— É simples. Você faz e ficamos zerados, Pat. O último trabalho para o grupo.
Lembrou-se das palavras de Crocodilo Mendonça. Retirou o capacete com visor computadorizado liberando as longas orelhas brancas e sentou-se próxima à parede, largando o acessório ao lado.
Tremia feio. Nem parecia uma profissional. O cheiro dos pelos queimados e a catinga lhe invadiam as narinas, bem como a percepção do que fizera. Lá no fundo de sua cabeça ecoava a risada de Dilo, ao afirmara ser só mais um serviço e depois estaria tudo pago. Só mais um.
— Está liberada depois de fazer. O que me diz?
Quanta promessa! Acreditara nisso. Queria muito! acreditar nisso. Mas, para ela, não havia salvação possível, nem alternativa que não fosse o inferno. E sem cenouras!
Sempre pensava no inferno ao julgar os contratos executados no submundo. O inferno, como destino final das ações praticadas; pagamento merecido pelos infelizes que deixavam, através do uso daquela arma de raios desintegradores, de usurpar espaço no mundo. Mas uns eram traficantes, outros assassinos, outros aliciadores. Entrar no mérito da questão consistia em ir além da capacidade que tinha.
Muitas vezes, enxergava-se como uma justiceira, uma heroína limpando o mundo das porcarias da criação divina. E eles eram porcarias. Uma faxina bem feita, era o que ela fazia. E, ao ponderar sobre essas questões, aí, sim, o paraíso se fazia recompensa, aposentadoria justa. Uma relva verdinha e uma horta de legumes.
A lembrança da origem pobre, dos ensinamentos maternos, da vida no interior, o estudo com sacrifício, contudo, desequilibrava a balança. Fazia-se perceber a necessidade de sair daquela vida dupla. Arrumar um emprego decente. Deixar de fazer bicos como segurança. Tornava-se impossível sustentar uma vida diurna depois de viver a noite em meio ao crime. Além do mais, vida de bandida não é vida. Vida de assassina, pior ainda.
Se a mãe estivesse viva, morreria de desgosto.
— Seja honesta nessa vida, minha filha. Não é bom carregar um nome cheio de lama.
— O que os honestos levam dessa vida senão uma viagem dentro de uma caixa de madeira para sete palmos de fundura? — A contestação entranhava-se. Era parte dela.
— Não seja ingrata. Olhe o que temos! Temos uma toca…
— Caindo terra por todos os lados.
— É uma toca boa. E você tem um trabalho.
— Para receber uma míngua de cenouras mensais.
— Você está assim porque a cidade grande carrega o seu coração com coisa inútil.
Ela, que carpia o chão com as mãos calejadas e duras e a criara rezando a couve-nossa todos os dias, não aguentaria ver a filha embarcar naquela viagem de matadora de aluguel. Nem se fosse para alimentar as bocas dos outros dez irmãos orelhudos. Dona Maria das Dores Coelha seria levada para o além sem misericórdia. Mas o jeito, agora, era enxotar a imagem da mãe e partir para a ação.
O serviço dera errado desde o começo. Precisava consertar toda a bagunça. O desgraçado se enfiara em algum quarto daquela caverna gigante. Fora esperto ao deixar um dos capangas na cama, com a prostituta.
— Infeliz.
Nem para encarar a morte Javali Eustáquio servia, mas o miserável não tardaria a encontrar o caminho do fim. O abrigo não era tão grande, e sobrariam raios desintegradores se contasse o resto dos capangas e as cargas que ainda possuía no pente extra de energia.
Ainda sentada próxima da porta, sentindo o frio que vinha da galeria, observou com cuidado a cena. Desejou não ter acertado a preguiça de batom vermelho, mas ela gritara, sem respeitar o sinal de silêncio. Jamais imaginaria a rapidez de um grito de preguiça. Poderia estar viva, a infeliz. Estúpida e burra. E lá, parada no olhar arregalado do Carlos Hiena, morto-mortinho, um estalo ligou todas as pontas.
Crocodilo Mendonça escondia-se por trás da armadilha. Mas que idiota eu fui! Dilo a convencera do trabalho não por nada! Estava ali para ser morta. Sabia demais. Fizera demais. Tornara-se um peso para o grupo.
— Desgraçado. Filho da mãe.
Os dentes frontais rasparam no pelo do queixo e o tremor se juntou a um arrepio, fazendo o rabo eriçar. As orelhas se enrolaram e desenrolaram várias vezes. Agora, mais do que largar aquela vida, queria mesmo era acabar com os desgraçados. Não sairia morta daquela tocaia. Morreria de velha, em uma pradaria do interior, onde a fertilidade do solo a presentearia com o que havia de mais suculento, mas não ali, no meio daquele bando de traficantes. E o Dilo que se preparasse. Haveria de fazer um par de botas.
— Vou abrir suas mandíbulas e enfiar a cabeça do Eustáquio goela abaixo.
Verificou a arma e apertou o botão de carga máxima. Faria muito estrago. Talvez aquela toca gigante desabasse sobre sua cabeça.
— Que droga!
Recolocou o capacete. Ajustou o traje para segurança máxima e acionou todos os mecanismos de busca.
Ligou o celular acoplado àquele elmo protetor. Discou o número da polícia. Conhecia Pedro Raposão, o delegado da área. Tirou da cintura a arma sobressalente de projéteis explosivos. Disparou três vezes para o alto fazendo desabar parte do teto enquanto a atendente do outro lado da linha fazia perguntas. Quanto mais bicho atirando dentro daquela caverna, mais fácil seria sair ilesa da confusão.
Deu um tempo e seguiu pela direita, em direção às outras galerias mais estreitas.
— Sai da toca, Porco! O seu tempo de fuçar acabou.
***
Nota: Personagens pelúcios. Baseado nas construções de Tim Davys.
Evelyn Ema Postali nasceu em Antônio Prado, uma pequena cidade serrana do interior do Rio Grande do Sul. É professora de Artes. Ama desenho, fotografia, música e costuma observar pássaros.
Ilustra e-books e, eventualmente, produz capas para e-books e livros. Frequentou algumas oficinas literárias com Diego Schutt, Eric Novello, Natália Borges Polesso e Ceres Marcon. Participou de algumas coletâneas das quais se orgulha: Estranha Bahia (EX!Editora), Monstros/ Seres Mitológicos/ Luz e Escuridão (Editora Buriti) e Ponto Reverso/ Amores (Im)possíveis/ Livre para Voar/ O Segredo da Crisálida v.III (Andross Editora). Escreve contos do gênero fantasia, ficção científica, horror, drama, romance. Seus contos e poemas podem ser encontrados em seu blog, no Wattpad e no EntreContos.