As paredes do meu quarto já não têm a mesma cor, e tudo o que restou foi uma mancha do café fresco que você derrubou, ao se assustar com a borboleta roxa que havia entrado pela janela. A luz, em toda a sua incandescência, parece esmorecer a cada segundo que passa, assim como minha alma. O seu riso curvilíneo e a sua risada assombram a minha imaginação, e já não consigo mais pensar noutra coisa. Tento me afastar de tudo o que me remete a ti, mas não consigo esquecer de cada segundo que passamos juntas, de cada momento que tivemos enquanto foi possível termos. A brisa noturna me acalanta quando o seu abraço me faz falta. Fecho os olhos e imagino o calor do seu corpo junto ao meu… e volto a me sentir protegida e acolhida. Seus abraços… Lembro-me de quando você escreveu aquele poema para mim e me entregou, lembro-me de como me senti ao tocar o papel, no qual a sua letra se encontrava desenhada, tão bem articulada, e em seguida, no ápice da felicidade, joguei-me nos seus braços e, em troca, recebi o mais terno abraço. Suas mãos me envolveram, foi como se tivéssemos virado uma só, duas almas habitando o mesmo corpo.
Levanto. Faz alguns dias que me viro nestes lençóis e derramo essas lágrimas amargas que me queimam de dentro para fora, esvaziando-me de qualquer esperança. Vou até a cozinha. Como. Bebo. Em seguida, escovo os dentes. Olho para o relógio, são três da tarde. Foi nesse horário que marcamos o nosso primeiro encontro. Sinto uma lágrima escorrer, mas rapidamente a seco. Eu preciso viver, não posso mais continuar assim. Corro até o quarto e abro a janela; faz um dia tão lindo lá fora! Fecho os olhos e respiro fundo para sentir o frescor da tarde. Ouço pássaros cantando, pessoas rindo, algum bebê chorando, um cachorro latindo. A vida, ela existe de fato! Eu preciso seguir em frente com os meus planos, e, por mais que todos pareçam insanos, eles precisam ser postos em prática; eu preciso viver tudo aquilo que planejei viver… Mesmo que seja sem ti. Vou até minha estante de filmes, passo o dedo por todos até chegar naquele… aquele que assistimos juntas tantas vezes, e que em todas choramos sem parar. Pego-o, abro e depois fecho a embalagem de novo e o coloco no lugar. Não há lágrimas, e isso já é um avanço. Dirijo-me até o filme da ponta da estante, esse eu nunca vi, e sei bem o porquê. Você nunca gostou de vampiros, e eu sempre respeitei isso. Por algum motivo, você sempre teve medo desses seres inexistentes, e por isso nunca quis ver esse filme. Mas eu quero vê-lo. Eu quero.
O filme começa e eu me encolho na cama. Agarro o travesseiro, sinto a adrenalina correr por minhas veias assim que a primeira batalha começa logo nos primeiros minutos. Torço, me agito, grito, me encolho de medo. Os minutos passam, o filme corre, e eu me esqueço de ti. Pelo menos durante algum tempo, eu me esqueço. Então o telefone toca e eu corro para atender. É a sua mãe.
— Você precisa vir buscar uma coisa que ela deixou para você.
— Eu não posso…
— Por favor, você precisa. Ela adorava isso mais do que tudo no mundo, e me pediu para te dar.
— Quando posso ir?
— Quando quiser, querida.
Despeço-me, desligo o telefone. Olho para a televisão, mas não tenho coragem de tirar o filme da pausa. O que será que você queria tanto me dar? Por quê? Eu nunca soube de nada que você gostasse tanto assim, porque, afinal, você quase nunca estava em sua casa. Nós praticamente morávamos juntas… Ah, o aconchego deste lar enquanto você esteve aqui… E agora tudo parece tão oblíquo… As cores das paredes se misturaram e tudo está cinza; a única cor que restou foi o marrom do café que você derrubou na parede. A noite do café! Nessa noite você me disse que acreditava no poder das cores, e que a borboleta roxa que estava no nosso quarto era sinal de que algo muito espiritual estava por vir. Você fez uma análise completa, mas é só dessa parte que me lembro… Acho que você, esteja onde estiver, entende o motivo.
