Ninho do Corvo

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De onde estava, a parte alta do vale, ele vira ao longe nuvens negras se formando — sinal de que a tempestade não estava longe. Sentia no vento em seu rosto que ela trazia consigo algo mais que chuva.

O Vale de Sangue era o lugar de onde observava parte do Ninho do Corvo, suas terras. Ele não se lembrava mais o porquê daquele nome. Seu pai havia contado o motivo na sua juventude, mas agora, com a idade mais avançada, sua memória já não era tão boa. Seria, talvez, pelos canteiros de flores crista-de-galo, espalhados ao longo do terreno, vermelhas como sangue… ou talvez por alguma batalha que ocorrera lá. Mas isso já não importava; logo ele travaria sua própria batalha.

— Senhor, eles estão descendo o Vale — disse Félix, seu escudeiro. O lorde tinha grande apreço pelo escudeiro, sem saber ao certo o porquê de tanta estima. — Devem ter viajado durante a noite. Os batedores disseram que eles só chegariam amanhã.

Viu um exército se movendo em sua direção, tão grande quanto o seu. Homens bem armados, com armaduras verdes de um tom quase vivo, elmos de um dourado da cor do sol, descendo o Vale em marcha, liderados por Lorde Argos do Sol Negro, conquistador dos Pântanos de Fogo e da Torre da Neblina, e que agora mirava o seu Ninho do Corvo.

Ao lado dele vinha Ivan, um velho gigante, de uns três metros de altura, servo do lorde há vários anos, persuadido não se sabe como por ele. E um gigante, mesmo velho, é de se temer, quando se está no lado oposto ao seu em uma batalha.

— Avise a todos para se prepararem — disse Lorde Frederico do Ninho do Corvo, o Lorde de Sangue, em sua armadura vermelha, feita dessa cor para esconder seus ferimentos em batalha. Portava sua espada Sangue de Corvo, feita de ouro vermelho.

Viu algo se mover do outro lado do campo de batalha. Era uma pequena comitiva que se aproximava. Carregavam uma bandeira dourada com o sol negro no centro. Algo em torno de quinze cavaleiros. Quando se aproximaram pôde vê-los melhor. Era a guarda pessoal de Lorde Argos, que vinha escoltado no centro deles.

— Salve, Lorde de Sangue, Senhor do Ninho do Corvo! — disse um dos cavaleiros, possivelmente um jovem escudeiro recém-promovido, a julgar pelo porte físico. — Lorde Argos deseja falar com o senhor.

— Mande seu lorde sair das minhas terras e dar meia volta, ou farei minha Sangue de Corvo provar seu gosto.

— E por que eu deveria sair das terras que logo serão minhas? — perguntou uma voz vinda do meio do círculo de cavaleiros. Era o Lorde do Sol Negro, que fez seu cavalo sair do círculo de escudos que o cercavam, se pondo à frente deles. Era alto, forte e carregava um sorriso malicioso no rosto.

— Então você retornou — disse Frederico com sua voz firme. — Eu lhe disse na batalha no Riacho de Prata que, se você voltasse, eu faria você provar o aço da minha espada.

— Velho tolo! Você não aguentaria um combate singular em um torneio; o que dirá dessa batalha que está por vir. Renda-se, ou vou tomar todas suas terras, e empalá-lo com minha Espinho de Dragão, e fazer jus ao nome desse vale.

— Jamais! Não serei facilmente conquistado — respondeu Frederico.

— Veremos — respondeu Argos. Dizendo isso, deu meia volta com sua pequena comitiva e retornou para o seu exército.

Lorde Frederico deu ordens a Félix para que todos se preparassem. A batalha haveria de começar. Olhou para céu e viu as nuvens negras se posicionando sobre eles, como uma plateia ansiosa pela batalha. Elas começaram a retumbar como tambores de guerra, com fortes estrondos que faziam o chão tremer. Ou seria a marcha de ambas as tropas que causava aquele efeito?

Os homens de Lorde Frederico se posicionaram em filas de cinquenta soldados cada uma, com elmos e armaduras de um amarelo opaco, com espadas numa mão e escudos em outra, trazendo no centro a bandeira do corvo vermelho num fundo negro. Alinhados e prontos para a batalha, esperando suas ordens. Ele não tinha um discurso para dizer antes de tudo começar. Conhecia bem seus guerreiros e sabia que todos estavam dispostos a lutar por ele; que morreriam para defender aquela terra; que seriam ferozes e tenazes no campo de batalha.

