Sobre o direito inexorável de exercer nossas escolhas

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Vivemos um mundo formado por bolhas de opinião.

Ponto.

Embora não seja uma realidade realmente recente – a sociedade ser moldada por opiniões barulhentas, não raramente extremistas é um fato desde os primórdios da civilização, do contrário não teríamos relatos de gente sendo queimada em fogueiras (este é um fato na realidade bem chato e, principalmente, intensificado pela web). O advento da possibilidade de curtir/apoiar/patrocinar/divulgar/compartilhar/dar joinha na opinião alheia de maneira barata e massiva fez com que pessoas que, mesmo sendo completamente diferentes e tendo ideologias completamente opostas se agrupassem em torno de UMA única ideia, quase como se formassem um clã. Não é rara essa única ideia ser o exemplo mais agressivo e abusivo de opinião que existe por aí – temos um nome para isso, inclusive! Chama-se discurso de ódio. E o que deixa a coisa complicada mesmo é que esse povo faz barulho.

Tipo, muito. Mesmo. E no fim das contas, uma torrente de ódio é cuspida rede afora por algumas coisas sem a menor lógica. Querem um exemplo?

Olha gente, essa é a Juliana. A Ju gosta de Mocotó. Tipo, nossa, gostar não é bem a palavra certa pra definir a coisa. A Ju AMA Mocotó. Ela IDOLATRA esse negócio que alguns gostam muito, outros um pouco e tantos outros acham a coisa mais asquerosa que já provaram em sua vida. Porque, veja bem, mocotó não é para todos. Há quem diga, inclusive que mocotó não deveria ser para ninguém porque, afinal, quem diabos ia querer um troço que – dizem as más línguas – é de puro mal gosto, não tem o menor requinte, não acrescenta nada a vida e se bobear faz até mal ao cérebro. Mas pra Ju isso não faz a menor diferença. É uma vida baseada em mocotó. É mocotó no café da manhã. No almoço. No jantar. Na internet. Na biblioteca. As vezes até mistura o mocotó com umas coisas nada a ver com o negócio. Mocotó pra dar e vender, e se dependesse da Ju, ela nem dormia, só pra continuar consumindo o tal do mocotó.

No entanto, por mais que esta atitude não seja considerada a mais satisfatória pelos gourmands mundo afora, a real é que, bem, quem está degustado a porcariERN, quer dizer, o bendito mocotó é a Juliana. Quer dizer que, a não ser que a Juliana venha ENFIAR o mocotó pela sua goela abaixo (literalmente), não tem absolutamente nada de errado nela gostar disso, certo? Ora bolas, nem faz sentido os puristas da degustação crucificarem o coitado do mocotó. Você nunca vai ver um mocotó concorrendo, por exemplo, com um produto top de linha e super refinado – A não ser que seja um (pffft) Mocotó BOM PRA C**** – porque simplesmente são coisas diferentes, entende? Então a Ju tem todo o direito de consumir o mocotó dela, beber, comer com o mocotó, dizer o quanto gosta e admira quem fez, como aquele mocotó representa a vida dela e etc. Porque a verdade é que o bendito do mocotó não está machucando, incomodando ou atrapalhando NINGUÉM!

De acordo? É um ponto de vista válido? Sério? Ufa, ainda bem!

Agora troque a palavra “mocotó” por “livro de youtuber”.

É isso aí!Vou dar até um segundo pra você se recompor.

Tenha certeza: você já praticou preconceito alguma vez na vida. E como leitor, o preconceito literário sem dúvida deve ter te feito de vítima. É normal, a gente começa assim mesmo. Mas não precisa terminar desse jeito. O fato é que – longe de mim defender que qualquer leitura já vale. Senão vou ter que abrir para o papo que a Bíblia já é um livro com histórias o suficiente para se guiar na vida. – no fim das contas se trata de um gosto pessoal. É um tipo de literatura que tem um tipo de clientela, muito bem mirada e cooptada. Não há porque sentir raiva, indignação ou nojo de um livro de Youtuber apenas porque é um livro de youtuber, e muito menos de um leitor de um youtuber apenas porque ele consome este tipo de leitura. Ninguém aqui está roubando cliente de ninguém, e tenha certeza que os livros de youtubers não são alternativas viáveis para um Pullitzer ou um Prêmio Hugo. E, embora nem todo o livro estimule a leitura, ainda se trata de um bom estímulo à rotina de ler.

Lógico, vez por outra vamos nos deparar com coisas realmente bizarras e asquerosas vindo de alguns autores – e nesta leva de pseudo-celebridades internéticas estamos bem servidos viu? – e, quando encarando coisas que NÃO DEVEM ser elevadas ou valorizadas (como racismo, machismo e cultura de estupro e tantas outras coisas) temos que ser conscientes ao combater aquele pensamento. Não porque quem escreveu se comporta que nem um retardado na frente de uma câmera via streaming (vamos falar a verdade, deve ter até mesmo algum que você goste) mas porque esta pessoa está colocando como positiva uma atitude execrável. Não podemos falar “Fulano do canal x fez um livro merda porque youtuber não sabe escrever”. Não, o caso aqui é outro. O caso aqui é que o “Autor fulano, em seu livro, defende a atitude x, e isso é errado!”. Caso se trate de um debate, a abordagem é tão importante quando o conteúdo da mensagem. Do contrário, vira (mesmo que aparentemente) apenas ódio gratuito despejado.

Lembrem-se, caros leitores, que muitos autores considerados mestres de seus tempos e estilos também fizeram o mesmo, mesmo sem nunca ter publicado um vídeo sequer na internet. Monteiro Lobato foi um racista de marca maior, assim como Lovecraft, e você não vê nenhum vídeo deles xingando muito na rede. Misoginia já passou pela caneta de grandes escritores dos anos 80 pra trás. Mesmo hoje você vai encontrar gente que escreve ótimas histórias mas que mantém desvios de conduta – e moral – em primazia.

Ser youtuber, jornalista, cozinheiro ou lenhador não definem a qualidade final do que você vai escrever, muito menos do que vá falar. Portanto, como direito constituído, temos que respeitar o que cada pessoa deseja ler, não importa o quando achemos bobo ou inútil. Nosso pensamento crítico é melhor servido combatendo os pensamentos realmente nocivos que podem existir dentro do livro ao invés de simplesmente criticar uma classe crescente de autores por ser quem são – novos famosos aproveitando sua vitrine para falar algo para seu público. Isso, afinal, não é nem algo novo: Autobiografias se tratam exatamente disso.

Defendo, sem dúvida, que sejamos responsável com a cultura e conhecimento que absorvemos. Mas também não podemos colocar nossas predileções em pedestais. O que te entretêm pode não entreter o vizinho. Esta cruzada literária, portanto, deveria estar ocorrendo de outra maneira mais positiva.

Se é que existe alguma, neste caso.