Olhos no Escuro

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Faustine Lacroix era uma jornalista obstinada. Acreditava piamente que o objetivo maior de sua profissão era encontrar a verdade, onde quer que estivesse. Um clichê bobo e difícil de se sustentar em tempos tão sórdidos, mas a crença era uma parte inerente da sua personalidade.

Após dois anos de matérias descartáveis, editores machistas e colegas condescendentes, Faustine estava decidida a obter o reconhecimento que merecia. Ela sabia o que precisava fazer e não permitiria que nada a impedisse de mudar sua sorte. Aquele era o primeiro passo em direção ao seu objetivo: ser uma repórter respeitada.

E, com três batidas à porta, Faustine selou seu destino.

Ela sorriu antes mesmo que atendessem ao chamado. Esforçou-se para parecer simpática e cordial. Quando a porta finalmente abriu, Faustine lembrou da principal característica do homem que procurava: era cego.

— Lutero Lantier? Eu sou Faustine Lacroix, a repórter — ela se apresentou, ainda insegura sobre como se portar diante do cego. — Nos falamos hoje cedo, acerca da matéria sobre as pessoas desaparecidas.

— Pontualidade é uma coisa rara, hoje em dia — ele disse, e embora Faustine tivesse certeza de ter chegado na hora, não pôde evitar se perguntar se estava atrasada. — Entre. Tente não tropeçar em nada.

Mais por hábito do que por cautela, Faustine avaliou o lugar e tentou deduzir o máximo que podia de seu habitante. A única iluminação vinha da cidade do lado de fora, através de largas janelas arcadas e sem cortina. O apartamento era pequeno, bagunçado demais para pertencer a um cego. A sala tinha um ar de escritório, com móveis de madeira velhos e armários de arquivos de ferro. Havia estantes e mais estantes, repletas de livros antigos e amarelados. Duas poltronas de couro rachado cercavam uma velha mesa de centro. Caixas de papelão estavam espalhadas por toda parte, tornando o cômodo praticamente inabitável.

— Imagino que a sala esteja um tanto escura pra você. — A voz grave e profunda de seu anfitrião interrompeu seus pensamentos. — Fique à vontade para acender as luzes.

Lutero indicou displicente a direção do interruptor enquanto se sentava em uma das poltronas de couro. Faustine então acendeu as luzes e sentou-se na poltrona oposta. Estava prestes a ajeitar a saia quando lembrou que seu entrevistado era, supostamente, cego.

Foi quando teve a ideia.

Faustine cruzou as pernas, da forma mais exagerada e caricatamente erótica que conseguiu. Deixou a saia subir pela coxa e observou com atenção o homem à sua frente. Foi com uma certa decepção que ela percebeu não haver qualquer reação de sua parte. Faustine queria tê-lo surpreendido, até mesmo com o mais sutil dos reflexos, apenas para ter o prazer de desmascarar a falsa cegueira. Ela sabia que era uma ideia boba, mas também era divertida demais para deixar passar.

Faustine gostava de medir as pessoas. Gostava de escrutinar suas expressões e olhares antes de decidir onde apertar com suas perguntas. Antes de decidir com que força deveria espremer para extrair a verdade. Naquele momento, entretanto, tudo o que tinha para avaliar era o seu próprio reflexo nas lentes dos óculos escuros de seu anfitrião. Sentia-se um tanto desarmada, mas era obstinada demais para se deixar abater.

Houve um breve momento de silêncio enquanto Faustine retirava seu gravador de dentro da bolsa. Ela o colocou sobre a mesa de centro e perguntou se a gravação seria um problema. Lutero se limitou a aceitar com um movimento sutil de cabeça.

— Eu não sou dada a rodeios, senhor Lantier, então vou direto ao ponto. Nos últimos quatro meses, dezesseis casos de desaparecimento foram registrados pela polícia. Além de pequenos detalhes que beiram o esoterismo, a polícia não encontrou nenhuma ligação entre esses casos. Na verdade, eles insistem em afirmar que não há ligação entre os casos, quase como um mantra…

— Não me chame de senhor, pelo amor de Deus.

