“Comecei a escrever sobre poder, porque era algo que eu tinha muito pouco”
Essa declaração de Octavia Butler se encontra logo no início do livro “Kindred: Laços de Sangue” e a editora Morro Branco não poderia ter escolhido melhor afirmação para nos preparar para o que vem a seguir.
Essa obra é grandiosa desde a década de 1970, quando vendeu mais de meio milhão de cópias, sendo apenas o começo do seu (mais que merecido) reconhecimento. Autora de mais de 14 livros, Octavia é a primeira escritora negra a ser considerada como uma das mulheres da ficção científica e venceu os principais prêmios desse gênero como Nebula, Hugo e MacArthur Fellowship, provas de seu inegável talento com as palavras.
Uma viagem ao passado
Uma estória sobre viagem no tempo que não conta como a viagem no tempo acontece. É isso mesmo. Esqueça toda a ideia de que você encontrará uma linha que explique como a viagem no tempo é possível, não é sobre isso que Octavia quer escrever, não é sobre isso que nós precisamos ler.
“Kindred” conta a estória de Dana, uma mulher negra de 26 anos que acaba de se mudar para sua nova casa com Kevin, seu esposo. No dia de seu aniversário, Dana está arrumando a estante de livros quando começa a se sentir mal e ao, retomar o controle de seu corpo, se vê à beira de uma floresta, próxima a um rio onde um garotinho está se afogando. Sem pensar duas vezes, Dana corre para a água e salva a vida do garoto. Como resposta, ela se vê diante de um cano de espingarda e antes que possa tomar qualquer atitude se vê novamente em seu apartamento totalmente suja e molhada.
Como isso é possível? O que foi que aconteceu?
Dana e Kevin tentam lidar com o acontecido. Para ela, a experiência foi muito real: ela se transportou para aquela floresta e salvou o menino ruivo. Para ele, ela se locomoveu muito rápido de um ponto da sala a outro e, embora nada faça sentido, apareceu toda suja. A questão é que isso volta a acontecer de novo e de novo….
A cada viagem de Dana as coisas ficam mais claras e, para ela, mais perigosas. Dana é uma mulher negra que involuntarimente viaja no tempo e passa a viver por um período no século XIX em uma fazenda escravista localizada em Maryland. Nesse ambiente totalmente hostil para qualquer pessoa negra onde a escravidão, a violência, a morte e as doenças são comuns, Dana percebe que tem uma missão que se apresenta cada dia mais irrecusável: ela precisa manter Rufus, o garotinho do rio, vivo. Afinal, ela descobre que ele é seu antepassado e, se a história dele não se unir à da escrava Alice, a sua própria existência corre perigo. Todas as chances estão contra Dana, sendo que a sua única alternativa é tentar sobreviver àquele passado para que possa voltar ao futuro. Até quando isso será possível?
Análise Crítica e uma viagem ao presente
“Kindred” é diferente de todo tipo de literatura de ficção científica que eu já li. É um daqueles livros marcantes e apaixonantes que você pode até demorar para ter coragem de começar, mas quando começa dificilmente consegue largar. No processo a sua vida muda. O motivo? É uma obra de arte impactante que nos leva a refletir e repensar atitudes e pensamentos, que nos leva ao nosso íntimo; é o tipo de livro que nos transforma e a transformação é necessária.
Em “Kindred”, Octavia nos transporta para um dos cenários mais vergonhosos da história da humanidade: a escravidão. Como pudemos fazer isso? Como? A resposta é mais simples e por isso mais dolorosa do que queremos aceitar. O que nos separa de nossos antepassados que escravizaram e exterminaram tantas pessoas e do antepassado dos negros e negras que conhecemos de serem as vítimas dessa atrocidade, é apenas o ano em que nascemos.
Tal pensamento nos coloca em cheque e nos faz perceber que ainda temos muito o que caminhar enquanto falamos de direitos iguais e reconhecimento de espaço de fala e vivência. O racismo existe e ainda mina as oportunidades e acesso de muitas pessoas e isso é, hoje, inaceitável. Cabe a nós repensarmos nossas ações, desconstruirmos nossos pensamentos quantas vezes forem necessárias e aprender a construir uma sociedade que seja mais justa. Reconhecer nossos privilégios e a nós mesmos como consequência desses atos de atrocidade pode ser o primeiro passo para a mudança.
Quarenta anos após seu lançamento, “Kindred: Laços de Sangue” chegou ao Brasil através de duas edições muito bonitas e cuidadosas da Editora Morro Branco. A edição de luxo traz capa dura, informações sobre a autora e uma proposta de questionário de pontos a serem discutidos após a leitura. Outro ponto positivo dessa edição é o marcador de tecido fixo, além das páginas amareladas que deixa a leitura muito mais confortável, com separações por páginas pretas. A tradução de Carolina Caires Coelho é magnífica. A leitura é muito fluída e vai muito rápido, desde o início da primeira página até a sua finalização. Por fim, a história é fechada, fica as marcas de uma obra tão boa em nossas mãos.
Nota
Garanta o seu exemplar e boa leitura!
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Nome: Kindred: Laços de Sangue
Autor: Octavia E. Butler
Tradução: Carolina Caires Coelho
Edição: 1ª
Editora: Morro Branco
Ano: 2017
Páginas: 448
ISBN: 9788592795207
Sinopse: Em seu vigésimo sexto aniversário, Dana e seu marido estão de mudança para um novo apartamento. Em meio a pilhas de livros e caixas abertas, ela começa a se sentir tonta e cai de joelhos, nauseada. Então, o mundo se despedaça.
Dana repentinamente se encontra à beira de uma floresta, próxima a um rio. Uma criança está se afogando e ela corre para salvá-la. Mas, assim que arrasta o menino para fora da água, vê-se diante do cano de uma antiga espingarda. Em um piscar de olhos, ela está de volta a seu novo apartamento, completamente encharcada. É a experiência mais aterrorizante de sua vida… até acontecer de novo. E de novo.
Quanto mais tempo passa no século XIX, numa Maryland pré-Guerra Civil – um lugar perigoso para uma mulher negra –, mais consciente Dana fica de que sua vida pode acabar antes mesmo de ter começado.
“Impossível terminar de ler Kindred sem se sentir mudado. É uma obra de arte dilaceradora, com muito a dizer sobre o amor, o ódio, a escravidão e os dilemas raciais, ontem e hoje” – Los Angeles Herald-Examiner.