— Houston, temos um problema.
Um calafrio percorreu todo o Centro de Controle da Missão.
— Houston, repito, temos um problema — repetiu a voz de John Narbo calmamente.
A voz dos astronautas está sempre calma quando estão no espaço, prestes a aterrar na Lua, e surge um problema. A voz dos astronautas está sempre calma quando surge um problema. A voz dos astronautas está sempre calma.
— Percebido — disse Scott Scott, o líder da missão, com voz calma. — Qual é a natureza do problema, Apollo?
Scott olhou em volta e reconheceu uma calma apreensiva nas faces dos seus companheiros. Ele conseguia ver também alguma surpresa nos seus olhares. Ele também a sentia no seu próprio olhar. A nave tinha descido para a Lua, em direcção ao Mar da Tranquilidade, tinham ouvido a contagem a decrescer, 100 metros, 50 metros, 10 metros, 5… 4… 3… 2… 1… Se surgira um problema nesta altura, só podia ser a nave a despenhar–se no solo do astro. Como podia então John Narbo ainda estar a falar com eles? Calmamente.
A voz de John Narbo voltou a ouvir–se:
— Bem, Houston, não temos a certeza.
Scott Scott ficou ainda mais surpreendido com este comentário. Não é o tipo de comentário que um astronauta possa fazer. Um astronauta tem de ter a certeza do que diz. Disso depende a sua vida. Os factos e apenas os factos. John Narbo devia estar muito perturbado.
— Temos touchdown, Apollo? — perguntou Scott.
— Negativo, Houston — foi a resposta.
Como é que isso era possível? Tinham ouvido a contagem até 1 metro de altitude relativamente ao solo lunar. Como era possível não terem tocado ainda no solo? Scott olhou para Joe Madonna, que monitorava o computador. Este encolheu os ombros e abanou a cabeça: nenhum dos instrumentos indicava touchdown e ele não conseguia perceber porquê.
— Então, Joe?
— Não sei o que se passa, chefe. O computador desceu ao 1 metro e depois começou a reduzir em fracções cada vez mais ínfimas. Está agora a contar 0,000314 metros e continua a descer. A nave deve ter desacelerado muito mais do que prevíamos com a manobra de aterragem, chefe.
Scott ficou a olhar para ele um pouco mais longamente, para que Joe percebesse que ele não estava nada satisfeito. Voltou a virar–se para o microfone.
— Apollo, por favor confirmem a vossa altitude para o solo.
— Percebido, Houston — ouviu-se a voz de Narbo. — Altitude: 0,0000213 metros e a descer.
— Correcto, Apollo. Confirmem, então, a vossa velocidade.
— Percebido, Houston. A velocidade é de 0,0000003 e a diminuir.
— Correcto, Apollo. Por favor, aguardem.
Scott desligou o microfone e virou–se para os outros ocupantes do Centro de Controle da Missão.
— Okay, alguém me explique o que se está a passar!
E, de repente, todos falaram ao mesmo tempo criando o som de um bando de flamingos em pânico.
— Um de cada vez! — rugiu Scott. — Joe?
Madonna encolheu os ombros e abanou a cabeça.
— John?
John Memphis fez o mesmo.
— Paul?
Paul Dallas fez um gesto de desalento.
— George?
George Austin baixou os olhos.
— Parece–me ser um problema do computador, chefe — disse ele.
— Que tipo de problema?
— Bem… não para de contar decrescentemente.
— Não temos touchdown, George! Como é que isso pode ser do computador?!
Austin encolheu os ombros e abanou a cabeça.
— Ele pode estar certo, chefe.
Scott olhou em volta até descobrir o olhar penetrante de Leonard Nimrod.
— Explica–te, Leo.
— Eu sei que é difícil de acreditar, chefe. Mas é a única explicação lógica. O computador está ligado ao propulsor da nave e o computador parece não ter parado de contar decrescentemente a altitude. Neste momento ainda está em 0,00000000012 metros.
— As boas notícias, chefe — fez Paul Dallas —, é que a nave está cada vez mais perto do solo.
— Mas a esta taxa de descendência, quando é que atingirá o solo lunar?
Foi Nimrod que respondeu:
— Teoricamente? Nunca.
Scott pestanejou.
— Como assim, nunca?
— Bem, o novo computador tem uma capacidade aparentemente ilimitada de calcular valores matemáticos, chefe. Como a divisão dos valores matemáticos é infinita, o computador pode continuar em contagem decrescente indefinidamente.
— Quer dizer que a nave vai ficar cada vez mais perto mas nunca vai poisar no solo?
Nimrod assentiu com a cabeça.
— Então ponham–me essas cabeças a funcionar e resolvam o problema, raios! — gritou Scott.
Começaram todos a falar uns com os outros.
— Podíamos tentar fazer um bypass ao loop de alimentação e estrangular a saída no core.
— Não vai resultar. O core tem um time–out demasiado reduzido. E se colocássemos o propulsor em feedback de modo a fechar um circuito com o servidor interno?
— Não é má ideia. Mas para isso não teríamos de usar todo o oxigénio do habitáculo?
— Ah, é verdade…
No meio da confusão, Scott olhou para um canto onde esperava Grace Narbo, a mulher de Narbo, com um olhar angustiado.