—… mas nós dois sabemos que existe uma ligação — ela continuou. — Nenhum dos casos foi resolvido pela polícia, mas metade das pessoas voltou para casa. As autoridades não têm nada a declarar, mas as ruas não param de falar sobre o que houve. Sobre como todos os casos estão ligados, sobre como as pessoas foram encontradas por você.

— Me parece que você já tem uma história. O que mais eu poderia oferecer?

— A verdade — ela disse, em seu tom mais sério. — As ruas sussurram com reverência boatos sobre o cego misterioso, a quem os desesperados recorrem quando a polícia desiste das buscas ou quando a esperança ainda é mais forte que a aceitação. Dizem que você sempre encontra as pessoas, vivas ou mortas.

Lutero permaneceu em silêncio. Seu rosto agora estava voltado para Faustine, como se de fato pudesse vê-la. Havia uma certa beleza em sua seriedade, tão austera e ao mesmo tempo tão plácida. Ele se limitou a acender um cigarro, deixar a cabeça pender para trás e soltar lentamente a fumaça do primeiro trago, quase como num ritual. Faustine aproveitou a oportunidade e acendeu seu próprio cigarro. Começava a sentir-se desconfortável, como se alguém mais a observasse. Como se houvesse uma terceira pessoa oculta naquela sala. A sensação lhe dava arrepios.

— Por que tem que haver uma verdade secreta? — perguntou, enfim, Rainheart. — A história das pessoas que retornaram para casa não é fantástica o suficiente para vender a notícia?

— Não se trata de vender a notícia. As afirmações das vítimas são no mínimo questionáveis. Ninguém em seu juízo perfeito poderia acreditar no que elas dizem sobre espíritos malignos e possessões. Eu quero saber o que realmente aconteceu.

— E o que faz você pensar que a minha versão dos fatos será mais crível do que a das vítimas? Por que é tão importante que a verdade se encaixe dentro do senso comum?

— Porque eu quero contar uma história séria! As pessoas têm o direito de saber.

— Isso não é sobre as pessoas. É sobre você.

Lutero havia torcido seu dedo na ferida. Ainda assim, Faustine estava decidida a não ser derrotada. Ela arrancaria dele a matéria que lhe traria o renome e a autoridade que merecia.

— Eu sou uma profissional e gostaria de ser levada a sério como tal.

— A curiosidade matou a gata, sabia?

— Sem rodeios ou comentários jocosos, senhor Lantier. — Faustine estava prestes a explodir. — Não estamos aqui pra isso.

— Você não levou a sério seus entrevistados — ele provocou.

— O que aconteceu com aquelas pessoas? — ela insistiu.

— Você sabe o que aconteceu.

— O que fizeram com elas?

— Você não está pronta para saber.

— Quem está por trás dos desaparecimentos?

— Você não está pronta para saber!

— O que está acontecendo nessa cidade?

— Você é teimosa como uma mula, não é?

— E você é um imbecil pretensioso! — Faustine explodiu em fúria.

Lutero sorriu, levantou-se calmamente de sua poltrona e caminhou até a porta.

— Me desculpe pelo que disse. — Faustine tentou se recompor, recolhendo seu gravador e se preparando para ir embora. — Sinto muito por tê-lo incomodado.

— Não se preocupe com isso — ele respondeu. Em seguida, vestiu seu sobretudo, guardou a bengala dobrada em um bolso interno e abriu a porta do apartamento. — Venha comigo.

Faustine avaliou minuciosamente cada movimento de Lutero, do momento em que deixaram o apartamento até o ponto onde se encontravam agora, do outro lado da cidade. A despeito de carregar uma bengala branca dobrada em seu sobretudo, em momento algum ela pareceu necessária. Lutero caminhava com passos firmes, como quem sabe exatamente onde vai e o que há em seu caminho. Faustine já havia visto o suficiente e dado seu veredito.

Lutero Lantier não podia ser cego.

Eles percorreram uma considerável distância até Faustine permitir-se incomodar com o silêncio. A ausência de diálogo e as conclusões sobre seu guia começavam a afligir sua mente. O medo pouco a pouco a convencia de que Lutero não era exatamente o que diziam os boatos. Até onde sabia, ele poderia estar envolvido em cada um dos desaparecimentos que supostamente ajudou a solucionar. E ela poderia ser a próxima vítima.

