Em Nome da Paz

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“INTERIJENTSU SHIKIBETSU! O PRODUTO QUE LHE PROPORCIONARÁ A PAZ DE BUDA!”

 

O SINAL TOCA E MEUS ALUNOS deixam a sala de aula, e eu mais uma vez estou afogado no silêncio do intervalo. Sento-me e tomo um gole de café para em seguida me levantar. Suspiro ao notar o quadro. Nossas regras são de limpá-lo antes de sair. Nós, professores, odiamos temos de fazer um o trabalho do outro. Não apenas pela diretriz, mas também por questão de educação, devemos limpar a lousa antes seguir para próxima aula.

Hoje faço a coisa certa e não esqueço de apagar a lousa. Não preciso me estressar e conversar com o Doutor Ricardo novamente; a senhorita Amélia não irá me dirigir uma palavra sequer; o Diretor não virá com seus panos-quentes. Não há nada sobre meu birô; espero cada aluno sair e arrumo todas as mesas e cadeiras; desligo o ar-condicionado. O que eles têm para falar dessa vez?

Com o semblante curioso de sempre, Pedro surge na porta. Ele passara toda aula em silêncio. “Nenhuma dúvida?”, eu perguntara à classe. Nenhuma, respondeu o silêncio. Não fora necessariamente mentira, e sim ocultação da verdade. Numa sociedade onde a paz vem em primeiro lugar, entendo: nem todas as verdades devem ser ditas.

“Pode me dar licença, Professor?”

“Sim, Pedro. Feche a porta, por favor”, regras são regras. “Temos dez minutos. Qual é a dúvida da vez?”

“Coisa rápida”, sempre é, Pedro, penso. “Então haviam guerras antes do Primeiro Ciclo?”

“Sim, exatamente…”

“E alcançamos a paz há trinta e três ciclos… Isso quer dizer que meus avós presenciaram os Conflitos?”

“Talvez… Muitos jovens da época presenciaram. E foram eles, como eu disse na aula, que moveram a Revolução…”

“Os avós do senhor participaram dos Conflitos?”

Com as mãos trêmulas, respiro fundo. Aquelas palavras evocam uma série de memórias, das quais eu não faço questão de recordar. Porém, apesar do meu desejo de expulsá-lo dali a pontapés, as Regras deixam claro: todas as perguntas feitas a um Professor devem ser respondidas. Pedro sabe bem disso; por isso pergunta. Sua educação espanca minha paciência.

“Sabe o que é um órfão, Pedro?” Não houvera um único dia, nos últimos meses, sem que uma das regras fosse quebrada.

“Sim, sei sim, Professor.”

“Pois deixarei claro: eu sou órfão.”

Os olhos dele buscam um falso consolo no chão.

“Espere. Não fique tímido. Você queria saber, não é?” (Alguma voz no fundo da minha mente pede calma.) “Não tive pais, nem avós, nem irmãos. Nada como uma família. Passei minha juventude inteira como um Acolhido.” (É o SensaTech 1.6.) “Sabe como é ser um Acolhido?”

Sua língua está pregada na boca; no entanto, não fico surpreso; as crianças são assim.

“Ser Acolhido é servir ao governo”, percebo meu tom de chacota. “Afinal, se você não tem pais nem dinheiro, e tem de ser sustentado pelo sistema, é o mínimo que se espera, não é?”

O silêncio faz-se por completo e dessa vez eu não tenho o canto do ar-condicionado como trilha sonora. O vírus da dúvida é removido da minha cabeça. Relembrar sempre tem esse efeito.

“NÃO É, PEDRO?”

Minha voz se sobressai ao sinal anunciando o próximo horário. A conversa me impede de perceber a pontualidade da porra da senhorita Amélia, na porta esperando ansiosamente por sua aula. Ou para me ver infringir mais uma regra. Ela adentra; eu grito com Pedro; ele desaba em lágrimas; ela desata em gritos de protesto; meus olhos sem expressão encaram os dela.

“EU SÓ FIZ UMA PERGUNTA! EU SÓ FIZ UMA PERGUNTA! TIA AMÉLIA, TIRE ESSE MONSTRO DAQUI!”

Moleque-mimado-filho-de-uma-puta, planejou tudo direitinho. Tinha acabado de retomar o juízo e outra vez estava pronto para perdê-lo… mas nenhuma Regra quebrada ainda. Minha paciência se desfaz tal qual a sensatez que deveria ter sido suprida pelo SensaTech 1.6.

(Produtos baratos de merda, nunca funcionam!)

“Professor”, a voz da senhorita Amélia zune puxando dados do meu cérebro; “está infringindo Regras… como de costume. Acompanhe-me até a Diretoria, por favor.”

“Como é?” Fito seus olhos profundos, minhas mãos tremem.

Mantenha a calma, mantenha a calma, mantenha a calma… O SensaTech 1.6 finalmente funciona… tarde demais.

“Me acompanhe até a Diretoria, professor…”, repete ela, pausadamente. Minha expressão a faz recuar.

“O que vejo é o seguinte: Pedro ser mimado pela senhorita, senhorita Amélia. E perdoe-me, mas quem está infringindo Regras aqui é a senhorita!” Enfatizo cada palavra. Entre os alunos assistindo tudo da porta da sala, o silêncio respira ofegante. “E você, senhorzinho Pedro, sabe o que as Regras determinam: nada de histeria. Portanto, eu mesmo o levarei ao acompanhamento psicológico.”

O primeiro passo para contar uma boa mentira: acreditar nela. Mentir é contra as Regras, mas eu quebrei uma na segunda-feira; quebrar outra não fará mal. Carregadas de confiança, minhas palavras me devolvem a razão. As pessoas novamente me veem lúcido. A verdade é: fico lúcido apenas por uns breves instantes; agora, outra vez alienado, finjo estar tudo bem.

O Diretor surge à porta (acompanhado de dois integrantes da Força); suas roupas brancas tentam impor uma falsa superioridade.

