Cérebro e coração

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Capa de Ademir Pascale

Max, meu irmão caçula, é obcecado por hábitos antigos. Muito antigos, devo dizer. Em seu simulador de experiências, costuma elaborar e participar de programas nos quais se disputam as chamadas Olimpíadas. Disse-me, com incompreensível orgulho, já ter obtido medalhas em algumas modalidades esportivas.

Ele utiliza com frequência uma palavra inexistente na Enciclopédia Galáctica para designar o resultado da forma voluptuosa que conferiu a seus músculos: sarado. Contou-me certa vez que esse termo é oriundo de uma subespécie vocabular conhecida como gíria e que estava ligado ao gosto que os habitantes de alguns séculos primitivos tinham por cultuar o condicionamento físico e a hipertrofia muscular.

Eu me diverti bastante quando Max explicou que aqueles trogloditas procuravam expandir sua musculatura aos extremos. Custo a acreditar que os antigos viam beleza naquilo: desfrutavam de uma fração mínima de seus intelectos e, ainda assim, estavam mais preocupados em desenvolver os músculos do que o potencial encefálico adormecido.

Bárbaros!

Dentre os esportes que meu irmão gosta de simular, o que mais lhe atrai é uma contenda coletiva conhecida pela designação futebol. Ele atribui elevada importância a este esporte. Chegou ao extremo de determinar a nosso materializador que produzisse um complexo mecanismo de treinamento — trata-se de estranhas geringonças com a ajuda das quais ele pratica uma ampla variedade de exercícios físicos e de apuração técnica.

Estou me preparando para a simulação de uma nova edição da Copa do Mundo de Futebol, confidenciou-me certa vez, sem que eu compreendesse muito bem o que significava aquilo.

A verdade é que a civilização do início do século XXVI não guarda registros dos comportamentos imaturos das antigas eras, apenas de suas atividades relevantes — obviamente, aquelas capitaneadas pelo cérebro. Para o bem da evolução da espécie, aqueles tempos de desperdício de energia foram sepultados por nossos historiadores. Somente em alguns nichos da antiga internet é que se consegue encontrar registros da verdadeira selvageria que os contemporâneos da Era Olímpica nomeavam atividades esportivas. Max é um dos chamados saudosistas — um pequeno grupo de desajustados que cultuam os hábitos antigos.

— Não é saudável que o corpo humano continue se atrofiando. A não utilização do potencial muscular está transformando os seres humanos em criaturas raquíticas — desabafou ele.

— E a “não utilização” de todo o potencial cerebral tornava os antigos prisioneiros de atividades patéticas e que nada acrescentavam ao saber — rebati, com o ar de autoridade que todo irmão mais velho deve possuir.

— Venha comigo! — disse-me ele, num repente emotivo. — Participe da simulação que preparei hoje: uma peleja entre a seleção da Sudamérica e uma esquadra de alienígenas cascudos.

Imaginei-nos, a princípio, em contendas corporais com répteis quelônios —  originários, provavelmente, do sistema estelar Alpha Centauri C. Entretanto, habituado com o linguajar maculado de meu irmão e com sua predileção por antiquadas práticas esportivas, soube questioná-lo de forma adequada:

— O tal futebol?

— Sim! — bradou ele, com empolgação.

— Não vou desperdiçar meu tempo com diversões acéfalas!

— Você atuará apenas como expectador. Não precisará entrar em campo. E… pense bem, mano: como você pode dizer que uma atividade é acéfala sem ao menos tê-la presenciado uma vez? Não seria inteligente, não é verdade? E fique sabendo que, embora as qualidades físicas sejam muito importantes num jogo de futebol, o raciocínio dos jogadores também o é. Isto sem contar toda a parte estratégica, previamente elaborada por especialistas.

Vi-me diante de argumentos invencíveis. Tive que ceder.

*

— Nova simulação! — ordenou Max ao seu brinquedo favorito, que se perfectibilizava em uma pequena circunferência prateada, capaz de simular realidades alternativas e projetá-las no centro de nossa sala de estar.

— Inserir coordenadas — solicitou o aparelho de tecnologia quadrimensional, com sua voz doce de meretriz apaixonada. Só mesmo Max para comutar a voz de um equipamento tão caro…

— Amistoso futebolístico entre a Sudamérica e os Battolls, de HD 40307g – respondeu prontamente o caçula da família.

