Vênus dançava quando sentiu tanta dor que começou a vomitar. A perna esquerda latejava.Tudo começou quando ela perdeu peso e as dores se tornaram frequentes. No Brasil, em 2084, o Delirium corporis chegava para todos. Principalmente em Themi.
As outras mulheres foram ajudar Vênus; colocaram-na em uma rede e chamaram a Avó para que ela decidisse se já estava no momento da amputação. Vênus sabia que ele estava chegando, mas não conseguia aceitar. A perna convulsionava. Ela tentava se segurar, mas já não comandava o próprio corpo. A Avó se aproximou, retirou o cachimbo da boca, com a fumaça saindo em formato de espiral, e assentiu para as outras mulheres. Vênus teria a perna amputada. Logo ela, cuja única paixão na vida era dançar. Não se importaria em perder um braço, mas a doença sabia como machucar o corpo hospedeiro, como se conhecesse sua mente.
Themi era o último matriarcado anarquista do Brasil. Lá, o nascimento de uma menina era a maior felicidade da comunidade. Todas celebravam o sagrado feminino existente em cada uma e saudavam a deusa que havia dentro de si. A ligação que possuíam com a natureza e com a terra era considerada mágica. Moravam em uma área isolada, esquecida por todos, no interior do país. Todavia, sabiam da existência do Círculo Metropolitano de São Paulo, e sabiam que lá o Delirium corporis fora erradicado. Os mais ricos quase não pegavam a doença e, se pegavam, utilizavam membros sofisticados que ninguém conseguiria perceber serem próteses feitas de metal e silicone. Os mais pobres tornavam-se visivelmente ciborgues, isso quando conseguiam o privilégio de arranjar os membros substitutos.
Findada a convulsão, Vênus chamou a Avó. As lágrimas desciam de seus olhos, e o destino final dos pequenos rios era sua boca.. A Avó, contudo, tinha paciência. E experiência. Vira muitas mulheres em Themi que haviam perdido membros. Conhecia aquela dor. Ela mesma não tinha mais a mão direita, uma das orelhas e um dos pés.
“Avó, eu não quero perder a minha perna. Quero fazer algo. Quero ir para São Paulo”.
O rosto da Avó permaneceu sério. Todavia, seus olhos incendiavam-se com fúria.
“Você quer conhecer o patriarcado? As pessoas são tratadas como ratos naquele lugar!”
“Eu preciso fazer algo pela minha perna. Não posso perdê-la”.
“Você prefere se tornar uma ciborgue?!”, a Avó vociferou, horrorizada.
Vênus segurou as lágrimas e a dor dentro de si e respondeu com toda a firmeza que conseguiu.
“Eu prefiro ser uma ciborgue a ser uma deusa.”
Perante essas palavras, a sina de Vênus foi determinada. Não conhecia nada daquele mundo; sabia apenas o que era contado pelas mulheres que fundaram Themi. Elas fugiram de São Paulo; diziam que já não havia mais nada de Real lá. Vênus não encontraria água ou comida Real, como as que elas plantavam no matriarcado. Ela apenas encontraria protótipos, objetos que pareceriam ser o que não eram, desde comida até pessoas. Ela encontraria seres que eram completamente feitos de engrenagens e programação. Não haveria céu azul, apenas o céu cinza, como um canal de televisão fora do ar. Ela mal conseguiria respirar o ar poluído.
Themi não conseguia entender tudo em sua completude. Crescera sem televisão, sem uma IA para ajudar nos afazeres e sua mente não recebera os nanorrobôs responsáveis pelo acesso à internet. Seu corpo era virgem de qualquer tipo de alteração tecnológica; ela apenas lia sobre isso nos poucos livros que chegaram até ela na biblioteca de Themi, mas faria qualquer coisa para continuar a dançar.
Quando a dor passou, ela sabia que teria pouco tempo até a próxima crise. Colocou seus poucos pertences em uma mochila, não havia muito que levar, afinal; em Themi, tudo era coletivo. Quando foi se despedir da Avó, ela não olhou para a garota, apenas segurava seu cachimbo com força. Prepararam o teletransporte para a menina. Tiraram a poeira do objeto ultrapassado que não era usado há tanto tempo e prepararam a rota. Vênus seria a primeira mulher a sair de Themi em cinquenta anos. Talvez não a aceitassem de volta. Ela voltaria como uma ciborgue, sim, mas voltaria com uma perna.
2.
Nada preparou Vênus para o que ela encontraria. Quando saiu do teletransporte e o viu sumir, de volta para Themi, caiu no chão, cega pelas luzes neon do Círculo Metropolitano de São Paulo. As pessoas passavam com pressa, pisavam em cima dela e reclamavam da forma como estava atrapalhando o caminho. Estranhavam sua roupa simples, como se ela estivesse cinquenta anos atrasada no tempo. Um frágil vestido branco, muito diferente das roupas metálicas e escuras que as garotas usavam em 2084. Os prédios eram altos, com mais de 200 andares, prestes a devorá-la com todas as suas luzes. As enormes publicidades pareciam gigantes reais andando pela cidade.