“Ora, ora, ora… É melhor manter a calma, não, Professor?”, diz, abrindo os braços. “Vocês!”, dirigia-se aos alunos. “Sabem que devem seguir às cabines de oblívio. A aula da senhorita Amélia acaba de ser cancelada.”

“Diretor, o senhor está enganado. O estresse aqui parte apenas da senhorita Amélia. Estou no controle da situação!”

“Ora, não me tome como idiota. Assisti toda a discussão pelas câmeras, Professor. E, mesmo que não tivesse assistido, seu precedente de estresses nos últimos três meses está me preocupando. O mais suspeito de desordem seria você.”

“Eu não causei desordem! Foi esse moleque!” Meu tapa acertou a cabeça do mimoso ator de um metro de altura. Suas lágrimas escorriam; quando elas acabassem, iria fazer escorrer sangue…

“Senhorita Amélia, pode acompanhar Pedro à cabine de oblívio, por favor?”

“Sem dúvidas, Diretor.”

“Obrigado, muito obrigado, senhorita Amélia.”

Ela sai pela porta abraçando o menino, nenhum deles olha para trás. É como se eu protagonizasse o Mito do Mendigo: invisível perante a sociedade. Talvez mendigos não fossem só mitos; talvez algumas pessoas se tornassem invisíveis.

“Professor, terá de me acompanhar até o consultório do Dr. Ricardo outra vez. Sabe o que as Regras dizem sobre isso, não?”

“Sei muito bem.”

“Ora, como sempre, presunçoso…”

Engulo minhas próprias palavras, quando as doses de hormônios do SensaTech 1.6 tentam controlar meu bom-senso; isso, porém, não muda o passado.

“Mas eu lhe digo, assim mesmo: se um cidadão quebra as diretrizes do Código de Regras de forma periódica, deve ser enviado para tratamento psicológico na Clínica, pois isso indica um distúrbio.”

Aquela era última semana do mês, um dos últimos dias. Não notei quantas vezes infringi as Regras, fui descuidado. O suor escorre por meu pescoço na vã tentativa de me acalmar. Inspiro, expiro, inspiro, expiro. Minha dor de cabeça decreta o fim da conversa. É o SensaTech 1.6 tentando manter minha sensatez. Como num monitor, quando a energia acaba, a escuridão vagarosamente toma minha mente. O dispositivo administra doses de calmantes direto na corrente sanguínea.

“Mas sabe, querido Diretor, quero que as Regras vão se…”

Um segundo e tempo se desfaz, tal qual minha consciência.

 

* * *

 

Acordar de braços e pernas afivelados me desespera. As doses de Clorpromazina do meu regulador de bom-senso parecem ineficazes. Ela está me olhando, e suas roupas brancas, como tudo ao redor, me dão tontura. Há mais dois. Um deles tem a pele escura; foco nela para manter a consciência.

“Onde estou?”, pergunto e olho nos olhos negros dele.

“Recebendo tratamento adequado, senhor. Não se preocupe.”

“Tratamento?” O pulsar dos meus batimentos acelerados são inibidos pela latejante dor no córtex.

“Não se preocupe. O Doutor fez alguns exames. Logo ele explicará tudo ao senhor.” Seu sorriso branco-artificial me dá náuseas. “A Clínica vai te disponibilizar o melhor serviço, graças ao plano de saúde integral dos professores.”

“O quê?” Minha cabeça pulsa dor. “Eu disse que não podia vir para Clínica…”, quero gritar, chamar atenção, porém toda aquela dor drena minhas forças. “Me tirem da…” e a voz suicida se enforca em minha garganta.

No crachá leio: Dra. Fernanda Hernandez. Ela se aproxima com uma seringa entrededos; a agulha despeja alguns mililitros no meu soro. Daqui a pouco não enxergarei nada, penso. Estou enganado. A substância dilata minhas pupilas e lentamente a dor escorre por meus ouvidos, até sumir.

“Tudo bem agora?”, Dra. Fernanda pergunta instantes depois.

Nada bem, me sinto grogue. Minto, ou então ficarei aqui por mais tempo.

“Sim, tudo bem, doutora.” Procuro onde focar a visão, as coisas parecem distantes. Meus pensamentos orbitam uma massa confusa e doída.

O enfermeiro se aproxima e checa minha pressão (sinto cada veia arder); o monitor de sinais parece ter defeito, as linhas subitamente riscam o monitor (tão latejante, quase desisto), em seguida, repetem um padrão nulo.

Isso significa: estou morto!

“Tudo bem?”, pergunta Dra. Fernanda. “Removi os aparelhos, já que está bem. Bernardo e Túlio o ajudarão com a cadeira de rodas.”

“Cadeira de rodas?”, é quando noto não sentir as pernas. Quando tento mexê-las, não obedecem. “O que fizeram com minhas pernas…?!”, meu tom começa alto e baixa até quase silenciar no fim da frase.

“Estão temporariamente sedadas. Mas não se preocupe; o efeito passará em menos de meia hora.” Não está tudo bem! “Levaremos o senhor ao Dr. Ricardo, que explicará tudo. Depois, os meninos te levam para o Chalé.”

“Chalé?” As palavras soam como a estranha sensação de se perceber respirando, previsível apesar de incômoda.

“Exatamente. É onde o senhor se hospedará nos meses de tratamento…”

Me colocam na cadeira com um cuidado simulado.

Tento falar; minha voz some outra vez. Meus braços não respondem aos comandos. Os enfermeiros empurram minha cadeira, enquanto tento manter o equilíbrio e o frágil fio de consciência.

Após deixarmos o leito, seguimos por um corredor; o cheiro dos hospitais me lembra a presença constante da morte. Através das portas transparentes consigo distinguir pacientes ficando para trás. Aproximo-me do fim do corredor e convergimos numa porta opaca, diferente da dos leitos. Uma placa de metal fixada na altura dos olhos (se eu estivesse de pé) indica: Dr. Cunha.