Era de conhecimento comum, entretanto, que os Battolls não passam de hominídeos primitivos. Tangenciam o irracionalismo.

— Estes seres sabem jogar futebol? — objetei.

— É uma simulação. Entre no clima!

Entre no clima? Estranhei a expressão, mas apenas por uma fração de segundos. Por certo, mais uma vez meu jovem irmão imitava a linguagem coloquial dos séculos primitivos. E este não era o único vício que desenvolvera: habituara-se também a projetar imagens mentais de estranhos sinais, uma forma de comunicação não verbal constituída por caracteres tipográficos. Segundo Max, eles transmitiam emoções e eram muito utilizados em diálogos na antiga internet. Uma tolice. Eu jamais me expressaria utilizando tão pueril jargão.

A máquina interrompeu meus devaneios:

— Em qual estádio deseja jogar, simulante? — questionou ela, agora com voz descaradamente sensual. Parecia a anfitriã de um bordel virtual.

— Defensores del Chaco, na Província do Plata! — A voz de Max já estava acelerada pela ansiedade. — Meu irmão Guilherme será um expectador. Coloque-o na Tribuna de Honra do Estádio.

Intervim:

— Já que vou participar desta sandice, desejo ser alguém mais importante do que um mero expectador. Farei parte da equipe sudamericana também.

— Vai conseguir correr? — zombou Max.

— O condicionamento físico não está incluído na simulação?

— Em tese sim, mas eu jogo sempre no modo realístico. Se você quiser integrar a equipe, terá que contar em parte com o seu próprio preparo físico. — Ao final desta frase, pude ver um sorriso irônico sendo esboçado na face do adolescente brincalhão.

— Ora, é evidente que eu não tenho condições musculares adequadas para participar desta barbárie! Ainda mais contra os trogloditas dos Battolls!

— Eles terão sua força física reduzida em vinte por cento.

— Ainda assim serão mais fortes e mais altos. Sem contar o par de braços a mais.

— O futebol é jogado com os pés — gracejou Max. — Ei, espere aí!

Naquele momento, identifiquei um brilho nos olhos de meu irmão, típico das ocasiões em que lhe surgia uma ideia mirabolante, por óbvio alguma excentricidade da qual a inteligência aconselharia não participar.

— Simulador, meu irmão Guilherme será o treinador da equipe Sudamericana. Executar programa.

— O que é um treinador? — questionei, alvoroçado.

— É o mesmo que diretor técnico.

— E o que, pelas focas de Encéladus, significa diretor técnico? — berrei a plenos pulmões.

— Significa que você não vai precisar correr. Só ficar nervosinho e gritar. E você é bom nisso — foi sua sorridente resposta.

Tentei objetar, mas era tarde demais. A simulação já estava em andamento.

*

Um facho de luz branco-perolada formou-se a partir do chão, no centro da sala, chegando ao teto. Tinha cerca de um metro e meio de diâmetro. Max adiantou-se e, com um movimento de cabeça, convidou-me a também entrar. Hesitei, mas culminei por embarcar em seu sonho juvenil.

Nos primeiros segundos, nada aconteceu. Apenas estávamos dentro de um raio de luz, experimentando a sensação de que a temperatura lá dentro era um pouco mais alta do que o padrão para ambientes domésticos. Foi então que Max solicitou os controles à máquina:

— Fornecer estimulante número um. — Uma pequena névoa azul formou-se à frente de nossos olhos, adquirindo um estado próximo à solidez. Max tomou-a em suas mãos, moldou-a com os dedos e a acoplou na borda de uma orelha. — Fornecer estimulante número dois. — Seguiu-se o mesmo processo. — É com você, mano!

Apanhei o pequeno aparelho em minhas mãos, notando que sua consistência era gelatinosa. Imitei o procedimento adotado por meu irmão.

Em uma fração de segundos, uma nova realidade começou a ser formada ao nosso redor. O cenário holográfico expandiu-se com celeridade para produzir a encenação programada por meu irmão. Uma paisagem florida, típica do início do século vinte e dois, foi a primeira imagem produzida pelo simulador de experiências a ganhar vida. Uma admirável visão!

Confesso: estava começando a ficar impressionado com a magnitude daquela brincadeira.