O trânsito era caótico. As cybermotos zumbiam, deixando lastros de luzes neon por onde passavam. A velocidade era tanta que não conseguia-se ver o rosto do motorista a olho nu. Por isso, os policiais passaram a ser IAs havia muito tempo. O cheiro do lugar começava a adormecer os sentidos da garota. Era como se plástico estivesse sendo frito. Sim, Vênus reconhecia aquele odor. Era plástico. Mas quando ela, paulatinamente, conseguiu abrir os olhos e se levantou, viu que o cheiro vinha de um restaurante. Imenso, com um grande M amarelo, como se fosse uma entidade. Não era plástico; era algum tipo de comida. Parecia algo que ela vira em um livro antigo — um hambúrguer. Mas Vênus não comia carne vermelha.
Estava na Avenida Paulista. Um IA policial se aproximou. Seus visores provavelmente diziam que era algum tipo de moradora de rua. Ela tinha Delirium corporis, isso ele já sabia.
Era a primeira vez que ela via um homem. Ou um androide. Ela colocou a mão em sua barba e em seu cabelo, surpresa com a textura. Eram diferentes dos pelos femininos com os quais estava acostumada. O IA não conseguiu processar o que acontecia e apenas a classificou como mais uma usuária de daisy e a deixou sozinha.
Enquanto andava, Vênus percebeu que estava mancando. A perna esquerda emitia uma dor aguda e ela já não conseguiria mais dançar, como planejava fazer para ganhar algum dinheiro. Ela seria do cybertariado, o novo proletariado que surgiu após a revolução cibernética e de todas as mudanças pelas quais o mundo passara. As histórias sobre exploração que as mulheres de Themi contavam começaram a fazer sentido quando notou a forma como os homens e alguns IAs olhavam para o seu vestido branco transparente enquanto andava pela rua.
“E aí, docinho? Quer comprar um ingresso pra arena dessa noite?”
Um homem com uma capa preta metálica longa e óculos espelhados apareceu ao seu lado.
“Eu não quero”, ela respondeu, seca.
“Ah, não? Tá a fim de ganhar um? Ou fazer dinheiro? Meninas com esse tipo de corpo, meio infantil, fazem sucesso gravando uns vídeos em um lugar que eu conheço…”
Ele passou a mão em volta de sua cintura. Um de seus braços era uma prótese de metal e, justamente com ela, ele apertava Vênus com força sobre-humana. Assim que ela sentiu o toque, o golpeou na costela com o cotovelo — um dos truques que aprendera nas aulas de defesa pessoal em Themi.
“Deixa ela em paz, Hasuke”, bradou uma garota com longos cabelos azuis.
Ela estava dentro de um ônibus, algum tipo de comércio, como um foodtruck. Vênus nem percebeu que Hasuke fora embora, olhando-as com o ego ferido. Estava hipnotizada pela figura daquela mulher.
“Muito obrigada pelo apoio. É muito bom encontrar sororidade nessa cidade!”, Vênus agradeceu, animada.
“Você aparenta ser feliz. Não deve ser daqui.”
A mulher se inclinou no balcão do ônibus, estendendo a mão.
“Prazer, meu nome é Fiona.”
As lentes de contato azuis de Fiona se moveram e Vênus pôde ver o movimento de peixes dentro de sua íris. Era como uma sereia; o mais próximo da natureza que já vira no meio daquela multidão envolta pelas luzes neon e pelo ar de poeira cinza.
Fiona mexia em vários computadores ao mesmo tempo e estava conectada a diversos aparelhos. Podia-se ver que também estava conectada à internet pelo seu cérebro pela forma como, às vezes, seu olhar encontrava o nada, mas suas mãos continuavam em movimento. Era um comércio, afinal. Aquele ônibus fazia testes de DNA instantâneos. Havia um laboratório portátil em um canto do ambiente, perto de um aquário onde nadava um polvo-robô. O adesivo colado indicava que o nome do animal era Nebula. Ali era possível, para qualquer ser humano, descobrir sua paternidade. Bastava colher o sangue e o resultado saía em um minuto. Como uma cafeteira elétrica.
“Tá a fim de descobrir quem é o seu pai?”
Vênus sorriu e fez uma careta.
“Para falar a verdade, não faz diferença nenhuma pra mim. Eu nasci em um matriarcado anarquista. Lá não existem pais. Eu fui um espermatozoide congelado de um voluntário anônimo. Eu só tenho uma Avó”.
Fiona parou tudo o que estava fazendo. Tirou todos os plugues que estavam conectados em seu corpo. Seus olhos e os peixes que viviam nele focaram em Vênus.
“Você é uma das moradoras daquela tribo feminista radical que vive na floresta?!”
“Vocês sabem quem nós somos?”
“Há algumas lendas sobre vocês.”
Um garoto chegou com os amigos para fazer o teste. A maioria das pessoas se comunicava por uma língua que Vênus não conhecia. O português aparentemente caía, cada vez mais, em desuso. Em São Paulo, era imperativo saber japonês. O garoto pareceu um pouco chateado com o resultado e os amigos deram risada. Fiona apenas recolocou os fones de ouvido e os plugues e voltou a se conectar, indiferente à reação do menino. Já estava acostumada com aquilo. Fazia parte do trabalho. Descobrir quem era seu pai também fora uma decepção para ela. Não valera nem a dor da picada no dedo para a coleta de sangue.
