Meia-noite na fronteira

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Madrugada era quando o ônibus parou na fronteira com a Bulgária, barulhos do veículo me fazendo acordar de um sono sem sonhos. Bocejei impaciente, xingando qualquer coisa baixinho, afinal eu mal tinha fechado os olhos. Logo vi o motivo das luzes acessas: hora do controle de passaporte, mais um dentre tantos que já passei, o mundo ainda dividido e obcecado por fronteiras. Um homem parrudo adentrou o ônibus, percorrendo o estreito corredor ao checar documento por documento, dedicando milésimos de segundo a cada passaporte. Olhou-me sem interesse, até que avistou alguma irregularidade no documento que eu carregava, sua expressão cansada dando lugar a uma excitação inesperada.

Folheando as páginas gastas do meu passaporte, o homem agitava-se. Num sobressalto perguntei o que estava acontecendo, também nervosa com o remexer de páginas, mas sem entender minhas palavras ele gesticulava, discutia comigo numa língua desconhecida como se eu tivesse a obrigação de entender seu idioma. Impaciente, num gesto bruto me mandou segui-lo. Os outros passageiros não mais demonstravam sinais de cansaço, todos querendo testemunhar o drama da turista branquela, talvez alguns até se regozijando na minha agonia. Segui os passos rápidos do policial da fronteira até o cubículo onde os oficiais se reuniam. Me perguntaram quem eu era, o que me levava até a Bulgária, porque não tinha um transit visa.

Nunca soube que precisava de um visto só para atravessar um país, coisa mais ridícula, pensei, afinal provavelmente saltaria do ônibus apenas para ir ao banheiro e olhe lá, e para isso precisava de visto? O mundo ainda se obcecava por meras linhas fronteiriças, burocracias atrasadas! Não acreditava que tal visto existisse mesmo, seria invenção para que uma graninha por baixo do pano chegasse às mãos ansiosas dos rapazes de uniforme? Em ambos os casos estaria perdida, não possuía nem o tal do visto nem dinheiro para molhar as mãos dos policiais, prática que com certeza o Brasil exportara para a Europa Oriental através das novelas dubladas nos tempos comunistas. Nó no estômago espalhava-se, preocupação incutida a cada palavra trocada entre os oficiais, completa incerteza do que aconteceria comigo. Me impediriam de seguir viagem? Num gesto vi meu destino tomar um rumo inesperado: aos gritos me mandavam tomar meus pertences para o ônibus seguir viagem. Eu ficaria para trás.

Mistério era como iria voltar para Istambul. Na calada da noite, sem dinheiro, sem nada. Os homens deram de ombros, seu dever cumprido. Peguei minha mochila, meus antigos companheiros de viagem espantados com a inesperada eficiência búlgara, meus olhos marejados com a interrogação do que aconteceria. Saí do ônibus naquele breu de fronteira onde nada se vê. Fiquei à espera de respostas. Meu corpo pulsava de medo, de agitação. Adrenalina.

Inevitável não cogitar que poderia ter evitado tal situação, era só permanecer na neblina prematura do outono de Munique. Tinha caído na balela de uma agência de viagem que cancelou minha passagem de avião de última hora. Não fosse Zeki, meu amigo orgulhosamente curdo, quer dizer, um pouco mais que um amigo, eu não teria conseguido nem a passagem de ida. Recebi um pequeno reembolso depois de muito insistir, mas não era suficiente nem para comprar a passagem de ônibus, quanto mais uma passagem de avião. Me passaram a perna, os turcos, não se incomodando em embolsar uma boa parte do meu salário miserável de estagiária.