*

Ingressamos em um hotel. Segundo Max, o melhor que existia na cidade de Assunção naquela época. Ao chegarmos ao local, um cidadão que se autodenominou coordenador aproximou-se às pressas e entregou-me um holovídeo. O homem estava agitado. Disse-me que aquele material continha filmagens de atuações esportivas de nossos antagonistas.

— Todos os jogadores estão recebendo cópias deste material, treinador — foi o que me disse, com visível dificuldade para conter sua tensão.

Assisti ao vídeo com os olhos arregalados. Minutos depois, chamei meu irmão no rudimentar aparelho de comunicação que nos foi fornecido. Assim que sua imagem holográfica apareceu em minha frente, falei em ritmo acelerado:

— Você viu o porte físico daqueles gigantes, Max? Além de serem mais altos do que os humanos, já lhe disse que eles possuem dois pares de braços! E notou a grossura das pernas deles? Como poderemos vencê-los?

— Não será uma luta livre, professor. Será futebol — respondeu, dando ênfase à palavra final.

Ele me chamara de professor, uma alcunha muito utilizada pelos chamados boleiros dos séculos XX a XXII. Aquela postura demonstrava que meu irmão já estava com todas as suas energias concentradas no jogo.

Decidi mergulhar de vez em sua fantasia. Com ressalvas, entretanto:

— Você pode sair machucado disto? — perguntei-lhe em separado um pouco mais tarde, num momento em que o veículo denominado aeróbus nos deixava às portas do Defensores Del Chaco.

— Não muito. Fique frio, mano. Lembre-se: é apenas uma simulação.

— Por que devo ficar com frio? Por que o inverno está chegando?

Meu irmão esforçou-se para conter o riso:

— Não, nada disso. É apenas mais uma gíria, só isso. Agora precisamos nos separar. Em alguns minutos você fará uma preleção.

— Mas eu nada sei sobre futebol! — protestei.

Um protesto vão.

*

Eu subestimara a capacidade de Max como programador de experiências. Ele soubera programar os estimulantes neurais com astúcia, inserindo em nossas mentes os conhecimentos necessários para um desempenho satisfatório como futebolistas. Eu fui um bom palestrante, demonstrando até certa segurança e desenvoltura perante os atletas de nossa equipe. No momento oportuno, as palavras adequadas acabaram surgindo em minha mente. Achei a experiência curiosa e interessante.

Estas foram as primeiras orientações que transmiti aos jogadores:

Quando no ataque, nem pensem em alçar bolas na área. Os zagueiros Battolls são mais altos e irão levar sempre a melhor nestas jogadas. Procurem confundi-los com tabelas rápidas e, ao realizarem jogadas pela linha de fundo, prefiram complementá-las com cruzamentos rasteiros.

Os atacantes do adversário são quase tão altos quanto seus zagueiros; portanto, quero que, quando estivermos na defesa, nossos meio-campistas auxiliem os alas na marcação. O objetivo é evitar que bolas sejam levantadas em direção à nossa área. Notem: é muito importante não lhes ceder escanteios!

Devo admitir: instruções óbvias, porém vocês hão de concordar que abordei tópicos importantes. Nada mal para um marinheiro de primeira viagem.

Perdemos aquele jogo por três gols a zero (dois gols originados nas malfadadas cobranças de escanteios), mas a experiência foi proveitosa. Nossa equipe conseguiu realizar bons ataques, mas não foi capaz de suplantar o goleiro Agnew, com seus dois metros e vinte centímetros de altura (e, claro, o tal par extra de membros superiores).

Fiquei tão intrigado com aquela simulação que decidi pedir a meu irmão que programasse outras semelhantes. Ele atendeu ao meu pedido. Juntos, nos divertimos como não fazíamos desde sua infância. Max simulava atletas habilidosos; eu, um eficiente treinador. Foi muito bom ter vivenciado aqueles momentos de harmonia com Max; aquilo fez como que eu me lembrasse do quanto somos amigos, apesar das repetidas discussões.

Ao final de uma das simulações, ele decidiu me fazer uma proposta:

— Mano, você ainda é jovem, tem vinte e sete anos apenas. Treinadores costumam ser mais velhos. Você tem idade para ser atleta. Não quer jogar a Copa Galáctica de 2502 ao meu lado?

— Dentro das quatro linhas? — exaltei-me.