— Homens, não tenham piedade deles, pois eles não terão de vocês! Tomem tudo deles, e não se entreguem sem lutar.

Então gritou:

— Ataquem, cavaleiros do Ninho do Corvo!

E tudo começou. Os exércitos chocaram-se, espadas colidiram, homens tombavam de ambos os lados, gritos de ataque e de dor se misturavam aos sons da batalha. Seus guerreiros atiravam flechas, tentavam acertar o gigante, enquanto sua infantaria atacava com força máxima. Félix, seu fiel escudeiro, estava ao seu lado atacando com uma ferocidade incrível. As espadas retumbavam umas nas outras. Num encontro de aço contra aço, ele acertou um oponente na barriga, e outro no punho, decepando a mão do adversário, fazendo-a voar pelos ares. A chuva começou a cair forte, como que para se misturar à batalha. O vento era intenso e frio; no ar, o cheiro de sangue e lama se misturavam.

Frederico atacava como um leão ataca sua presa. Queria chegar onde Lorde Argos estava, para pôr suas espadas à prova, mas ele ainda estava a uma pequena distância.

Ivan, no entanto, estava próximo a ele. Seus homens o atacavam, mas era o mesmo que atacar um paredão de pedra; não conseguiam ferir o gigante. O enorme guerreiro abriu caminho entre os corpos no chão em sua direção. Frederico sabia que não teria forças para tal adversário, mesmo estando Ivan em idade avançada.

Contudo, como que por alguma feitiçaria, quando o gigante e ele estavam frente a frente, e já se preparavam para atacar com todas as forças, ouviram um poderoso estrondo e um clarão. Quando Frederico olhou novamente viu Ivan tombando aos seus pés. E, olhando com mais atenção, viu um enorme buraco em sua cabeça, com fumaça saindo de lá. Um raio diretamente no cérebro foi o que houve. Frederico teve sorte pelo gigante não ter caído em cima de si; se estivesse um passo à frente teria sido esmagado.

Agora Lorde de Sangue se dirigia para onde estava o Lorde do Sol Negro. Dois cavaleiros bloquearam seu caminho. Ele partiu para cima deles. Com a Sangue de Corvo em sua mão, desferiu um golpe contra o primeiro, mas esse defendeu-se muito bem contra sua espada. Frederico atacou novamente e o cavaleiro bloqueou outra vez, mas dessa vez foi mais rápido e, ao sentir o bloqueio, sacou sua adaga escondida e a fez atravessar o oponente na barriga. Ele caiu de joelhos aos seus pés. Estava morto. Ao virar-se, deu de cara com a espada do segundo oponente passando rente ao seu peito, mas ele estava com uma expressão de dor e tombou para o lado. Foi quando pôde ver que Félix tinha golpeado seu adversário pelo flanco direito, salvando sua vida. Olhou ainda com mais apreço para o rapaz e disse:

— Mande o exército avançar pelos flancos.

O rapaz saiu correndo, sem questionar suas ordens.

Finalmente ele pôde encarar Lorde Argos frente a frente. Eles não disseram uma palavra; apenas se lançaram um contra o outro. O Lorde do Sol Negro era rápido e forte; seus golpes eram como um martelo de um ferreiro moldando o aço em cima de uma bigorna. Frederico, no entanto, também era um duro adversário, e atacava com fúria. Sangue de Corvo e Espinho de Dragão colidiram. Argos faz um movimento giratório, e por pouco não decepou a cabeça de Frederico, que por instinto se abaixou no momento certo. Quando se levantou, devolveu o golpe e pensou “acertei”, mas se enganou. Argos era mais rápido; conseguiu se desvencilhar do golpe e o derrubou no chão, fazendo seu tronco e, logo em seguida, sua cabeça baterem fortemente contra uma pedra.

Sentindo uma forte dor na parte de trás da cabeça, ele sabia que precisava levantar rápido, precisava revidar, mas não havia força. Tentou fazer um movimento brusco para se levantar, mas estava zonzo por causa da pancada, e caiu novamente. Sentiu uma forte dor na barriga. Não era a primeira vez que sentira aquilo. Com certeza havia quebrado uma ou duas costelas. Tentou se levantar novamente, mas as forças não vinham, seu corpo estava velho. Não poderia ser derrotado por uma pedra, não quando estava defendendo suas terras. Foi quando olhou para o lado em direção à batalha. A chuva caindo em seu rosto, o gosto de sangue na boca, e não acreditou no que via: Félix estava cercado por muitos soldados lutando e gritando. Era bravo, mas logo seria derrotado. Seus homens tombavam um a um no choque dos exércitos, como se fossem uma plantação de milho seco tombando durante uma forte da tempestade.

