte. Mas, não senhora, não posso partir… minha mãe…
— Fala sério! Já levei sua mãe faz tempo, embolia, lembro bem. E além disso, não sou eu quem decide essas coisas. É o Acaso.
— Ao acaso? Minha morte foi decidida ao acaso?
— “O” Acaso. Eu, a Vida e ele trabalhamos em consórcio. A Vida providencia os suprimentos, o Acaso faz o planejamento e o serviço pesado sobra para mim — diz a Morte, tirando do bolso do terninho preto um cartão de visita onde se lê: “Origem, Eventualidade e Inevitabilidade Participações Ltda”.
— E posso falar com ele? Com certeza tem algo errado, dona Morte.
— Que chatice. Desse jeito vou perder a novela de novo — disse a Morte, apertando um botão no elevador.
No mesmo instante, uma fumaça tomou conta da caixa de aço, e, ao se dissipar, permitiu que Júlio visse um homenzinho em trajes de gala, porém com o rosto pintado de branco e o nariz de vermelho, e uma lágrima negra escorrendo eternamente do olho direito.
— Senhor… Acaso? Posso lhe chamar assim?
— De “Assim”, não. Me chame de senhor Acaso, por favor.
— Oi?
— Oi, Júlio.
…
— Enfim… Senhor Acaso, tem algum problema com sua lista. Eu não posso partir agora!
— E por que você me diz isso?
— Porque preciso criar meu filho. Uma criança não deve crescer sem um pai…
— Hummm. Por um “eu mesmo” tenho cara de palhaço? Já falei para Morte não me trazer esses pidões. Joguei os dados, conferi na moeda, Júlio Silvestre, deu morte. Fim de papo.
— Será que pode tirar a prova real, por favor? Só para ter certeza?
— Olha, não vou incluir a Certeza nessa conversa para não superlotar o elevador, mas vou refazer na sua frente para você não me encher mais o saco. Júlio Silvestre, nome no papel, está vendo? Jogo os dois dados. Se sair 1, 3 ou 6 no primeiro e 2 no segundo você morre.
— “E” ou “ou”… — disse Júlio, calculando as probabilidades.
— Está gago, Jú-júlio?
— Estou tentando entender a lógica, senhor Acaso.
— Explique para ele, Morte — disse o Acaso enquanto cuspia para cima e tentava desviar do líquido em queda livre.
— É ao acaso, Julinho.
— Isso eu já entendi. O senhor Acaso — replicou Júlio, impaciente.
— Oi? — disse o Acaso, semi-cego, limpando com as costas da mão o olho molhado de cuspe.
— Deixa para lá. E a moeda?
— Se der morte nos dados, jogo a moeda. Um duplo check, sabe? Se der cara, morre mesmo. Se der coroa, jogo de novo.
— Até quando?
— Até dar cara, claro!
— Nossa senhora! — disse Júlio, sem esperanças.
— Ela também não existe — disse a Morte, entediada.
— Não posso morrer. E meu filho?
— É a segunda vez que você fala em filho. Você não tem filho!
— Está encomendado. Juro por D… juro pela senhora, dona Morte!
— Está mesmo, Vida?
— Filho? Maior caô! Nunca nem vi — respondeu um pernilongo que zumbia sobre a cabeça deles.
— Poxa, Júlio, você acha que minha lista é Excel para você acochambrar?
— Não é isso, dona Morte. Nem doente eu estou. Morrer ao acaso é foda, né?
— Senhor Acaso, por favor — disse o Acaso, alheio à conversa, tentando equilibrar os dados sobre as orelhas e a moeda sobre o nariz.
— Senta o dedo nesse prego logo, Morte! Enquanto ele está nesse migué aí eu já coloquei 5 chinesinhos para chorar. E tem a novela… — zumbiu a Vida, enquanto sugava um pouco do sangue da nuca de Júlio, que riu de nervoso, perdido na confusão.
— Está vendo! Viver é uma merda mesmo! Quem nasce, chora, e o Julinho aqui está partindo com esse sorrisão na cara — disse a Morte, satisfeita por realizar mais um serviço.
Diego Tonin é engenheiro por formação, pecuarista por profissão e escritor por diversão. Escreve contos e outros textos no Medium. Tem predileção inexplicada por textos sobre a morte e por gracejos sem graça. Conta os minutos para criar a maior obra de sua vida: uma vida.