Quando o seu olhar angustiado encontrou o olhar preocupado de Scott Scott, Grace Narbo percebeu até que ponto é que o seu marido estava em perigo.
Ela sabia o quanto todas aquelas pessoas tão inteligentes e competentes tinham trabalhado ao longo dos últimos dois anos. Dois anos de intenso trabalho de alguns dos profissionais mais brilhantes do planeta para conseguirem levar o seu marido até ali, ao Mar da Tranquilidade.
E ela lembrava–se de todos os esforços que ele fizera e que ela também fizera. As noites sem dormir, os dias longe um do outro, todos os problemas com a casa e os filhos e a piscina e a empregada hispânica e o carro, que ela tinha resolvido sozinha, sem apelo nem agravo, para que o seu marido, o seu homem, o amor da sua vida, conseguisse subir para aquela nave e estar neste dia, neste momento, lá em cima, junto à Lua, a descer para o Mar da Tranquilidade.
E agora isto. Aquilo que ela mais temera. Uma falha. Uma falha qualquer que ia dar tudo a perder. Que ia tornar um sonho num pesadelo. Tudo para nada. O pior negócio possível. Ela iria perdê–lo para sempre, não apenas por dois anos, não apenas por uns dias de distanciamento, mas para sempre. Toda esta espera, todo este esforço, e nunca o teria verdadeiramente. Ele estava lá em cima. Preso. Num espaço minúsculo. Sem ter onde poisar. Sem ter como atingir aquilo que estava tão perto, quase ao alcance da mão. Iria ficar sem oxigénio. Iria deixar de respirar. Ela própria não conseguia respirar. Ela própria estava a sentir–se presa e incapaz e… Não! Não! Ele tinha que regressar! Tinha que regressar! O que interessava a Lua?! O que raio interessava a Lua?!
A Lua. John Narbo olhou pela escotilha para o solo acinzentado e desolado apenas a alguns metros de si. Era impressionante estar ali. Ali. Junto ao Mar da Tranquilidade. Sonhara em estar ali toda a sua vida. Toda a sua vida trabalhara muito e esforçara–se e sacrificara–se, a si e aos outros, para estar ali naquele momento. Tudo o que sempre quisera era andar na Lua, sem peso, sem constrangimentos. Saltar, jogar golfe até… Na Lua. Deserta.
E agora, que aqui estava, por um motivo que não conseguia compreender, a Lua estava fora do seu alcance. Por mais que pensasse e verificasse e trabalhasse os instrumentos, parecia que a cada segundo que ficava mais próximo do Mar da Tranquilidade mais ele ficava longe do seu alcance. Os números continuavam a descer: 0,0000000000000000000000034 metros. 0,0000000000000000000000033 metros. 0,0000000000000000000000032 metros. O nada parecia infinitamente longe. E o infinito, perigosamente perto.
Narbo olhou para o seu lado, para Bill Crocket, que olhava pela outra escotilha, para cima. Olhava para a Terra, azul e só no centro do vácuo. Bela. Silenciosa. John sonhara em voltar à Terra, nessa noite. E sabia que Bill também. Estava ali tudo aquilo que eles adoravam. E agora estavam aqui, presos no meio do nada, junto à Lua, sem ter para onde ir.
Narbo voltou a olhar para o computador, os números a correrem e a desaparecerem do ecran para darem lugar a mais números e mais números que corriam e desapareciam. Maldito computador! Chega! Num impulso, John Narbo esticou o braço e, sob o olhar de Bill Crocket, carregou num botão e desligou o computador. O ecran morreu.
Os dois astronautas olharam um para o outro e depois para fora. Ali estava a Lua, e ali estava Terra. A nave parecia parada, mas eles não tinham sentido absolutamente mais nada. Parecia tudo na mesma.
— Achas que poisámos? — perguntou Narbo.
— Não sei — respondeu Crocket. — Mas não podemos estar a mais de meio milímetro.
— Tens razão.
Narbo ligou o microfone e transmitiu:
— Houston, temos touchdown.
Bruno Martins Soares é português e começou a escrever em tenra idade. Em 1996 ganhou o Prêmio Nacional de Jovens Criadores na vertente de Literatura, tendo representado Portugal na Feira de Jovens Criadores da Europa e do Mediterrâneo em Turim em 1997, onde seu conto Mindsweeper foi publicado em italiano. O seu primeiro romance foi publicado em 2009 — Alex 9: A guardiã da espada —, sob o pseudônimo Martin S. Braun. A conclusão da saga — A saga de Alex 9 — saiu em 2012, já com o seu nome. Em 2013, co–produziu e co–escreveu o longa–metragem Regret, da produtora Castaway Entertainment, assinando um acordo de distribuição para os EUA e Canadá para estreia em 2015. Agora escritor a tempo inteiro, Bruno Martins Soares foi consultor de negócios internacional, tendo trabalhado para clientes como a Sony, Bosch, Nestlé, Philip Morris e muitos outros. Como jornalista, escreveu para o Diário de Notícias e para a Ideias & Negócios, e foi correspondente em Portugal da Jane’s Defence Weekly, a maior revista do mundo de defesa militar. Também colaborou com o The Washington Post.