Normalmente, visitar a Clínica é incomum a professores. Contudo, nos últimos meses, tornara-se comum para mim. Ameaças me rondavam há semanas. Por isso atualizara meu ultrapassado Social Prudence System pelo SensaTech 1.6. Afinal, desde o fim de setembro eu precisava manter o que me restava de sanidade. Depois da separação as coisas não andam fáceis.

Túlio bate e em seguida abre a porta, Bernardo empurra a cadeira sala adentro. Atrás da mesa, o Dr. Ricardo me espera. Seu semblante diz o suficiente: acontecerá comigo se eu não for forte.

 

“SOCIAL PRUDENCE SYSTEM! UMA DOSE DE PRUDÊNCIA E ENFRENTAR OS PROBLEMAS COTIDIANOS SERÁ EASY!”

 

“EM NOME DA PAZ.” Os enfermeiros deixam-nos a sós. “Bom revê-lo, Professor.”

Conheço os discursos. O meu e o seu. As palavras dele podem me atirar no pior lugar da nossa sociedade, as minhas podem me libertar novamente; é um xadrez verbal. O mais articulado convencerá o Diretor, que escuta tudo remotamente. Neste momento percebo quão valioso é convencer meus alunos a permanecer em silêncio. Porém, diariamente o Dr. Ricardo dá notícias de morte, doenças terminais, envios ao tratamento. Sua frieza, por si só, é suficiente na arte do convencimento. Quantas vezes ele quase me convenceu…

“Professor, o senhor está perdendo o controle”, me diz. Já disse antes. Várias vezes.

“Estou mesmo.” Não nego como sempre faço no início. Não sei por que mudar a jogada.

“Tratamos cerca de trinta e oito alunos. Os traumas podem ser irreversíveis em pelo menos doze, sendo que dois foram enviados para a Clínica. Tem noção do impacto disso, Professor?” Seu lance não se apoia em prudência nenhuma; o Doutor começa com um xeque.

“Perdoe-me, Dr. Ricardo, mas creio que isso não tenha ligação com as minhas palavras. A senhorita Amélia. Ela, sim, provocou a situação toda, enquanto eu colocava um dos meus alunos em seu lugar.”

Os olhos do Dr. Ricardo perdem-se em mim, depois focam no monitor reproduzindo o vídeo das câmeras de segurança.

“NÃO É, PEDRO?”, cospe o alto-falante para me dedurar.

“O que exatamente Pedro fez de errado, Professor?” Seu semblante dramatúrgico falsamente expressa preocupação.

“Ele tinha dúvidas quanto ao Conflito. Queria saber demais… Sua tendência, como o senhor deve ter percebido ao assistir, indicava dúvidas. E me diga, Dr. Ricardo, com seu conhecimento tão amplo do funcionamento da mente humana, me diga: o que as dúvidas suscitam?”

Com meu cavalo derrubo seu bispo. O olhar marejado me fita; os lábios balbuciam. Não é a resposta para minha pergunta. Eu mesmo terei de dá-la, apesar do medo de dizer.

“As dúvidas suscitam a Revolução!”

Ele mexe numa gaveta; tira uma seringa dela. O Doutor está inquieto na cadeira. É pra mim? A mesa nos separando parece estreitar. Não. Apenas brinca com a agulha, esquecendo-se de mim.

“Começa com uma pergunta aqui e ali. Primeiro o professor, os tios, os pais e os avós. E os avós sabem bem o que aconteceu… Ao menos os que ainda são vivos e conseguem falar…”

Percebo como a força das minhas palavras contraria os ideais do Dr. Ricardo; ainda que atingido por elas, ele compreende a ideologia na qual se sustentam.

“Professor, algo nos eventos de trinta e três ciclos atrás o incomoda?” Ele desvia o olhar e espera por minha resposta. “Não acredita na Paz que construímos?”

“Não coloque palavras na minha boca, doutor.”

“Sabe quantos homens se foram em nome da Paz?”

“Não entendo aonde quer chegar. Só falei a verdade.” Mantenho algum tom de ingenuidade nas palavras; no entanto, soa um tanto irônico.

“O Professor”, expira, ao se concentrar na seringa, “por acaso, está diminuindo o esforço das pessoas que deram a vida para construir essa sociedade?”

“Eu não falei isso.”

“É, Professor, não disse. Mas… me responda: ultimamente o senhor não está em seu estado pleno, concorda?”

Talvez o SensaTech ainda tenha efeito, pois sinto minha pulsação diminuir e a clareza ser devolvida aos meus pensamentos. E o silêncio conta os segundos.

“Nós dois sabemos sua resposta: desde Carolina as coisas não andam bem.”

Não posso demonstrar fraqueza nem irritação. O juízo social baseado no Código tem razão, não eu. Disso eu sei; contudo, talvez não acredite.

“Convenceu o Diretor a não passar pelo Oblívio, mas vejo que agora…”

“Tenho ciência dos acontecimentos, Dr. Ricardo. Esquecer ou não: é uma escolha.”

“Sim, é uma escolha, mas apenas se tiver plenitude para escolher. Seu Índice Social vai de encontro a essa ideia…”

“Você enxerga esse descontrole? Porque eu não. Só consigo ver meu esforço como Professor. Devo me manter firme; do contrário, não há Paz na classe.”

“Professor, não é nada pessoal… mas não convence nem a si mesmo. Se isso é verdade, qual justificativa têm suas últimas visitas? Não responda. A situação é: eu quero o seu bem, quero que supere o fracasso do seu relacionamento. Pode escolher entre o Oblívio ou Clínica.”

“Não vou escolher nada!”

“Só queremos o melhor para o senhor, Professor.” Sua voz soa pacífica; sinto as veias pulsarem na minha têmpora. “Carolina escolheu o tratamento, reconhecendo seu descontrole. O senhor pode fazer o mesmo. Ajudará a superar.”

“Carolina só estava magoada! Nada daquilo deveria acontecer.” Minhas palavras são pequenas pílulas de desgosto.