Vênus pegou sua mochila para ir embora, ciente de que estava atrapalhando Fiona, quando a moça inclinou-se novamente sobre o balcão, derrubando seus longos cabelos azuis que iam até o chão. Vênus pôde sentir o doce aroma de mar, mesmo sem nunca tê-lo conhecido. Devia ser um daqueles perfumes com aromas alucinógenos dos quais a Avó lhe contara.
“A gente deveria sair hoje à noite.” Fiona piscou um de seus olhos azuis cheios de peixes.
Vênus sorriu. Ir para São Paulo fora a melhor ideia que tivera em toda sua vida.
Enquanto vagava pela cidade mancando, Vênus parou diante de uma vitrine. TVs de 600 polegadas mostravam 40 canais ao mesmo tempo. A garota pensou que fosse desmaiar. Todavia, se recompôs quando viu o comercial de um reality show. Nele, uma IA vestida de Marilyn Monroe sussurrava.
“Se você sofre de Delirium corporis, essa é a sua chance de ganhar um membro sofisticado feito com tecnologia de ponta!”
Imagens de pessoas felizes andando, correndo e se abraçando apareceram. Vênus assentiu para a TV. Sim, era exatamente isso o que ela queria. O programa se chamava Morra ou ganhe!, e aceitava inscrições de qualquer um. E ela ganharia — não morreria.
Ela se inscreveria mesmo sem saber o que faria ou sobre o que o programa se tratava. A Avó dizia que o capitalismo e o patriarcado faziam tudo por exploração, violência e lucro, mas Vênus acreditava que talvez ela apenas demonizasse demais esse mundo. Fiona fora tão legal com ela…
Vênus anotou o site. Acessou um dos velhos computadores da praça pública e se inscreveu; aprendera um pouco sobre tecnologia nos diversos livros antigos que lera em Themi. Na ficha de inscrição, contou toda sua história — sobre a vida em Themi, sua Avó, seu amor pela dança… Esperava que a produção se emocionasse.
Quando a inscrição chegou, Atena, a produtora do programa, realmente se emocionou — mas com o lucro que faria trazendo uma moradora da floresta para a TV. Seria como assistir a um animal exótico em um zoológico.. Ela seria uma ratinha perfeita para a gaiola que estavam construindo com tanto carinho. Atena finalmente conseguiria colocar um reality show no topo da audiência e receberia sua promoção. Não precisaria usar daisy com tanta frequência para ter ideias inovadoras; a ideia batera à sua porta. Finalmente poderia trocar seu corpo por um mais novo. Já não aguentava mais ter 30 anos.
*
Mais tarde, enquanto comiam sushi em um pequeno restaurante, Fiona se mostrou contra a ideia de Vênus.
“Você não é daqui. Nunca assistiu a esses programas. Num deles, deram um gato para uma menina cuidar. Eles viveram juntos por um ano, só os dois. No final, pra ela ganhar o prêmio, ela tinha que matar o gato, o único amigo dela, na frente das câmeras”, Fiona disse, enquanto encharcava seu sushi no molho shoyu. “Aquele episódio foi bizarro. Ela matou o coitado com um estilete”.
“Eu preciso tentar, Fiona. É a minha única chance de vencer a doença. Você viu que estou mancando! Preciso de uma prótese. A da perna é ainda mais cara que uma da mão ou do braço. Eu pesquisei os preços hoje”.
Fiona não insistiu; elas tinham acabado de se conhecer. Tentou aproveitar a noite, aprender o máximo possível sobre essa criatura fascinante que aparecera na sua vida. Conversaram a noite toda. Fiona parecia ter saído de uma distopia, com tantos fios escapando de seu corpo, seu estilo seapunk, suas lentes que se movimentavam e seu niilismo. Havia visores nas longas unhas e um filme sempre estava passando nelas. O da vez era Kill Bill. Vênus, por outro lado, parecia saída de uma utopia. Sempre falando da natureza e de coisas que já estavam extintas há centenas de anos, como livros físicos e comida de verdade. Mesmo aquele sushi nada mais era do que uma réplica. Falava sobre justiça e um mundo onde o Delirium corporis seria erradicado para todos; onde IAs teriam direitos como os seres humanos e não seriam escravizados. Fiona achava que ela parecia uma fada de uma história que há muito fora ouvida. Eram mundos opostos que se completavam.
Depois da refeição, Fiona chamou Vênus para passar a noite em sua kitnet. O primeiro beijo das duas teve gosto de sushi de plástico e, uma vez dentro da kitnet, começaram a se despir em um frenesi. Seus corpos nus se movimentavam em sincronia. Por um momento, Vênus se esqueceu da doença e se deixou levar pelas carícias de Fiona. Por um momento, não havia desigualdade, não havia tecnologia, não havia opressão. Tudo o que durava no mundo estava resumido na existência das duas dentro daquele quarto. Era como um poema de Safo — Vênus não conseguia falar nada, sua língua se quebrara. O fogo corria sob sua pele, o suor escorria. A pequena morte chegara.
No meio da madrugada, Vênus acordou e foi ao banheiro. Os peixes dos aquários a observavam. Começou a vomitar novamente. Logo, a convulsão viria, o delírio retornaria. Ela pegou seu vestido branco e enrolou em volta da perna para tentar controlá-la. Ninguém sabia de onde a doença viera; sabia-se apenas rumores de que tudo começara com a ingestão incansável de comidas com agrotóxicos, refrigerantes com substâncias cancerígenas e uso de hormônios nos animais que seriam abatidos. A indústria alimentícia sempre fora um pesadelo.