Quando chegou a essa conclusão, Faustine inconscientemente buscou o apoio emocional do revólver que carregava em sua bolsa. Ela respirou fundo e repetiu para si mesma que estava preparada. Que, se fosse necessário, sabia o que fazer. Ela estava no controle.

— Chegamos — ele disse, quebrando o silêncio.

Lutero parou diante de uma velha casa de dois andares e respirou profundamente. Havia algo de quixotesco na cena, como se ele enfrentasse sozinho a construção à sua frente. Como se nela visse um gigante sombrio a ser derrotado.

Em seguida, ele buscou uma foto em seu bolso e a estendeu a Faustine.

— O nome dela é Suzane. Tem apenas nove anos.

Faustine não demorou a reconhecer o rosto da criança na foto. Havia cartazes com aquela imagem por toda a cidade, com telefones de contato e valores de recompensa por informações sobre seu paradeiro. Era a vítima mais recente dos desaparecimentos.

— A mãe me procurou há mais ou menos uma semana — explicou Lutero. — Me implorou que encontrasse a garota, que lhe desse ao menos o direito de enterrar a filha. O que diabos a gente diz numa situação dessas?

Faustine também não soube o que dizer.

— Eu comecei a fazer perguntas, visitar lugares e não demorou até que me apontassem a trilha certa. Ela está aqui, nessa casa. Precisamos entrar agora, enquanto está vazia.

— Quem lhe deu essas informações? Como você sabe que a casa está vazia?

— Espíritos — ele não hesitou em responder.

— Espíritos? — Faustine repetiu, incrédula. — Você vai insistir no absurdo de que é cego, mas enxerga espíritos? Que enxerga magicamente tudo que é iluminado pela luz deles e que eles caridosamente te dizem onde encontrar as pessoas? Me desculpe, mas não posso acreditar nessa história.

— Se você não acreditasse, não teria me acompanhado até aqui. Você acredita na história, mas não pode publicá-la. É isso que está te devorando por dentro.

No fundo, Faustine sabia que era verdade.

— A garota está aí dentro, junto com a sua verdade — ele continuou. Havia uma seriedade mórbida em sua voz. — Eu posso fazer com que você os veja, como eu vejo, mas é uma via de mão dupla. A decisão é sua.

A casa, assim como as vizinhas, parecia abandonada. Faustine avaliou os arredores e ponderou até onde ela poderia se colocar numa posição mais arriscada do que já se encontrava. No fim das contas, sua curiosidade profissional acabou por falar mais alto que seu bom senso. Seria um desperdício chegar até ali e não ver aonde iria a toca do coelho.

— O que eu preciso fazer?

Faustine então observou Lutero tirar uma venda do bolso e estendê-la no chão. Com a ponta do dedo ele desenhou algo sobre o tecido negro, enquanto murmurava palavras que estavam além de qualquer compreensão. Tudo lhe parecia muito teatral, mas, ainda assim, ela observou com o máximo de imparcialidade. Por fim, Lutero entregou-lhe a venda. Quando Faustine a tocou, a imagem estilizada de um olho esmeralda surgiu onde ele havia corrido seu dedo.

— É um belo truque. — Faustine tentou não parecer surpresa.

— Coloque sobre os olhos.

— Por mais disposta que eu esteja a colaborar com seu pequeno espetáculo, você não acredita mesmo que eu vá me vendar e confiar minha integridade física a um cego, não é?

— Na verdade, não. Você não está pronta.

E foi tudo que precisou dizer. Furiosa, Faustine colocou a venda sobre os olhos e se permitiu ser guiada por Lutero. Eles subiram os degraus até a porta da casa abandonada e, juntos, seguiram escuridão adentro.

Uma vez lá dentro, Faustine se arrependeu pela primeira vez.

Havia um longo corredor, onde crianças com gargantas dilaceradas permaneciam imóveis em uma mórbida vigília. Seus olhares, vazios e inexpressivos, pareciam perdidos num inexplicável e tortuoso infinito no fundo de suas almas. A luz dos espíritos brilhava soturna, iluminando o corredor da casa. Faustine foi levada pelo corredor, sentindo uma inexplicável angústia crescer em seu peito. Contraía os dedos dos pés em agonia enquanto Lutero caminhava com ela por entre as crianças. Quase involuntariamente Faustine tentou soltar sua mão e correr, mas Lutero a impediu. Juntos eles seguiram adiante, assombrados pelos olhares sem vida até a porta do outro lado do corredor.