“Já parou para pensar que talvez fosse o melhor para os dois?” Sua pergunta é corrosiva; minhas entranhas ardem.

“Não, não parei. Todos os relacionamentos têm bons e maus momentos…” Ele brinca comigo, como com a seringa. Contenho meus punhos apertados ao fitar seu pescoço.

“Se admitir sua insensatez, poderá ver Carolina novamente.” A sedução de vislumbrar esse momento não deveria mexer comigo.

“Não. A mulher que amei não é aquela mulher.” Carolina nunca mudaria.

O telefone toca. O Dr. Ricardo suspira; dessa vez não tem prazo, apenas ordens. O sorriso emoldurando seus lábios quase me faz levantar da cadeira e socar sua cara. Isso não adiantaria.

“Sim, sim, Diretor, eu entendo… Perfeito; os enfermeiros irão levá-lo. Não se preocupe com seu estado… O professor receberá o melhor tratamento possível!” A seringa está desguardada sobre a mesa. Meus olhos fitam sua garganta… Não tem nada para protegê-lo. “Sem dúvidas, Diretor. Ele ficará satisfeito com o resultado. Posso falar com Carolina, para visitá-lo na terapia…” Meus punhos cerrados tremem. “Talvez, talvez… O Professor será internado, como eu disse, então o tratamento poderá durar alguns bons ciclos…”

Não sinto minhas pernas, e isso parece fortalecer meus braços. De repente a pulsação é o combustível, não só do corpo como da alma. Pensamentos vislumbrados comprovam: o Dr. Ricardo tem razão. A ausência de sanidade possuiu, e não a mim: a ele mesmo. Tentam me afastar de todos, me prender, reprimir minhas dores… Malditos!

O Doutor desliga o telefone; no semblante traz a maligna satisfação de exercer seu trabalho. E penso se ele sorriu assim quando enviou Carolina ao Chalé… Respira fundo, ele e os segundos. Estamos paralisados.

“Tenho uma boa e uma má notícia, Professor”, e não enxergo sinceridade alguma nas suas palavras. “Qual quer receber primeiro?”

SensaTech 1.6, Social Prudence System, Judgement Civil Application, Interijentsu Shikibetsu… Nenhum implante manteria minha Paz; afinal, ela segue por água abaixo.

“Também tenho notícias, doutor… Boas e más. Comece com a boa e depois a má, farei o mesmo.”

“Como é?”, seus olhos buscam algo nos meus. Contudo, não há nada, não encontra nada neles. Volto-me à seringa.

“Por favor, fale. Me explicarei logo em seguida, doutor.”

“Tudo bem, sem problemas. Bem, a boa é que não precisará ser internado no Chalé. Estamos desenvolvendo um novo tratamento; talvez possamos ajudá-lo se aceitar ser cobaia do projeto. A má: se não aceitar o novo tratamento, possivelmente não encontrará Carolina no Chalé.”

“O que quer dizer com isso?” Talvez eu sempre soubesse.

“Quero dizer que Carolina não está mais internada, Professor.”

Ninguém nunca volta do tratamento. Todos sabem. Ninguém é burro para contestar… Seria falta de bom senso; assim, teriam o mesmo caminho dos outros: primeiro a Clínica e depois o Chalé. E por fim a…

“Ela morreu?” Mais uma prova: a sanidade se diluiu num mar de dúvidas. Os questionamentos são sintomas; minha doença é a mesma de um terço da nossa sociedade.

“Morte é uma palavra um tanto pesada. Mas…”

“Ela morreu, Doutor? Responda!”, minha voz se sobressai; ele recua.

“Não, professor. Não. Mas o que isso vai mudar?” Ele se levanta e abre os braços. “O senhor bem sabe: uma vez no tratamento…”, caminha a mim; todo meu corpo treme. “… ninguém mais…” É quase um sussurro abraçando meu ouvido.

Por um instante o tempo para. Minha vida são cenas desconexas diante dos meus olhos. Esse clichê geralmente faz referência à morte: toda sua vida num segundo… No entanto, eu sempre soube: a vida passar diante dos seus olhos não tem a ver com a morte, e sim com a liberdade.

Naquele instante, os nós se desatam, as correntes se partem, as amarras não existem mais.

Sinto o calor da sua voz sussurrar pescoço abaixo. As palavras ecoam crânio adentro: “ninguém jamais volta…” Aconteceu com Carolina, aconteceu com meus pais… Se um dia amei uma pessoa, aconteceu com ela. O pulsar das minhas veias repele a virosa sanidade que me resta. Sei o que devo fazer. São comandos expressos da loucura.

Ouço o sibilar assassino de uma voz feminina: “ACABE COM ELE!”

Não tenho certeza se é o SensaTech 1.6 ainda não removido ou a minha própria consciência armada da sanidade restante. O mais sensato a se fazer nesse momento é…

 

* * *

 

Minha mão afoga o grito prestes a lhe fugir boca afora. Com papel suficiente para fazer um laudo sobre mim descendo garganta abaixo, o Dr. Ricardo não consegue gritar.

“Qual o gosto da merda dos seus relatórios, Doutor?!”

Estamos no chão; seu pescoço sob meus dedos, meu corpo sobre seu tronco, seus arrepios sob minhas tremedeiras. A escrivaninha tombou. Nossos olhos encontram-se, os dele esbugalhados, os meus avermelhados. Os dele buscam algo pelo chão. Somos um só naquele momento. Um pecado.

Puxo-o pela garganta para em seguida atirá-lo contra o piso, e deixar o rastro de sangue colorir o branco ambiente estéril. Nós dois, em tais circunstâncias, soamos destoantes de todo mundo. O último homicídio, relatam, aconteceu há doze ciclos. Estou para mudar isso agora.