— Hum… Vejo que você já está se adaptando ao linguajar futebolístico. Sim, dentro das quatro linhas! Já pensou como seria divertido jogarmos no mesmo time? Venha compor o quadrado mágico comigo!

— No meio de campo, onde jogam aqueles atletas que você nomina de craques? Perdeu o juízo, Max? Outra coisa: você disse que fará a simulação da Copa daqui a quinzes dias. Como eu conseguiria adquirir um bom condicionamento físico em tão pouco tempo?

— Darei um jeito. Vou preparar uma programação na qual você será o cérebro do time, aquele cara que não precisa correr muito, mas necessita ter boa visão de jogo. Será perfeito para você.

Senti uma pontada no peito; uma emoção que misturava medo e ansiedade. Mais tarde, procurei obter informações acerca de alguns atletas “cerebrais” que Max citara. Encontrei vídeos de algumas de suas atuações.

E fiquei encantado com o que vi.

*

Preparamos juntos as simulações para a Copa Galáctica de 2502. Max fez alguns ajustes na programação do simulador de experiências, buscando tornar o jogo mais dinâmico e as emoções ainda mais intensas.

A Copa teria a participação de cinco equipes da Terra e vinte e sete esquadrões alienígenas. O local escolhido para a competição foi uma planície marciana, região que o simulador de experiências soube transformar num imenso Estádio de Futebol. Em sua face exterior, o Monumental possuía aparência insectóide, com a predominância de uma tonalidade ferrugem um bocado assustadora. A cobertura, por outro lado, trazia motivos marítimos, com representações de feras marinhas semelhantes àquelas encontradas nas luas Europa e Titã.

Desta feita, ao invés dos antiquados aeróbus, as equipes chegariam ao local do evento em modernas naves-foguetes.

Perguntei a Max sobre o efeito que a baixa gravidade de Marte poderia exercer sobre os jogadores, mas ele disse ter programado o simulador de uma forma que todas as espécies sentir-se-iam plenamente adaptadas às condições atmosféricas do planeta vermelho, como se o habitassem. Uma sábia decisão.

Eu começava a sentir orgulho de meu irmão sonhador.

*

Meu coração disparou quando o árbitro (uma espécie de sapo gigante) soprou o apito pela primeira vez, determinando o início de nossa participação na Copa Galáctica. Na ocasião, enfrentamos o selecionado africano.

Com o decorrer dos primeiros minutos, os exercícios musculares começaram a fazer com que meu corpo liberasse endorfina, transformando em prazer a tensão que me dominava durante os instantes iniciais. A partir de então, passei a vivenciar todas as emoções de um verdadeiro jogador de futebol. Procurei aliar a meu débil condicionamento físico os conhecimentos técnicos que adquiri durante minhas simulações como treinador. Aos poucos, senti-me mais à vontade dentro de campo, conseguindo ser o jogador cerebral que meu irmão planejara que eu fosse. Não me movimentava muito em campo, mas era autor de passes certeiros e belos lançamentos em profundidade.

Durante este primeiro jogo, eu converti uma penalidade em gol. Vencemos por três gols a dois. E eu confesso ter me divertido muito com aquela disputa. Apesar de todo o cansaço pós-jogo, estava me sentindo bastante animado. Convenci-me de que aquele esporte estava no meu sangue; impregnado de alguma forma em meu DNA há gerações.

O torneio prosseguiu nos dias seguintes e eu me sentia cada vez melhor adaptado à minha função de cabeça pensante do meio de campo. Como nosso cansaço não era tão intenso quanto teria sido em um jogo real, pudemos simular uma nova partida a cada dois dias. Para minha surpresa, após uma derrota na primeira fase (para criaturas conhecidas como incas venusianos, “ressuscitadas” por Max de uma antiga série de ficção científica), nós vencemos todas as partidas seguintes, chegando por fim à disputa do título.

— Podemos nos sagrar Campeões Galácticos de Futebol, mano! Não é incrível? — comemorava Max.

Eu estava considerando tudo aquilo muito interessante e a maneira como meu irmão levava a competição a sério chegava a me emocionar. Eu pude ver o brilho da expectativa em seus olhos desde a véspera da simulação da Grande Final.

Decidi que faria tudo que estivesse ao meu alcance para ajudá-lo a conquistar o título que ele tanto desejava.