*
Como Vênus não possuía nenhum vínculo tecnológico para se comunicar com o mundo, Atena não perdeu tempo: decidiu rastreá-la e buscá-la pessoalmente. O show começaria mais cedo aquele ano. Todos sabiam que as emissoras de TV eram comandadas pelas grandes corporações — como a Sertronic, que construía IAs para o sertão brasileiro, e a Gênesis, que controlava São Paulo e toda sua tecnologia. Elas também controlavam o Governo; logo, o reality possuía aval para romper qualquer barreira que pudesse ser obstruída pela lei.
Encontraram a garota na kitnet de Fiona. Apertaram a campainha por uma falsa educação, mas câmeras já estavam ligadas. Quando Fiona abriu a porta, imediatamente colocou as mãos sobre os olhos para se proteger da intensa luz da equipe de filmagem. Uma mulher alta e com o cabelo raspado e pintado de branco, vestida em roupas douradas e metálicas, entrou no pequeno lugar — assim como a equipe, empurrando tudo o que viam pela frente. Os aquários caíram com alarde. Os peixes robóticos soltavam faíscas no chão, debatendo-se como se realmente precisassem de água para sobreviver. Atena foi em direção à garota cujo corpo não tinha intervenções tecnológicas.
“Você é Vênus?”
A garota assentiu.
“Aceita participar do Morra ou ganhe!?”
Vênus assentiu novamente.
Após a afirmação, Atena fez um sinal e a equipe levou a garota. Enquanto era carregada, Vênus tentou se despedir de Fiona, mas ela também estava sendo segurada. Tudo o que pôde ouvir foi a moça de cabelos azuis gritar:
“Eu vou te buscar! Eu vou te achar!”
Vênus não imaginara que usariam de violência. Todos carregavam metralhadoras semiautomáticas. Estava acostumada com a liberdade de Themi, acostumada com a dança que libertava todo o seu corpo. Sua perna tremia, ainda amarrada pelo vestido, enquanto usava uma camiseta de Fiona.
Colocaram-na dentro de um carro, que logo começou a subir e entrou no tráfego aéreo. Vênus olhava com atenção para as luzes neon quando colocaram uma venda sobre seus olhos. Sentiu que injetaram algo em seu braço.
Quando acordou, estava só e nua em outra kitnet, com várias câmeras como companhia.
4.
Tentou cobrir o corpo, mas não havia com o que se esconder. Era como se Eva tivesse sido criada antes, e não em um jardim, mas em uma kitnet minúscula, com uma pequenina janela com grossas grades. Havia algo ao redor de seu pescoço que pareceu a Vênus uma coleira de cachorro, mas percebeu ser apenas um colar com um microfone. Tentou tirá-lo, mas não conseguiu. Havia seu nome nele; talvez, ali, ela fosse mesmo um cachorro.
As câmeras orbitavam-na. Tudo o que ela fazia chamava a atenção das máquinas. A porta estava trancada. Acreditara que, ao se inscrever no Morra ou ganhe!, entraria em uma daquelas competições em que teria que colocar suas aptidões em comparação com as de diversos outros jogadores, pois fora assim que conhecera as histórias dos reality shows em Themi. Não esperava ficar só. Sabia que exploravam o corpo das mulheres, mas agora percebia como fora ingênua. Eles não lhe dariam roupas. Não fazia ideia de quantas pessoas estariam assistindo àquele programa, mas todos a estavam vendo daquela forma. Cobria os seios e o Monte de Vênus malmente com os braços finos.
Sentia uma dor de cabeça inexplicável. Não sabia que, enquanto estava desacorda, Atena tomara uma decisão por ela. Quando acordou, Vênus percebeu que havia algo diferente. No canto esquerdo do seu campo de visão, via algumas palavras. Algo que indicava um manual de instruções para o primeiro acesso. Vênus não chorava com facilidade, mas chorou quando percebeu que haviam modificado seu sistema nervoso sem seu consentimento. Sabia que se tornaria uma ciborgue, mas queria ter plena consciência do que estava fazendo.
Tudo o que havia na kitnet era um uma pia, um vaso sanitário e uma almofada verde. Percebeu que teria que tomar banho na pia, e beber água dali também. Não havia copos, nem canecas. Tudo dependeria de suas mãos. Teria que dormir sobre o chão e a pequena almofada seria o seu travesseiro. O lugar emanava um ar grotesco, como se risse dela com desdém. Não havia sinal de comida, e ela começou a ficar preocupada. Eles não deixariam que uma participante do show morresse, certo? Ou isso daria audiência?
Um holograma, então, apareceu. Era a mesma IA que vira no comercial, na cidade, igual à longínqua atriz Marilyn Monroe. Tinha o mesmo sussurro ao falar e a maneira lânguida nos movimentos.
“Olá, Vênus! Meu nome é Anima e eu serei a hostess dessa temporada de Morra ou ganhe!”
A garota se aproximou lentamente do holograma.
“Você está ao vivo para toda a população brasileira!”
“Vocês não vão me dar roupas?”, Vênus mal abriu a boca para falar.