Fui, mesmo assim para Istambul com a ingenuidade jovem de que tudo se ajeita, e lá usaria o meu jeitinho aprimorado depois de alguns meses morando na capital bávara. Ao chegar na velha Constantinopla, logo vi que o único jeito seria retornar a Munique de ônibus, me consolando com a possibilidade de ver as paisagens da Bulgária, Sérvia, Hungria e Áustria. Mesmo assim, alguma coisa tinha que dar errado, afinal, a viagem já tinha começado com o pé esquerdo… Eu tinha enfiado na cabeça que queria ir para Istambul antes de voltar para o Brasil, me perguntando se toda aquela paixão pelo curdo tinha alguma coisa a ver com a obsessão por países exóticos, o caos da antiguidade me chamando num sussurro. Tinha que ir para a Istambul; jamais me perdoaria se não fosse. Mochila feita, parti.

Meu coração pulsava, um tique-taque angustiado jamais sentido, as poucas lágrimas já secas no rosto. Procurava acalmar minhas mãos trêmulas com o sentimento de paz absoluta que vivi na Capadócia. Da hospedagem num cave hotel chamado Flinstones até as cavernas que esconderam os primeiros cristãos e santuários inteiros esculpidos em pedra, sentia-se uma vibração especial nessa comunhão de natureza bruta e humanidade, fé crua, sem o manto da religião. Na Mesquita Azul senti a mesma coisa, uma pulsação primitiva no peito. Era só fechar os olhos e lá estava eu novamente, tocando as pedras esculpidas pelo vento e pelo tempo, me apegando a esse momento com todas as forças, unindo Alá e Iemanjá num sincretismo de pedidos a Deus para me safar.

Lembranças me distraíam. Hagia Sophia, sua imensidão em mosaicos. As pitas cozidas em pedras quentes. Relíquias de Maomé no palácio do sultão, até dentes do profeta eu vi, essa loucura de preservar pedaços de santos e profetas é realmente um denominador comum entre religiões. Memórias persistiam na escuridão maciça; impossível enxergar meus dedos, meus pés. Me concentrei nas imagens vivas e reconfortantes, até que uma luz se fez no horizonte: um ônibus vinha justamente na direção que eu precisava.

O ônibus estacionou, os guardas recomeçando a mesma rotina de checar os passaportes, enquanto eu esperava pacientemente, coração em disparada. Um dos guardas fez a gentileza de conversar com o motorista, situação explicada, desculpas feitas, mas o homem dizia não com a cabeça num gesto abundantemente universal, suas mãos indicando que cada poltrona já tinha um dono. O policial insistiu, o motorista gesticulava com vigor renovado, vozes na discussão se elevavam, tensão. Fragilidade me invadia, mas os minutos passavam sem misericórdia, sem resolução. Era como se estivesse presa num limbo, nem na Turquia, nem na Bulgária, esperando um deus misericordioso me ceder a graça de livre passagem para o paraíso.

Se existe algum deus andarilhando os céus, me mandou ele um anjo na forma de uma moça que usava um hijab e continuamente ajeitava o lenço na cabeça enquanto jogava a lábia no motorista, cujo volume da voz foi aos poucos abaixando, os gestos escalafobéticos diminuindo, até ele me olhar de cima a baixo, aquela reles inconveniência pedindo favor. O homem finalmente cedeu.

Olhei a moça, seus olhos cândidos repletos de curiosidade, e nela me vi por um instante. O mesmo nariz levemente adunco, os olhos amendoados. O mesmo jeito de segurar as mãos, apertando-as. A mesma idade que eu devia ter, mas uma espécie de maturidade cobria sua pele, já mãe e prisioneira de tradições que eu, mesmo sem admitir, desprezava. Ela me ofereceu o assento da menina, mas recusei com um sorriso, tomada de susto com as semelhanças e diferenças. Incerteza incomum de conversar com uma pessoa tão diferente de mim, apesar de sempre ter gostado de conversar com desconhecidos, apareceu.

Me consolei com o sacolejo do ônibus, a lembrança do passeio num barquinho fuleiro que me levou para um tour pelo estreito de Bósforo na convergência entre ocidente e oriente. Algumas horas passaram-se assim, eu tentando formular o cheiro de maresia que tanto gostava no meio de uma estrada sem ligação com o mar, mas que a cada minuto ficava mais próximo. A turca fechou os olhos, cansada da viagem.