Tentou se levantar mais uma vez, mas foi em vão. O corpo não reagia, a pancada havia sido forte. Ele olhou para cima: a tempestade começava a diminuir para uma leve garoa. Viu as pesadas nuvens o encarando, olhando sua derrota. Ouviu passos se aproximando. Sentia que sua hora havia chegado, e que no fim os papéis se inverteriam, e seria ele a provar o aço de Lorde Argos, para depois ser empalado como prometera ferozmente a seu oponente. Fechou os olhos e aguardou o golpe final.

Mas esse golpe jamais veio. Ele apenas ouviu uma voz:

— Consegui encontrá-lo! Ele está aqui — disse uma voz. — Até que enfim o achamos! O senhor está bem? — perguntou a voz.

Frederico não respondeu. Virou-se e abriu os olhos para ver quem seria. Era um jovem que estava em pé ao seu lado, de braços fortes, e rosto familiar. Mas não o reconhecia.

— Se consigo levá-lo até a sede? Claro que consigo — dizia o jovem a uma pequena caixa mágica próxima ao seu rosto. “Será ele algum mago?”, pensava o Lorde de Sangue. Até que perguntou:

— Quem é você? Eu o conheço?

— Claro que conhece. Sou eu, Carlos! — o jovem respondeu.

— Você é algum mago? — indagou o Lorde.

— Mago? Não vovô, sou seu neto. Não se lembra? — disse Carlos.

— Neto? — Frederico perguntou confuso.

— Sim. E pelo visto o senhor esqueceu de tomar o remédio hoje de manhã, não foi? O que estava fazendo nessa tempestade?

Frederico não compreendia o que estava acontecendo, mas respondeu.

— Defendendo o Ninho do Corvo.

— Vovô, Ninho do Corvo é sua fazenda. E defendia ela de quem?

— Contra Lorde Argos — e apontou o dedo para o seu oponente, que ainda o encarava a uma pequena distância. Mas já não tinha a mesma aparência. Parecia diferente.

— Vovô, aquele é o espantalho da plantação de girassóis do vizinho. E pelo visto o senhor acabou com uma boa parte deles. Por pouco não acabou com o espantalho.

— Mas e o gigante caído…? Você pode vê-lo, não pode?

— O que vejo é aquela velha árvore de cedro, que caiu durante a tempestade. E por sinal, bem próxima ao senhor.

— Mas… e meu exército? Vários tombavam perante o inimigo…

— Exército, vovô? O que vejo tombado é nossa plantação de milho, que já está passando da hora de colher. Com esse vento forte durante a tempestade eles tombaram aos montes. Agora vamos para casa. Vovó está preocupada com o senhor.

— Não consigo levantar, estou sem forças. E acho que com uma ou duas costelas quebradas.

— Fique calmo, eu o carrego até em casa. Vovó já deve ter ligado para o médico. Ele saberá o que fazer.  

— Félix. Onde está Félix?

— Quem é Félix, vovô?

— Meu escudeiro.  

— Vovô, não tem nenhum escudeiro aqui. Quando cheguei, apenas Sam estava aqui, perto do senhor. E foi graças aos latidos dele que pude te achar.

— Sam?

— Sim, seu cachorro. Está nos acompanhando, veja!

Olhou e viu um forte cão branco, abanando o rabo, ao lado deles.

— E minha espada? Não podemos deixá-la aqui.

— A única coisa que estava com o senhor era sua bengala. E a estou levando também. Gigantes, cavaleiros, espadas e escudeiros. Parece que o senhor andou participando de uma grande batalha — disse Carlos. — Ao chegar à sede, a primeira coisa que fará será tomar seu remédio da esquizofrenia.

— Esquizofrenia — o velho repetiu, ainda perplexo, tentando entender que magia era aquela, que mudara o destino da batalha.

— Sim, vovô, esquizofrenia. Logo o senhor estará bom. Agora vamos. Sua donzela nos aguarda, cavaleiro do Ninho do Corvo — dizendo isso, Carlos sorriu, ergueu o velho nos braços, que não pesava muito, e pôs-se a caminhar em direção à sede da fazenda.



Luís Henrique da Cunha
 é um nerd assumido,  muito fã de Tolkien e apaixonado pela sua obra. Começou a escrever esse ano, e a cada dia toma mais gosto pela escrita. Seus contos são de ficção e fantasia, gêneros que aprecia.