O Doutor tenta balbuciar, no entanto minhas mãos enforcam suas palavras. As veias saltam dos meus braços infectando o pescoço do Doutor; sinto-as, as minhas e as dele, sob as palmas das minhas mãos. Lembro de Carolina, nos últimos momentos: se comparada a mim, ela tinha sanidade para liderar nosso povo inteiro. E percebo: não tenho nenhum laço com essa vida, não há nada entre mim e a loucura.

Para minha surpresa, o Dr. Ricardo me chuta. Tombo de encontro ao chão e o vejo levantar catando migalhas. Apressado, abre a porta que dá para o corredor e chama por ajuda. Ele está estático do lado de fora; procura-me por precaução. O pontapé no saco me tirou o juízo; ao tentar me levantar, a pulsante ardência se mistura a uma dose de adrenalina se espalhando por todo o meu corpo. Com esforço e amparo da parede, estou de pé. Ao me ver, o Doutor se lança corredor afora, me deixando sozinho. No meio do caminho, ele topa com Túlio e Bernardo; a história mudou. Eles se voltam a mim; juntos, avançam para conter o potencial homicida. Os enfermeiros agora estendem as mãos enluvadas em látex e o Doutor traz a seringa.

Fecho a porta sem pensar. A chave na fechadura ajuda, entretanto não será suficiente; agora empurro a mesa do Dr. Ricardo contra a porta. Olho ao redor, preciso de mais peso, mais tempo. É quando me encolho entre a parede e a estante, apoio as pernas e uso toda minha força. Fecho os olhos e a força torna-se desnecessária. O grito avisa: tombei o móvel em cima da mesa.

Admito o sorriso delinquente estampado na minha face.

Escuto a primeira pancada.

“Ei! Professor? Saia já daí!”

A voz dele me lembra das Leis. Mentalmente folheio as páginas do Código… Gotas de suor passeiam por minhas costas: tentativa de assassinato é penalizada. Não há mais tratamento para mim, acabou…

“Professor, abra essa porta para que possamos conversar…”

Preciso de mais peso, mais tempo. Me enfio na fresta entre a parede e o armário, uso a parede como apoio para meus pés e estico meu corpo de forma a empurrar o móvel até o derrubar sobre a porta. Minha segurança está garantida; o essencial é pensar em algo melhor. Com o peso daqueles móveis, irão demorar para abrir a porta.

“O que… O que está fazendo… O que está fazendo, professor?!”

“Conheço seus métodos, Doutor… Estive de olho na porra da sua seringa! Não vão me pegar! Não vão me pegar, seus filhos da puta!”

“A seringa é falsa; uso-a para conter possíveis pacientes impulsivos. Professor, ninguém lhe fará mal; abra essa porta e levaremos o senhor para tratamento. Tudo ficará bem. O senhor só está doente.”

“E minha esposa, Doutor? Disse isso a ela?”

Nossas gargantas normalmente são salvaguardadas pelos implantes de sanidade… Porém, meu SensaTech 1.6 foi tão eficiente quanto tomar sopa de garfo.

E se o Doutor tem algum implante na cabeça? Não, não tem porra nenhuma. Isso é coisa para a massa de manobra, como nós. Afinal, precisamos ser mantidos sobre controle. O Dr. Ricardo Cunha, reconhecido acadêmico, respeitado por tantas universidades, Presidente da Associação de Paz e da Clínica de Tratamentos Psicossociais… Ele não tem merda nenhuma ligada no sistema nervoso; tem dinheiro suficiente para evitar isso. Quem garante que ele não fez parte da criação disso tudo?

“Sua esposa está viva, Professor…”

“Não! Ela morreu! Você mesmo disse!”

“Eu disse?”

Não, não disse. Aquilo me faz estremecer.

“Abra a porta e te explico o que aconteceu, Professor…” Eles não batem na porta, nem parecem tentar empurrá-la. O expediente dos enfermeiros deve ter acabado, o ambiente está calmo.

“NÃO!”, apenas o ambiente. Implante e nervos fritam na minha cabeça.

“Se abrir, prometo explicar o que aconteceu com Carolina, Professor.” Sua voz pacífica parece sincera; como todos nessa sociedade, o Doutor tem um talento nato para dramaturgia.

“SEU-MENTIROSO-FILHO-DE-UMA-PUTA!”

“Viu o que eu disse? Precisa se tratar, Professor! Provavelmente seu implante apresenta defeito. Um novo implante, aliado com algum tempo de tratamento, resolverá isso. Escute bem: já lidei com casos semelhantes ao seu antes e…”

“Não tenho nenhum PROBLEMA, Doutor! NENHUM PROBLEMA! VOCÊ tem problema! ELES têm problemas! Essa SOCIEDADE tem! EU ESTOU BEM!”

“Está bem? Não ouve as barbaridades que diz, não vê as coisas que faz, Professor? Tentou me matar, Professor… Tentou me matar! Está fora de si, não adianta negar.” Não sou nenhum idiota, ele mudou seu discurso. De ordens a pedidos educados. Não vão me manipular, não mais… Já chega!

“É o que merece pelo que fez com minha esposa!”

“Não fiz nada com Carolina, Professor… Quer saber? A culpa de tudo é SUA! Por isso surtou! Você cansou Carolina, cansou a mente dela com suas loucuras… POR ISSO ELA FICOU LOUCA!”

“MENTIRA!” O calor me invadindo não pediu permissão. “MENTIROSO DESGRAÇADO! Carolina cansou do Sistema! Cansou das imposições dessa merda de sociedade! Acha que sou idiota para cair no seu papinho?”

“Ela cansou das suas imposições, Professor, das suas loucuras! Nossa sociedade nada tem com isso!”

“Não? Assim como ela, estou sendo recriminado por me expressar!”

“Corrija-se, Professor… Sendo recriminado por perder o bom senso e incitar desordem na comunidade.”

“Enfie a desordem no cu da sua comunidade! Não sabe nada do que aconteceu, Doutor! NADA!”

“Eu sei, eu sei muito bem… Seus pais morreram, mas isso não é nossa culpa!”