Ao pique da manhã a moça puxou conversa comigo, levemente bisbilhoteira, um brilho nos olhos que necessitava imaginar-se na pele de alguém desconhecido. Parecia mais jovem na luz do amanhecer, um sorriso que convidava a confidências, duas mulheres idênticas, dois destinos distintos. Dilek, apresentou-se, como você veio parar na fronteira, de onde você vem? Ânsia me invadiu, afinal o que eu poderia ter em comum com ela? Até que meu olhar não mais desviava do seu fulgor, e como um raio, transportou algum entendimento invisível que nos uniu além das diferenças. Trabalho em Munique, disse, e estou viajando por aí, procurei não dar detalhes. Me conta mais, pediu ela, insaciável. Há algumas semanas estive em Amsterdam, eu falei, e lá eu vi os canais da cidade, a arquitetura mais bonita que já vi. Com os olhos novamente jovens, confessou ela, sonho em ver Paris um dia, você já foi? Engoli em seco, minha boca não hesitou em responder, sim, a torre Eiffel à noite é maravilhosa, e a culinária, os vinhos… até notar que certamente ela não beberia uma gota sequer de álcool, algo que tira metade da graça em desbravar as ladeiras de Montmartre.

Fiquei receosa de revelar que fumei maconha na Holanda ou que dormi num albergue com mais de cem camas em Paris num grande dormitório para homens e mulheres, mas parte de mim queria chocá-la um pouco, instilar o desejo de quebrar regras. Sentia-se ela viva naquela prisão oculta onde vivia, incapaz de mostrar um fio de cabelo sequer? Me perguntei se fé deveria ser assim, uma gaiola dourada que nos impede de viver, de aproveitar as coisas boas da vida. Não seria fé algo mais íntimo, que nada tinha a ver com coisas exteriores à alma? O que importava se você comia porco, bebia álcool ou se transava antes do casamento? Nunca entendi essa forma de fé que nos priva de coisas que não fazem mal a outrem; é como se religião fosse uma velha coroca que fica contando cada asneira que cometemos. Seria Deus assim tão mesquinho? Em meio às minhas divagações revelei que fui perseguida pela polícia em Praga porque não paguei o tíquete do bonde, morrendo de vontade de esticar os limites da compreensão dela, mas ela apenas gargalhou uma risada deliciosa e sem fronteiras.

Olhando através da janela, Dilek cochichou que ela também gostaria de viajar, colocar uma mochila nas costas, sentir-se livre; sua voz medrosa de que alguém entendesse a inconsistência de seus desejos. Suas palavras falharam, até seu olhar amoroso mirar a filha pequena, amor transbordando dela como um rio após a tempestade. Apertando as mãos já calejadas, a turca olhou para a paisagem monótona da estrada, inconscientemente acariciando a pele jovem da menina, sabendo que jogar tudo para o alto seria impossível, inadmissível e… algo que ela não desejava, afinal. Tradição não me prende, como se precisasse se explicar, tradição é meu porto seguro, seus olhos afirmaram além das palavras, mas também entendi que certa liberdade lhe faltava, que talvez ela tenha fantasiado como seria tomar o meu lugar por um momento apenas. Um silêncio incômodo entre nós se fez presente, até Fatma acordar de seu sono profundo de criança e devolver alegria à nossa conversa. Então Dilek anunciou chegamos em Istambul e meu coração se sentiu um tanto vazio com a expectativa da despedida.

Na rodoviária, mal consegui esboçar um sağol em agradecimento; o marido de Dilek à espera emanava uma nuvem espessa de suspeita em minha direção. Sem dar importância aos desejos masculinos, calmamente ela tomou minhas mãos e nelas depositou um pedaço de papel surrado, piscou o olho num segredo compartilhado e sussurrou belki bir gün sağ, a esperança de que algum dia nossos destinos se cruzassem novamente nesse grande mundo. No papel deixado em minha mão a frase nenhuma estrada é longa com boa companhia. Provérbio turco. Meu coração deu um pulo numa aquarela de sentimentos, as contradições não me passavam despercebidas, mas me deixei seduzir por tradições de outros tempos, pela antiguidade da cidade que num sussurro me chamava. Por uma moça que poderia ser eu, sua alegria e tristeza misturadas em contraste com a imprevisibilidade da minha vida.