Ao fim do caminho, Faustine se arrependeu pela segunda vez.

Um jardim, repleto de cães enterrados no chão até a altura do pescoço. Cada um deles com um prato de comida a poucos e inalcançáveis centímetros do focinho. Alguns latiam desvairados, outros mal tinham forças para olhar na direção dos invasores. A cena grotesca era iluminada por espíritos deformados de outros cães, tornando a imagem perturbadora além de qualquer imaginação.

— Os antigos japoneses costumavam enterrar cães dessa forma — explicou Lutero. — Antes que os cães morressem de fome, tomados de fúria e agonia, eles cortavam suas cabeças e as enterravam em ruas movimentadas. Isso agitava ainda mais o espírito do animal. Quando eles finalmente desenterravam a cabeça e a uniam ao corpo em um ritual de invocação, tinham verdadeiros demônios sob seu controle. Os espíritos eram usados para assombrar, enlouquecer ou até mesmo possuir pessoas. Qualquer coisa para executar a vingança de quem os invocou. É isso que você está vendo aqui: um jardim de inugami.

Faustine sentiu suas pernas fraquejarem e seus olhos se encherem de lágrimas. O desespero daqueles cães era demais para ela suportar. Faustine soltou a mão de Lutero, arrancou a venda dos olhos e correu. Correu o mais rápido que pôde, através do corredor agora vazio, para longe de toda aquela perversidade.

Mas a casa ainda não havia revelado todos os seus horrores.

Faustine já não usava a venda sobre os olhos, mas havia uma criança em seu caminho. Uma menina de olhos vazios, que pareciam ver através da sua carne até a escuridão que se alojava em sua alma. Coberta de hematomas, apenas quando ela estendeu seus braços em súplica Faustine a reconheceu.

Era Suzane.

O ato singelo despertou alguma coisa em Faustine, um instinto que a compeliu a correr até a menina, disposta a fazer o que fosse necessário para protegê-la.

— Não se preocupe, minha querida… — Faustine a abraçava enquanto as lágrimas escorriam por seu rosto. — Vai ficar tudo bem. Você vai ficar bem. Nós duas vamos ficar bem.

Faustine estava enganada. Os dedos delicados de Suzane se tornaram garras, fincadas nas costas de Faustine e sedentas por rasgar sua carne. A criança, coberta de sangue e ferimentos, rosnava como uma fera, saltando para alcançar sua garganta com os dentes. O que quer que estivesse diante dela, já não era mais Suzane.

Faustine sucumbiu. Queria se arrastar para longe da criatura, mas o pavor havia tomado controle de seu corpo e ela não tinha mais domínio sobre seus movimentos. O ar desapareceu de seus pulmões e ela começou a sufocar. Chorava e soluçava, tentando respirar e ao mesmo tempo gritar por socorro. Sua visão começava a se turvar e escurecer quando Lutero correu em direção à criança.

Com um movimento rápido e preciso, ele a segurou pelas costas e empurrou com firmeza sua testa para trás, deitando-a ao chão. A criança lutava como um pequeno demônio, debatendo-se, chutando e arranhando enquanto ele conduzia o exorcismo. Faustine não ousou mover um dedo.

Lutero murmurava palavras de poder.

A criança rosnava como um cão raivoso.

O rito dantesco crescia, conforme murmúrios se tornavam comandos e rosnados se tornavam uivos. O demônio lutava para se libertar, tentando a todo custo morder a mão que segurava sua cabeça. Quando a tensão pareceu alcançar um ponto insustentável, Lutero gritou uma última palavra e o tempo parou por um breve segundo. Uma enorme placidez tomou o corredor e tudo pareceu sereno. Antes que Faustine compreendesse o que sentia, o momento se foi. O tempo voltou a correr e o demônio uivou uma última vez. Um lamento maldito que evanesceu num grito infantil. Nenhum dos dois se moveu. Finalmente, restou apenas o silêncio.