Dia três de outubro, dez da noite. Sua mãe me ligou desesperada. Pelo que entendi, você estava no hospital, morrendo. Perguntei qual hospital era, peguei minhas coisas e saí correndo. Peguei o carro, dirigi, cheguei ao hospital. Minha voz não saía, minha garganta estava seca, o ar parecia estar pesado. Eu não conseguia pensar, eu só queria você. Eu só queria você viva. Corri para o primeiro médico que encontrei, comecei a gritar por ti e logo sua mãe me viu. Ela veio, me acalmou, me sentou numa cadeira, me deu água e me disse:
— Ela morreu.
Senti meus pés ficarem frios, minha cabeça começou a rodar e um desespero se apossou de mim. Olhei para os lados, as vozes das pessoas me irritavam, todos ali pareciam vultos. Os cabelos, as cores vibrantes, tudo me causava tontura. Ânsia de vômito, gritos. Eu consegui gritar, e eu gritava o seu nome. Sua mãe chorava desesperada ao meu lado e eu estava incontrolável. Como aquilo era possível?! Há menos de vinte e quatro horas você estava comigo, feliz, rindo do café que havia derrubado, explicando sobre a cor da borboleta, contando sobre os seus planos para o futuro junto de mim. Não, aquilo tinha de ser mentira! O seu sorriso, o seu beijo, a sua voz quando nos despedimos…
— Mal posso esperar para realizarmos todos os nossos sonhos juntas — você me disse com um sorriso no rosto, antes de sair pela última vez de minha casa e nunca mais voltar.
Eu queria ter levado aquele tiro, eu queria ter estado no seu lugar, eu queria! Eu queria ter permitido que você escrevesse as suas páginas inacabáveis de felicidade, repletas de histórias para contar. Eu queria ter permitido que o brilho do seu sorriso nunca se apagasse, que os seus olhos amendoados continuassem a ficar esverdeados quando o sol batesse em seu rosto ao acordar. Queria que a vida não tivesse sido tão injusta contigo.
Dia três de novembro, cinco da tarde. Vou buscar a tal coisa que você deixou para mim. Sua mãe, ao me atender, sorri com timidez e fecha os olhos, numa expressão de alívio.
— Entre, querida — ela me convida carinhosamente com sua voz serena.
Entro e me sento no sofá. Ao meu lado está uma foto sua, de quando era criança. Você está sorrindo, com um grande pedaço de bolo de chocolate na mão. Seu rosto e roupa estão lambuzados de chocolate. Pego o porta-retrato e fico olhando para a foto. Não consigo imaginar uma criança mais feliz do que você no momento daquela foto, toda lambuzada de chocolate.
— Tome, é isto aqui — diz sua mãe, estendendo-me uma caixa marrom, o que me faz levar um susto.
Largo a sua foto ao meu lado e pego a caixa. Observo-a por infindáveis minutos, tentando imaginar o que estaria esperando por mim. O que você tanto gostava que fez questão de me dar, amor?
— É… eu esqueci de te contar… ela tinha acabado de comprar isto — diz sua mãe, alguns minutos depois.
— Mas a senhora não havia me dito que ela adorava isso que está aqui dentro mais do que tudo? — pergunto, confusa.
— Sim, ela adorava, sim. Nunca a vi tão feliz com alguma coisa quanto quando ela comprou isto. Abra. Era para você; ela me fez jurar que te entregaria.
Abri a caixa e não acreditei no que vi. Era um pingente de borboleta roxa. Ela tinha comprado aquele pingente, e aquilo representava tanta coisa para mim! Ela sabia que eu sempre me lembraria dela, e sabia que aquilo eternizaria tudo entre nós. Aquele momento com a borboleta nos fez sentir algo diferente, como se tudo tivesse mudado. Um ar místico se apossou de nós, e ela sabia que precisava eternizar o nosso amor com aquela borboleta. Ela sabia, e eu também.
Não vou dizer que aquele pingente fez a minha saudade diminuir, mas digo que me fez perceber que Celina não gostaria de me ver sofrer. Ela sempre quis me ver sorrir… Ela dizia:
— Marcela, você tem que ser feliz, sabe.
Eu serei feliz, eu viverei, eu realizarei todos os meus sonhos. Eu viverei tudo aquilo que havíamos planejado.
Eu viverei, e o nosso amor ficará eternizado. Ele ficará desenhado nas estrelas, na luz do luar, no raiar do sol, nas asas de cada borboleta roxa. Nosso amor sempre será único. Para todo o sempre.
Adriana Rodrigues: Lésbica, feminista e aprendiz de escritora.