“MEUS PAIS FORAM ASSASSINADOS NA LUTA CONTRA VOCÊS!”

“Baseado em quê faz tais conclusões?” Suas palavras balançam ao sopro da dúvida.

“Tenho acesso aos arquivos, Doutor. Com meu sobrenome consegui rastrear registros de todos os meus parentes… Conheci a verdadeira história de como toda essa merda chegou ao poder! De como vocês acabaram com todos que foram contra!”

Meus batimentos acelerados são a trilha sonora para o suspense me aguardando. Ouço um sussurro e o nada reverbera a seguir. Em silêncio, eles esperam por mim.

“VOCÊS ESTÃO AÍ?” Meu grito parece não atravessar a porta. Só a ausência deles justifica. “Alguém me responda! RESPONDAM!”

Ninguém. Nenhuma voz. Nenhum som. Sinto o vazio da minha voz silenciada gritando desesperadamente. Se não te ouvem, você não significa nada, não existe. É o que temo…

Segundos, segundos e segundos… É como se o mundo fosse durar apenas mais um deles… Minutos e minutos… Devem estar tramando algo neles… Hora… Já faz uma e percebo talvez estar enclausurado naquela sala. Afinal, poderiam simplesmente esperar eu abrir ou morrer de fome. Não muda nada para eles.

E quando o fio de esperança que me resta de desgarra, ouço uma nova voz… O problema é: não é uma voz tão nova, na verdade.

“Amor…”

 

“JUDGEMENT CIVIL APPLICATION TE TRANSPORTA PARA A SOMBRA DA TORRE EIFFEL! EXPERIMENTE OS MELHORES CALMANTES FRANCESES!”

 

DE MÃOS DADAS À VOZ está o ruído da ligação. Não acredito… Faz meses desde a última vez que ouvi Carolina. No entanto, ali estava ela, e eu do outro lado.

“Carol?” É um devaneio, uma ficção, concluo. Não é possível.

“Amor, sou eu, meu amor. Carolina” Não é um sonho: é um truque!

“Seus-merdas-filhos-da-puta! Acham que vou cair nisso? Carolina jamais falaria assim! Nós brigamos, ela não me chamaria de amor… NUNCA!”

Do outro lado silêncio… Não! Espere. Consigo ouvir cochichos, baixos demais para discernir qualquer coisa.

“EI! Não me deixem sozinho outra vez!”

“Tudo bem, Vitor… Está tudo bem, agora… Eu preciso te convencer a sair daí. É o mínimo que posso fazer por Ricardo…”

“O quê?”

“Fique calmo. Abra a porta ou terão de chamar a Força.”

“Acha que sou idiota, Doutor?! É um simulador de voz? Digitalizou a voz da minha esposa ou alguma merda dessas?”

“Por favor, Vitor. Não dificulte as coisas. Eu não tenho o dia todo, nem o Ricardo. Você perdeu o controle, tem que abrir essa porta e se internar, como eu fiz… É o único jeito.”

“VOCÊ ESTÁ MORTA! VOCÊ NÃO ESTÁ AQUI!”

“Vitor, pela Paz, não dificulte as coisas! Se não abrir essa porta logo, Ricardo vai ter que chamar a Força. Ninguém quer mais desordem. Abra a porta e tudo vai ficar bem…”

“Por que eu deveria ouvir você? Você não é real! Você morreu… Não vão me enganar; não vou ter o mesmo destino que Carolina!”

“Eu não morri, Vitor. Ninguém morre quando se interna na Clínica.”

“Prove que é você ou não responderei mais!”

“Provar?”

“Isso mesmo… Prove que você é mesmo Carolina. Prove!”

“Você e sua necessidade de coisas concretas… Por isso não demos certo.”

“Prove!”

“Não preciso provar nada, Vitor. Se você não abrir, eles irão. Independentemente do que aconteça, estou tentando te ajudar, porque sei como é estar nesse estado… Por isso estou aqui.”

“Aqui?!” Não é piada, apenas parece.

“Não posso simplesmente contar.” Sua voz soa tão viva…

“Claro que não pode, você nem existe…”

“Esse é seu problema! Sempre coloca sua opinião como verdade absoluta. EU ESTOU VIVA, VITOR! ACEITE!”

Meu silêncio reconhece: não é uma simulação de voz. É mais… Devem ter extraído suas memórias para uma inteligência artificial… Não sou capaz de conceber tais barbáries.

“Quer saber a verdade, Vitor?” Eu ouvira a mesma pergunta um dia antes de assinar o papel e a Força levá-la.

“Verdade…” Minha melhor arma é desdenhar. Afinal, não há nada a fazer.

“Quando assinou os termos e a Força me trouxe, prometi jamais falar com você, ou te matar, se tivesse uma chance… Olhe meu estado: queria te matar! Estava no fundo do poço.” O peso da respiração sufoca suas palavras por instantes. “Antes do Chalé, assim como todos, passei pelo Dr. Ricardo. Presenciando meu estado deplorável, o Doutor decidiu me ajudar. Conversamos por horas e ele me mostrou as gravações das nossas discussões. Aquela não podia ser eu…” Um suspiro meu. Um dela. Um silêncio perfurando nossos ouvidos. “O Dr. Ricardo me fez duas propostas. A primeira: eu podia escolher o tratamento, depois que estivesse melhor, estaria livre. A segunda: podia sofrer oblívio e nunca mais ser eu mesma novamente; simplesmente recomeçar trabalhando voluntariamente para nossa sociedade. Escolhi me tratar, e não foi fácil… Mas não queria esquecer quem eu era. Me internaram no Chalé e o Dr. Ricardo me visitava periodicamente. Com o tempo, as coisas melhoram. Comecei aceitando minha loucura; afinal, o que passa na cabeça de alguém que ignora o que construímos? Temos a Paz, muito amor e união… Foram trinta e três ciclos até aqui. Agora, finalmente podemos viver sem ter medo. Sem medo da violência, das guerras, do mal… É o Paraíso, Vitor. Vivemos no Paraíso…”

“Paraíso…” Só pode ser lavagem cerebral, e deve começar com alguém mergulhando sua cabeça na privada. “Se isso é verdade, por que não me procurou depois de ser liberada?”