A caminho do aeroporto alguma coisa dentro de mim apelava para um lado irracional. Paguei uma fortuna para retornar a Munique porque deveria voltar, porém meus pensamentos tinham saído de uma jaula, com selvageria destruíam os planos eficientes que estavam à minha espera. Queria eu voltar? Algo na Turquia me fazia sentir viva naquele caos de séculos de um país dividido entre oriente e ocidente, da fascinação de palácios e monumentos exóticos, de frutas doces como mel, da comida simples e gostosa, do barulho de vida, do burburinho intenso, do cheiro de mar, das energias que te conectam com algo mais primitivo, mais humano. Era um mundo tão diferente da Alemanha, daquela perfeição irritante, do céu cinza, da obsessão com silêncio. Ordem, eficiência, regras; coisas que talvez me agradassem na maturidade, mas que me irritavam na juventude impaciente.

O avião começou o procedimento de embarque, as pessoas se movimentando, eu ainda quieta no meu canto, a fila cada vez menor. Deixei todos passarem na minha frente, pensando que, se pudesse ficaria mais algum tempo na Europa, colocaria uma mochila nas costas e viajaria por aí… faria um tour em homenagem a Dilek.

Um redemoinho tomou posse de mim, uma sensação de que ainda não estava pronta para desistir da vida de nômade, de sentir a pulsação da história a cada ruína, castelo ou templo em meu caminho, por um momento não querendo me contentar com coisas que contentariam muita gente. Emprego decente, namorado amoroso que em breve poderia tornar-se noivo, uma casa legal. Filhos. Carreira. Dinheiro. Queria tudo isso, mas precisava ser agora? À espera do avião, senti pela primeira vez as lágrimas que não vieram durante a crise da fronteira, de repente meu corpo dando vazão a uma enxurrada de sentimentos cheios de conflitos, dever e vontade opostos brigando por uma só escolha. Sentia as raízes que me prendiam subitamente relaxando, ficando mais elásticas. Ainda não tinha um porto seguro, diferentemente de Dilek; ainda estava à procura. Tudo em mim palpitava, meu coração quase saindo pela boca, a decisão que talvez ninguém entenderia tomando forma.

O embarque havia sido finalizado, com a exceção de uma passageira. A funcionária chamava meu nome pelo microfone, seus olhos frenéticos procuravam por mim. Meus pés não se moviam, como se estivessem soterrados por cimento. Meu cartão de embarque era o lembrete da vida sensata que ansiosamente esperava por mim, mas as únicas imagens que se desdobravam como fotos em minha frente eram as pedras da Capadócia, os minaretes da Mesquita Azul, a água parada da cisterna antiga com suas longas colunas, a magia dos bazares, os sabores e cores de Istambul, a história que me convidava a me libertar.

Lembrei-me de Dilek e seu conflito de seguir as tradições e libertar-se delas. Seria eu capaz de arrancar minhas próprias correntes? Meus pés então se moveram, mas tomaram a direção contrária da que deveriam. Corri para retornar à velha Constantinopla, enquanto a funcionária da companhia aérea continuava a chamar meu nome.

Este conto é parte da coletânea Ventos Nômades.


Manuela Marques Tchoe é uma escritora baiana que atualmente reside em Munique, Alemanha. Seu primeiro livro, Ventos Nômades, é uma coleção de contos que exploram o desejo de viajar e do exótico, os desafios e maravilhas de relacionamentos multi culturais e imigração, do qual “Meia-noite na Fronteira” faz parte. Manuela também escreve para o seu blog pessoal Baiana da Baviera e está presente no Facebook, Instagram e Twitter com reflexões sobre a vida de imigrante, viagens e literatura.