“Não, querida. Mas não seja puritana. Você terá que ganhar as suas próprias roupas. Nós e o público fizemos uma pergunta: será que um ser humano consegue viver sozinho apenas ganhando sorteios? Claro que uma IA conseguiria. Mas… e vocês? Por isso, o seu objetivo aqui, se quiser uma perna boa, é ganhar um milhão de reais em prêmios de sorteios.”
“Quando eu conseguir, poderei recuperar a minha liberdade e ganhar a minha prótese?”
“Claro! A melhor prótese de todas, feita pela Gênesis…”
Uma longa publicidade começou — uma das muitas que Vênus escutaria durante sua prisão naquele lugar. Sua mente ia ter que se acostumar a desligar nesses momentos. Anima terminou a transmissão repetindo a clássica cena do vestido branco encenada por Monroe em O pecado mora ao lado e sumiu.
Vênus não teria comida até ganhar alguma em um sorteio. Acessou o manual de instruções em seu cérebro. Sabia que seus olhos estavam voltados para o nada, assim como vira Fiona fazer no ônibus do DNA. Contudo, suas mãos se movimentavam para escolher as opções, como se uma tela de computador estivesse presente diante de si. Todos os sites estavam bloqueados, exceto aqueles em que poderia se inscrever para ganhar prêmios. Não havia muitos objetos úteis para sua sobrevivência, mas se inscreveu em todos. A única coisa relativa a comida era uma promoção de combo com hambúrguer e batata frita que sairia em uma hora. Vênus não comia carne vermelha. Ela era contra a exploração dos animais.
“Atena, eu sei que você está me escutando, eu não como carne vermelha. Eu preciso de comida. Vocês não podem me deixar só com o sorteio desse combo”, ela disse, olhando para uma das câmeras. “Eu imploro. Não me deixem aqui sem nada. Eu faço tudo o que vocês quiserem. Eu já estou fazendo”.
Atena, da sala em que dirigia o programa, apenas ria. A audiência se apaixonara e comprara a ideia da garota criada longe da tecnologia. Davam risada da forma como ela aprendia a acessar a internet pela mente, mais desastrada que uma criança. Os espectadores já compartilhavam vídeos do susto que ela levara ao ver o holograma de Anima. Vênus já era um sucesso. O público estava amando o fato de ela não ter o que comer. Amavam a forma como ela tentava esconder o corpo.
Não houve resposta. Vênus desistiu e se inscreveu no sorteio no combo. Sua barriga já começava a doer.
O programa escolhia quais prêmios ela receberia ou não. Tudo de acordo com o que teria potencial para virar uma história para o episódio do dia. Souberam da forte ligação que tinha com os animais devido ao passado em Themi, e Atena sentiu um gozo especial ao vê-la receber o combo. Ela não precisaria mais de daisy. Ela não receberia mais broncas do dono da emissora de TV. Essa menina era sua galinha dos ovos de ouro.
Quando Vênus abriu a porta, após ouvir seu nome ser chamado, um drone entregou o pacote.
Tentou se alimentar apenas das batatas, mas a fome era tanta que teve que comer o hambúrguer. Chorava enquanto comia, e as risadas de Atena aumentavam conforme a audiência crescia. Depois que terminou de comer, vomitou. Tentou limpar com o pouco papel higiênico que haviam lhe dado e, ali, percebeu que entrara em uma tortura televisionada.
Os prêmios tornaram-se cada vez mais sádicos. Ganhou um pacote de algo muito parecido com arroz, mas não havia como cozinhar. Em um ataque de raiva, jogou-o contra a parede. Quando percebeu seu erro, contentou-se em pegar os pequenos grãos do chão e comê-los, crus. Estava cada vez mais fraca. Emagrecia ininterruptamente. Já não se importava que vissem seu corpo; andava nua. Tomava banho quando se lembrava. Conversava sozinha diante da câmera. Contava histórias sobre Themi. Só se envergonhava quando pensava que a Avó pudesse vê-la daquela forma. Tentava não pensar nas pessoas que a viam ou no prazer que sentiam, após os cinco meses de programa.
Um de seus fãs conseguiu hackear o sistema e mandou mensagens diretamente para o seu cérebro. Os recados acordaram-na como bombas. Sam145X dizia que a amava, que entendia sua solidão e que a sequestraria. Eles ficariam juntos para sempre. Se ela não aceitasse, ela seria uma puta e ele contraria uma gangue para violentá-la. Vênus começou a gritar quando as imagens da ameaça tomaram sua mente. Sam145X mandou imagens explícitas que ela não pedira. Ela só pedia por sua perna.
Após as ameaças, Atena decidiu que, ocasionalmente, mudaria Vênus de kitnet . Eles esperavam ela dormir, injetavam o sonífero preferido da produção e a levavam para uma kitnet idêntica. Era parte da brincadeira – e da tortura. Apreciavam observar Vênus acordar e perceber que algumas coisas estavam diferentes, mas outras permaneciam idênticas. Ela se perguntava se estava ficando louca.
Ganhou uma bicicleta voadora, mas não havia espaço para se movimentar dentro da kitnet. Apenas subiu na bike e fingiu que pedalava. Imaginou que fugia. Que voava. No final, deixou a bicicleta de lado. Era apenas um lembrete de todas as coisas das quais não podia usufruir.