“As pessoas mudam! As pessoas mudam, Vitor.” Uma ardência espalha-se por minhas bochechas, meu queixo estremece. Conheço os sintomas. “Eu não te amava mais… eu não te amo mais. Simplesmente fugi daquilo tudo. Mudei minha vida, segui meus sonhos e me esqueci do passado.”

“E agora está melhor? Sozinha na porra desse mundo hipócrita, onde todos vivem suas ficções, onde todos mascaram seu verdadeiro eu? Valeu a pena? É lavagem cerebral, Carolina, é a porra da lavagem cerebral que você falava tanto!”

“Primeiro: EU NÃO ESTOU SOZINHA! Acha que não tenho capacidade pra superar nosso relacionamento e me envolver com outra pessoa? Inclusive estou bem melhor sem você, se quer saber.”

“Outra pessoa?” Não, não, não! “Como você pôde?” Desgraçada! “É isso que chama de ‘amor para toda vida’?”

“O que queria que eu fizesse? Passasse a vida inteira presa a você? Não fode, Vitor, sou jovem demais para isso!”

“Quem é?!” A derrota rasteja até meus pés.

“Não é da sua conta…”

“QUEM É ESSE MERDA?!”

“O tempo está acabando”, escuto o Doutor avisar.

“Não se meta, doutorzinho de merda!”

“Abra a porta, Vitor. Estamos aqui há muito tempo… A Força vai vir e não vai ser divertido. Você pode abrir, se tratar, superar tudo isso e seguir em frente… É só uma fase, um tempo de dúvidas. Mas passa. Você pode superar isso. Perdeu o controle por tudo que houve… Abra, por favor…”

“Me diz quem é e eu abro…”

“Isso não vai mudar nada, Vitor.”

“Diga e prometo abrir depois… Preciso saber.”

“Precisamos que ele saia, Carol… Por favor, diga de uma vez. Cuidarei das consequências, não se preocupe. Mas saiba, Professor, se ela disser e não abrir, a Força entrará e o levarão a…”

“NÃO SE META! Diz logo quem é!”

“É o Ricardo, Vitor. É o Dr. Ricardo.”

“O QUÊ? Eu devo ter entendido errado… Não é possível que me trocou por esse filho-da-puta!”

“Ele me ajuda muito. Diferente de você, que passou a vida toda dificultando tudo, como está fazendo agora… Só abre, você me prometeu.”

“O quê? Eu te ajudei a vida toda, sua ingrata de merda! Estive lá sempre que precisou! Três meses sem mim e você já está dando pra outro?”

“Quem é você pra me julgar, Vitor?”

“SOU O CARA QUE NÃO FODEU COM OUTRA PESSOA TRÊS MESES DEPOIS DA MINHA ESPOSA SER LEVADA!”

“Vou desligar, Ricardo. Desculpa mesmo, mas não dá para conversar com ele… Eu não consigo…”

“Vá à merda! Desligue, tanto faz! É o que aprendeu no Chalé, não é? A esquecer as pessoas!”

“Foda-se o que você pensa!”

“Querida, se acalme por favor. Desligue… Tome suas pílulas, não pode ter uma recaída. Desligue e descanse…”

“Espere!”, não terminei! Ela não pode desligar ainda!

Entretanto, em sintonia com meus descontrolados batimentos, o som avisa: a ligação caiu. Percebo o fundo de verdade nas palavras de Carolina… Não tenho mais controle, estou perdido. Não apenas eu, todo esse mundo está.

Como numa aquarela pintada por lágrimas, um sorriso doentio ilustra meu rosto. Nos meus pensamentos, os versos poéticos ordenam uma ode à mais trágica faceta humana (a loucura, sussurra o SensaTech). Tudo está errado… Eu, Carolina, nossas vidas, nossos sonhos, nosso mundo. Contudo, é um erro único. Portanto, perfeito. Assim se tornando arte. A mais pura forma de arte.

Preciso do terceiro ato dessa peça, o desfecho perfeito para o show… Preciso de um Gran Finale. Preciso encerrar sorrindo para morte.

 

* * *

 

“Professor, o senhor prometeu abrir”, diz o Doutor. “Se não abrir, terei de…”

“Vou abrir”, interrompo-o antes que chegue nesse ponto. “Eu vou abrir.”

“Tudo bem, Professor, está tudo bem…”

Não é mentira, não por um todo.

“Doutor?”

“Sim, Professor?” A educação é uma ótima moeda de troca para a confiança, como o riso.

“Se a Força estiver presente, só prometa que não avançarão sobre mim quando eu sair.” Preciso ter certeza ou meu plano escorre ralo abaixo.

“Nenhuma unidade da Força foi convocada. No momento estamos sozinhos…”

“E os enfermeiros?”

“Sabe que horas são, Professor? As pessoas têm de ir para casa…”

“Por que está aqui, então? Poderia estar fodendo com minha esposa.”

“Ex-esposa. Sou profissional; não posso simplesmente abandonar um paciente no seu estado. Dispensei todos porque sei que se sentiria mais à vontade.” Ele tem razão.

“Esse papo de profissionalismo não convence… O que tem a ganhar, ficando?”

“Acredite se quiser, Professor, mas todos ganhamos se o senhor ganhar…”

“Se me internar vai ser mais fácil foder com minha esposa, né?” A palma da minha mão arde depois de estapear a porta.

“Caso o senhor não se mantenha calmo e abra a porta, terei realmente de convocar a Força… E, como o senhor já presenciou, isso não ajudará em nada.”

A noite envia suas sombras através da janela. Há tempos não acredito em bondade, se é que um dia acreditei.