Lutero desabou no chão ao mesmo tempo em que Suzane se ergueu aos prantos. Desesperada, ela se jogou nos braços de Faustine, chorando copiosamente. Faustine a abraçou aliviada. As duas choraram juntas por algum tempo até se voltarem para Lutero, ainda caído.

E então perceberam que não estavam sozinhas.

Alguém as observava da porta de entrada. A luz que vinha da rua não lhes permitia ver mais que um vulto, mas foi suficiente para fazer Suzane se contrair em pavor.

— Por favor, não deixa ele me levar! Não deixa ele me levar!

Tomada por um instinto inefável, a jornalista puxou o revólver da bolsa e apontou para o estranho. Suas mãos estavam firmes e seu olhar aguçado. Ela sabia exatamente o que estava fazendo.

Faustine estava no controle.

— Mais um passo em nossa direção e o lixeiro vai varrer o seu cérebro da calçada pela manhã, seu desgraçado!

O homem não respondeu. Pelo que pareceu uma pequena eternidade ele apenas ficou lá, imóvel, com sua identidade oculta nas sombras. Lutero permanecia inconsciente, então ela não tinha outra escolha além de ser uma rocha, por ela e por Suzane. A resolução se tornou cristalina em seu olhar, até mesmo para seu opositor. Então, tão silencioso quanto surgiu, o vulto se virou e desapareceu na noite.

Havia acabado. A criança estava salva.

Faustine sentiu como se respirasse pela primeira vez. O ar da noite lhe parecia fresco, puro e cheio de vida. Ainda assim, por mais aliviada que estivesse em estar viva, ela não conseguia sorrir. Olhando Lutero ao seu lado, ela se perguntou que tipo de pessoa enfrentava os eventos daquela noite com tamanha naturalidade. Não havia sinal de perturbação em seu semblante, nenhum sinal de abalo em sua fronte. Faustine queria chorar, por aquele homem vazio e por ela mesma. Pela pequena parte de si que havia morrido naquela noite. No entanto, ela se controlou por Suzane. Faustine se manteve firme pela menina, por todo o caminho de volta, até que ela estivesse a salvo nos braços da mãe.

Apenas quando se percebeu na segurança de seu lar Faustine ousou pronunciar uma palavra. Encolhida fragilmente em sua poltrona, reconfortada pela organização metódica e pela claridade de sua sala, ela se voltou para seu entrevistado e fez a única pergunta que ainda lhe restava.

— Quem é você?

Lutero se aproximou dela, abaixou-se até estar à sua altura e ergueu os óculos escuros.

Atrás deles, nada além de órbitas vazias.

— Eu sou aquilo que você sempre temeu que eu fosse. Agora você tem a verdade.

Então ele colocou de volta os óculos, levantou-se e caminhou até a porta do apartamento.

— Talvez eu estivesse errado sobre você. Talvez você esteja pronta.

E, sem nenhuma outra palavra, ele se foi.

De fato, agora Faustine tinha a verdade. Tinha uma história fabulosa para contar, com uma criança resgatada, um herói misterioso e um vilão ainda à solta. Uma história que jamais poderia ser publicada, porque lhe traria mais descrédito do que autoridade.

Todo o seu esforço, todo o seu sacrifício, haviam sido por nada.

Faustine xingou e bateu furiosa na poltrona. Bateu com toda sua força até cansar. Sozinha no apartamento, ela se encolheu na poltrona, abraçada aos joelhos. Chorou por toda a noite, sem conseguir dormir. Lembrou-se das palavras de Lutero antes de entrarem na casa. Lembrou-se que havia decidido vê-los, e que era uma via de mão dupla. Logo ela se pegou imaginando quantas almas haveria naquele apartamento alugado. Por todo lado havia vultos e sombras que pareciam se mover nos limites de sua visão. Sentia-se oprimida pela inexplicável sensação de alguém se aproximando, mesmo sabendo que estava sozinha. Quanto mais pensava naquilo, mais aumentava sua agonia. A verdade era insuportável. Sentia-se observada, como se houvesse alguém mais na sala com ela, e agora sabia porquê.

Havia olhos no escuro.

 


Rafael Palma nasceu no Rio de Janeiro, é advogado e escritor. Escreve desde que se entende por gente e é apaixonado por criar, tanto teses e defesas quanto personagens e aventuras.