A perna estava cada vez pior. As dores sempre vinham à noite, e a audiência aumentava nesses momentos. Ela convulsionava de dor. Não havia com o que amarrar a perna; logo, deixava-se delirar até o momento em que vomitava e desmaiava. O programa não lhe oferecia serviço médico. Nesses dias, Sam145X mandava mensagens de preocupação e ela sentia medo.
Atena passou a deixar comida para Vênus quando Anima distraía os espectadores com as publicidades de sempre. Constantemente a comida era pegajosa, com a textura de um animal rastejante, como uma lesma. Ela nunca deixava de colocar carne vermelha para se divertir com a expressão de asco de Vênus.
Ganhou ingressos para o show de uma boyband, FutureBoys58, mas não havia como ir. Ganhou um Nintendo DS2000. Jogou Pokémon durante três dias seguidos, sem pausas, até perceber que aquilo lhe tirava o foco de se inscrever nos sorteios e deixou o DS de lado. Os objetos acumulavam-se e quase não havia espaço para eles. A maioria era feita de produtos cuja utilidade era próxima do zero. Apenas um monte de lixo que custava muito caro.
Começou a ficar inerte. Às vezes, ficava apenas deitada com a cabeça sobre a almofada verde, pensando em Fiona e em quantos dias teriam se passado. Cada vez mais sentia medo. Medo do hacker, medo da produção do programa com suas armas, medo de Atena. Perdeu a noção de espaço-tempo. Fiona dissera que a acharia. Ela olhava com esperança para a janela, entre as grossas grades, cega pelas luzes neon. Imaginava se alguém a buscaria, mas estava sozinha. Sentia raiva de Atena e sabia que fazer nada lhe prejudicava, pois não lhe traria audiência.
A produtora ficou com raiva nos primeiros dias. Voltou a usar daisy, mas as ideias não vinham. Quebrou uma garrafa de uísque na cabeça de um estagiário, o que lhe deu um insight magnífico sobre o que deveria fazer para sua ratinha se movimentar.
No dia seguinte, havia algo diferente na água colocada pelo programa. A água era sempre colocada quando Vênus dormia, para que ela não tivesse contato algum com seres humanos ou IAs. Ela apenas via o drone ou o holograma de Anima. Tentava conversar com a IA, mas ela estava ali para falar com o público, e falar sobre os patrocinadores do programa.
O resultado foi exatamente o esperado pela produtora — a euforia de Vênus era inigualável. Ela se inscrevia em mais sorteios do que o normal. Dançava, mesmo com a perna manca. Em um frenesi, jogava seu próprio corpo contra as paredes do minúsculo lugar. Todavia, quando o efeito passava, a depressão que vinha era intensa. As crises de Delirium corporis eram ainda piores. Deitava-se no chão e lá ficava, tremendo, ansiosa pelo próximo gole de água.
Depois de um ano presa, Vênus finalmente ganhou roupas. Um macacão fosforescente advindo de uma revista de moda adolescente. Vestiu, mas agora se sentia estranha com roupas. Não precisava do macacão. Tirou e deixou guardado em um canto da kitnet.
Vênus paulatinamente esquecia-se do que fora a vida antes do Morra ou ganhe!.
5.
Se aquele babaca do Sam145X tinha conseguido adentrar o sistema do Morra ou ganhe!, então Fiona também conseguiria. Ela sempre tentara seguir o lema que sua mãe lhe ensinara quando estava viva: “Se um homem consegue fazer, você também consegue”.
Todos os dias, quando acordava, a primeira coisa que fazia, ainda deitada, era acessar o pay-per-view e ver como Vênus estava. Sabia que ela sofreria, mas não imaginava que lhe torturariam daquela forma. Precisava ajudá-la. Pediu férias para o dono do ônibus de DNA, mas ele apenas riu. A palavra “férias” era inexistente em seu vocabulário. Foi demitida. Após tantos anos sendo explorada, ainda ouviu que havia filas e filas de pessoas e, inclusive, IAs desesperadas para trabalharem no ônibus de DNA. Viu o acontecimento como um sinal para finalmente meter o pé na porta. Alugou uma pistola com Hasuke e dedicou-se a procurar o lugar onde Vênus estava.
Em 2084, todos os jovens eram hackers. Tudo começara dezenas de anos antes, com a pirataria e torrents ingênuos de filmes e séries de TV, mas a tecnologia avançara e os jovens passaram a encarar a Rede como uma realidade mais “real” do que virtual. Fiona cresceu na comunidade hacker. Já havia ouvido falar de Sam145X; ele era como um herói cultural naquele meio. Os fóruns só falavam dele e da recente obsessão que ele adquirira pela “selvagem”.
Em uma dessas reuniões nos fóruns, Fiona conseguiu uma informação privilegiada. Viu que um dos usuários, amigo de Sam145X, citou um instalador esquecido. Então era isso que ele estava fazendo! A equipe do programa, na hora de instalar o software na mente de Vênus, deixou um instalador esquecido, uma espécie de senha.
Fiona acessou o instalador, seguiu as opções que apareceram e escolheu uma nova senha administrativa, mas não sem antes rir da senha que Sam145X reescolhera – “Ela-será-minha”. Fiona riu, e a risada solitária logo se tornou um ataque de riso. Ele não sabia que Vênus viera de um matriarcado anarquista? Ela nunca poderia ser dele. Ela não acreditava na propriedade privada.