“A questão é que, como Clínico, Professor, eu nunca acreditei em alguns métodos. Por exemplo: o conceito de medicação sempre me pareceu mais uma distração neurológica do que algo realmente efetivo. Minha área de estudo, a psicologia, adere muito a tratamentos alternativos. Quando tenho de aplicar uma injeção, isso me corrói por dentro. Porém, se é necessário passar um dia com um paciente, fico sorridente a semana inteira. Por isso estou aqui… Por isso quis cuidar eu mesmo do seu caso. Não por Carolina…”

“Não?” Sua mentira me foge entre os dedos, e ao atingir-me é mais convincente.

“Não. Quero garantir sua reintegração social. Esse é meu trabalho.”

“Prove! Prove que quer apenas ‘meu bem’, como diz.”

“Professor, a prova é que ainda não usei de violência, apesar de o senhor a ter usado contra mim. Tenho meus motivos. No fundo, creio que seja um bom sujeito, que está num momento ruim…”

Há um fundo de verdade naquelas palavras. Preferia não passar por aquilo, preferia simplesmente… Preferia esquecer.

“Você pode me fazer esquecer disso tudo?” (Como se uma gota de chuva caísse em um lago…)

“O oblívio não é total. Nunca apaga tudo.” Não sabemos de nada, porém refletimos na ausência de luz. “É como se a ferida se tornasse uma cicatriz…”

“Não tem mesmo jeito para mim” (… minhas esperanças se diluem num incompreendido mar de ignorância.) “Se a ferida não pode sumir, nunca vai deixar de me atormentar, Doutor.” A esperança dentro de mim é deletada, mas a varredura não detecta meu maior anseio…

“Algumas coisas nunca cicatrizam, Professor. Mas aprendemos a lidar com elas assim mesmo.”

Na escuridão as melhores piores ideias florescem. Sua mente pari seu pior lado. Sem motivos para manter a sanidade, sem vislumbre ou expectativas, sem ter pelo que viver ou sonhar, você se agarra a qualquer sentimento. Abraço o meu. De punhos cerrados, eu digo:

“Doutor, vou abrir. Me desculpe.”

Os móveis parecem pesar menos agora… Arrasto um por um; meus pensamentos reverberam no silêncio. Eu preciso disso. Preciso respirar o vazio, experimentar a sabor do nada. Logo ele estará ao alcance das minhas mãos, poucos passos nos separam.

“Professor, tudo bem?” Seu tom é sempre calmo. Se ele tem um implante, é dos bons. Afinal, nunca perde a paciência.

“Sabe, Doutor, talvez o senhor esteja errado, talvez eu não tenha mesmo jeito…”, arrasto a escrivaninha; mais algumas cadeiras e estarei livre. “Acreditei que fosse uma fase, como Carolina disse. Mas… Se me lembro bem… A noção de Paz nunca me agradou…”

“Apenas saia daí e conversamos. Está nervoso agora, Professor, é normal…”

“Sempre estou nervoso, Doutor! Esse é meu problema… Li uma vez que, na antes da Paz, houveram homens que, graças a um problema neurológico, simplesmente não se importavam com o certo e com o errado… Quantas vezes não me peguei pensando no que significa o certo e o errado…” A principal cadeira, a chave, e pronto: liberdade.

“O que separa o certo do errado é a situação. Pensar nisso não atesta que seja um psicopata, Professor.”

“Estava tentando lembrar a nomenclatura…” Não soa tão bem quanto na minha memória. Está frio. “Talvez eu seja… Quem sabe?! Não acho que exista o certo e o errado. É dicotômico demais, doutor…”

“Concordo.” A última cadeira já não está emperrando a maçaneta. “Porém, se o senhor fosse um psicopata, não aceitaria tão facilmente. Geralmente eles…”

Abro a porta após girar a chave; nossos olhares se encontram. Minha boca inundada de saliva… Não restam palavras para aquela conversa, elas se afogaram. Ele cumpriu sua promessa. Sinto a morte sussurrar na altura do pescoço. Está sozinho, as mãos atrás das costas. Lá estamos. O Professor e o Doutor.

Sinto o sangue circulando em minhas veias, os batimentos no ritmo comum. O suor não escorre, não me acalma. Talvez minhas mãos estejam tremendo. Talvez…

“Que bom abriu, Professor!” O Dr. Ricardo abre os braços, ainda segura a seringa, caminha na minha direção.

Meus olhos encontram seu pescoço e sinto o impulso de esganá-lo. Porém, não consigo. Ele me abraça, permanecemos imóveis por alguns segundos. Meus olhos ardem, parecem úmidos. Tudo está calmo agora, tão calmo. Sinto meus batimentos, os dele também. Lágrimas escorrem por meu rosto ilustrando meus sentimentos. Onde foi parar o frio? O Doutor Ricardo me espanta com seu abraço.

Quando minhas mãos supostamente vão ao seu encontro, o mundo gira. Não removeram o SensaTech… O aparelho está aplicando doses de calmante em mim, só pode ser isso. Afasto o Doutor de mim, apenas o suficiente para agarrar sua garganta e apertar até ouvir sua traqueia romper e ele engasgar-se com o próprio sangue.

Mas falta força…

“Nada mal, Professor, nada mal mesmo.” Sua voz é um eco distante na minha cabeça. Eu desencontro seu pescoço. Apoio-me na parede, evitando a queda e buscando uma resposta.

A seringa! Há uma seringa na sua… A seringa… (Deveria ter notado antes.)

Quando percebo estou no chão.

O Dr. Ricardo ri.

(Tudo se torna escuridão.)

 


Matheus Ferreira nasceu em setembro de 1999 em Jundiaí, mas é de família sergipana e cresceu e vive em São Cristóvão. É integrante dos podcasts SobrEscrever (Leitor Cabuloso), Podcast Persona (Agregarium) e Wattcast (todos em hiato, fazer o quê), nos quais costuma falar sobre literatura. Escreve prosa de ficção e está trabalhando no seu primeiro romance. De vez em quando publica artigos, resenhas e contos internet afora.