As mãos de Fiona suavam enquanto ela gravava uma mensagem para Vênus. Tinha que ser discreta e rápida. Menos de três segundos, para que a produção do programa não captasse. Com a máxima calma que conseguiu reproduzir, disse:
“Eu estou indo te buscar”.
Quando Vênus acordou e ouviu essa frase, achou que estava sonhando. Mas a mensagem fora tão real quanto a daquele hacker maluco que a atormentava. Fiona mencionara que era hacker no encontro que tiveram; ela poderia encontrá-la. Era essa a única esperança que Vênus alimentava todos os dias antes de seguir para a rotina de entrar na Rede e se inscrever nos sorteios de objetos inúteis.
Naquele dia, a voz eletrônica costumeira chamou, mas não era um drone quem estava na porta. Era Fiona vestida de entregadora de pizza. A produção não se assustou. Às vezes, alguns humanos e IAs ainda faziam entregas. As duas se olharam, mas evitaram qualquer tipo de expressão. As câmeras voavam em volta da entrega presente nas mãos de Fiona. Quando ela abriu a tampa da caixa, não havia uma pizza, mas uma pistola. Com sua arma, ela atirou nas pequenas câmeras com pontaria perfeita.
Fiona estudara o prédio e sabia como elas deveriam sair dali sem serem pegas. Pegou a mão de Vênus e correu, mas ela estava muito fraca após todo o tempo presa na kitnet. Mancava, quase caía a cada passo que dava. Quando passava por uma janela e se deparava com a luz fraca que saía do céu cinza de São Paulo, seus olhos fechavam-se, como se estivesse cega. O pudor voltou; tentava cobrir seu corpo e os diversos hematomas que haviam aparecido.
“Nós precisamos correr, Vênus!”, Fiona gritava.
Vênus caiu no chão. Sua perna doía muito. Fiona tentava pegá-la nos braços e carregá-la, mas não aguentava o peso. As duas ficaram caídas no chão, olhando-se.
“Não vou conseguir sair daqui. Nunca”. Vênus começou a chorar. “Eu não vou ganhar, eu vou morrer”.
Vênus apontou para a perna que começara a necrosar.
Fiona também não conseguia mais segurar as lágrimas. Beijou a garota. Ainda tentava pegá-la nos braços.
“Você vai sair. Você está chegando perto do um milhão. Eu vou criar um plano melhor. Eu vou voltar”, Fiona dizia em um frenesi desesperado.
Atena apareceu com os seguranças. Todos seguravam suas metralhadoras semiautomáticas como se fossem seus filhos.
“Ora, ora, olha só quem está apaixonada”, ela riu. “Ratinha, de volta para a gaiola.”
Vênus, ao passar pela produtora, reuniu todo o seu ódio e toda a sua energia e cuspiu no rosto de Atena. Tudo o que ela pôde fazer foi reagir com bom humor e limpar o cuspe.
“Temos uma ratinha que ficará sem sua águinha hoje”.
Morra ou ganhe! já não era mais a vanguarda televisiva que um dia fora. Atena conseguiu comprar seu novo e caríssimo corpo de 20 anos e adquiriu novamente a atenção dos chefes da emissora. Estava preparada para filmar o piloto de seu próprio reality que exploraria o complexo de Édipo — mulheres seriam colocadas em situações de perigo extremo com seus maridos e seus pais e teriam que escolher apenas um para salvar.
As passagens do teletransporte já estavam compradas. Tudo o que Atena precisava era fazer com que sua ratinha ganhasse um milhão. Os prêmios ficaram cada vez mais aleatórios e os temas dos episódios também. Após a visita de Fiona, o uso de cocaína ficou ainda mais intenso para manter a participante do show em pé.
Vênus não fazia ideia do quanto tinha ganhado em dinheiro, mas sentia-se cada vez mais sufocada pela quantidade de objetos presentes na pequena kitnet. Quando estava prestes a fazer um apelo para as câmeras que orbitavam ao seu redor, um holograma de Anima apareceu. Ela não conseguia entender muito bem o que a imagem dizia, uma vez que, com um estrondo, vários homens armados entraram no local e a pegaram. Sentiu que injetaram algo em seu braço. Novamente.
Quando acordou, estava no meio do nada. Já não estava na kitnet, mas continuava nua. Ao seu redor, estendia-se uma grande cortina vermelha. Ouvia, ao longe, um zumbido. A plataforma em que pisava começou a se mover com rapidez. Tentou acessar algo pela sua mente, mas não conseguia. A opção de acesso à internet estava inviável no momento.
Quando a plataforma finalmente parou, a imensa cortina caiu. Uma festa báquica encontrou Vênus. Uma plateia de espectadores do programa estava ensandecida. Possuíam cartazes dizendo que a amavam. Sam145X tentou invadir o local, mas os seguranças o impediram. Descobrira-se que ele era apenas um garoto de 13 anos, muito magro, que vivera a vida toda na Rede. Nada parecido com as fotos que ele usava. Anima batia palmas e mandava beijos para a garota, que tentava esconder seu corpo, provocando risadas de todos os que estavam presentes. Todavia, todos já haviam visto o que ela tentava esconder. Já haviam até mesmo comprado todas as revistas que saíram.
Anima lhe entregou a prótese.
“Depois da cirurgia, você poderá dançar”, e piscou.
Ela finalmente havia ganhado o que precisava, mas sentia como se tivesse perdido muito mais. Olhava hipnotizada para o seu prêmio. Então era aquilo que tanto desejara. Parecia mais pesado na vida real. Já não havia algo faltando dentro de si. Conseguira.
Procurava Fiona em todos os lugares, mas não via os gigantescos cabelos azuis de sereia em lugar nenhum. Havia desistido dela? Por que ela não criara outro plano, afinal?
Os repórteres debatiam-se com violência, afoitos pela melhor forma de gravar um vídeo da vencedora. Era caótico. Vênus seria a manchete de todos os veículos da imprensa. Seu simples vestido branco com o qual chegara na cidade logo se tornaria a mais nova tendência em São Paulo.
Atena, dos bastidores, chamava Vênus com uma das mãos. Suas malas estavam ao lado. Logo partiria.
“Ratinha, você já pode ir para a sala de cirurgia”, disse, passando a mão sobre o cabelo desgrenhado de Vênus, de forma maternal.
Os IAs da equipe médica, todos vestidos de branco, colocaram-na em cima de uma maca. Sentiu que dormia lentamente. Ao acordar, não mancava mais. Sua perna fora substituída pela mais nova perna Gênesis que havia no mercado, feita do silicone chileno e com as ligas de aço trazidas do Japão. Ela desceu da maca e dançou. A coreografia era triste e melancólica. Dançava os movimentos reservados para os dias de luto em Themi. Os IAs olhavam, parados, em sua direção. Nunca haviam visto um ser humano expressar tanta dor com o próprio corpo — e com pedaços de metal.
Ao sair do hospital, Fiona a esperava na porta.
“Atena me manteve presa até o programa acabar! Eu juro!”
As duas se abraçaram por uma eternidade. Quando se soltaram, Vênus viu que havia malas junto à garota.
“Para onde você está indo?”
“Eu não quero mais ficar nesse lugar horrível. Essa cidade me enoja”.
Então Vênus esboçou um sorriso e respondeu com segurança:
“Eu conheço um lugar para onde nós podemos ir”.
7.
Fiona não demorou a se acostumar com Themi. Gostara particularmente do gosto da maçã. Nunca sentira algo parecido com aquilo em São Paulo.
“É real mesmo?”, sempre perguntava.
As mulheres se uniam ao redor da moça e faziam gigantescas tranças com seus cabelos azuis. As pequenas meninas brincavam de roda com elas. Fiona tentara acessar a internet, mas vira que ali não havia sinal. Não fazia diferença.
A reação da Avó ao ver que Vênus tornara-se ciborgue fora de dor, mas a perdoou assim que a assistiu dançar novamente. Quis saber se haviam machucado Vênus da mesma forma que machucaram a si no passado. Ela disse que nunca mais voltaria para lá. Agora entendia o ódio que seu povo sentia por aquele lugar. Agora sabia o que era ser explorada, subestimada e manipulada como um pequeno fantoche. Queria justiça. Queria colocar o mundo em chamas e mudar tudo o que vira. Mas não agora.
Agora, ela aproveitaria o seu lar com a mulher que amava.
Não demoraria, no entanto, a voltar a São Paulo. E, quando voltasse, estaria preparada. Prometeu para si mesma que mais nenhuma garota sofreria o que ela sofreu naquela cidade. Sentia o cheiro da revolução chegando. Sentia o cheiro do caos. Olhava para as mulheres fortes que moravam em Themi e via um exército. Fiona traria para o lugar todo o aprendizado que elas precisavam sobre a cidade. Vênus não deixaria que elas sofressem com o Delirium corporis. Iriam começar a estudar e construir, no futuro, as próprias próteses para que mais ninguém precisasse se vender em São Paulo.
Elas não teriam de viver isoladas. Podiam levar suas ideias para as classes oprimidas que viviam nas ruas perigosas daquela cidade luminosa. Para aqueles que pediam esmolas e eram atropelados pelas cybermotos em alta velocidade.
Diferente do que Atena pensava, Vênus não era uma ratinha. Ninguém fazia ideia do que ela aprendera em seus momentos de isolamento. Sempre que ficara inerte no chão, saboreando a dor agridoce da necrose de sua perna, todos pensavam que ela já não existia. Mas era nesses momentos que sua alma pulsava com mais força. Seus olhos viajavam nos lampejos de luzes neon que via pela minúscula janela. Ela pensava em justiça.
Vingar-se-ia de Atena. Vingar-se-ia da produção e da emissora. Atacaria os chefes. Ela não se esqueceria de ninguém.
Enquanto divagava, Fiona aproximou-se e a abraçou.
“Fiona, eu vou precisar de sua ajuda com algo”.
“Você quer se vingar, não quer?”
“Como você…?”
“Eu também sinto isso. Em 2084, não conheço ninguém que tenha vivido em São Paulo que não tenha pensado em vingança”.
As duas se abraçaram. Viveriam no último matriarcado anarquista, por enquanto. Até que a revolução as chamasse.
Laisa Ribeiro é graduanda em Estudos Literários na Unicamp, é feminista e tem um conto publicado na Revista Gueto.