*

— Dê o melhor de si hoje, mano. Meu personagem sofreu uma contusão muscular, mas ficará à disposição do treinador no banco de reservas. Conto com sua habilidade e visão de jogo para vencermos este duelo! — disse-me ele pouco antes de ingressarmos no programa para darmos início à disputa derradeira.

Tive uma espécie de surto ao ouvir aquilo:

— Altere a programação, Max! Crie uma espécie de faz-de-conta, no qual seu personagem está em perfeitas condições físicas.

— Trapacear? De jeito nenhum. E eu não trapaceio nunca!

É claro que ele estava certo. Mais uma vez, senti orgulho de ser irmão de Max. Uma pena não poder contar com ele ao meu lado na Grande Final (por coincidência, um reencontro com a equipe dos Battolls).

— Prepare-se para emoções inesquecíveis — disse ele. — O simulador de experiências vai rodar o programa daqui a vinte minutos. A bola está com você agora. Lembre-se: estarei no banco de reservas, com os dedos cruzados. Não me decepcione, Guilherme.

Max me chamou pelo meu nome, o que era algo próximo de um milagre. Sinal de que estava realmente falando sério.

Muito sério.

*

Éramos considerados favoritos pelos jornalistas simulados, pois jogamos melhor durante toda a competição. Todavia, a seleção adversária também era forte. E não apenas no aspecto físico: alguns daqueles brutamontes eram habilidosos com a bola nos pés — e principalmente seu capitão, conhecido pelo codinome Dan.

Por volta dos dez minutos de jogo, o centroavante alienígena disparou um chute que passou muito perto da trave direita de nosso goleiro Darrel. Aquilo foi o que alguns cronistas esportivos da antiguidade chamariam de tirar tinta da trave. Logo vi que precisávamos encaixar um bom ataque. Somente assim imporíamos algum respeito nos gigantes de HD 40307g.

Concentrei-me ao extremo a partir de então e mergulhei de tal forma naquela encenação que algo afetou minha percepção daquele jogo para sempre. Hodiernamente, quando me recordo das jogadas mais marcantes da Grande Final, cada quark de meu corpo reage a elas como se tudo estivesse acontecendo neste exato momento. Meu coração acelera além de cem batidas por minuto, meus poros transpiram… É incrível!

Portanto, não se espantem com as alterações nos tempos verbais que se seguirão em meus relatos, com as idas e vindas entre presente e passado na minha percepção dos acontecimentos. Creio que este comportamento é consequente às emoções que ficaram impregnadas em minha mente.

Outro importante ponto a ser mencionado: perdoem-me, mas notarão que uso com frequência o pobre linguajar futebolístico quando estou sob o efeito desta patologia psíquica.

*

Pode ser agora! Manuel tem a bola pela direita do ataque. Aproximo-me para receber o passe, mas ele prefere fazer a jogada com Francesco. Noto uma desatenção na defesa alienígena e me desloco adiante, buscando as imediações da grande área. Francesco percebe minha movimentação e alça a bola em minha direção. Consigo dominá-la no peito com classe, impulsionando-a à minha esquerda. Tenho a visão do gol à minha frente e noto que a oportunidade é muito boa.

Vou arrematar; vou fazer o gol!

Desfiro um petardo de canhota, mas a bola explode na trave direita, dirigindo-se em seguida para o lado esquerdo do nosso ataque. Um zagueiro corre em direção a ela. Está mais próximo dela do que eu, mas consigo dar um bote e dominá-la, girando com rapidez minha cintura (por sorte, os Battolls são um pouco lentos) e buscando me posicionar adequadamente para efetuar um bom cruzamento. Vejo que todos os nossos atacantes estão sob marcação dos grandalhões, então tento um chute direto ao gol, mirando o ângulo superior esquerdo da cidadela inimiga, e…

Ah! Se não fosse a existência de um segundo par de membros superiores, Agnew não teria conseguido desviar aquele chute para escanteio!

Enquanto um lance termina em arremesso lateral, uso uma fração de segundos para refletir sobre o altíssimo nível do jogo. Os Battolls começaram melhor, porém, aos poucos, conseguimos equilibrar a disputa. E eu preciso fazer mais uma confissão aqui: aquela, sem dúvidas, era a mais realística e empolgante simulação que havíamos feito.

Que partida!

Temos mais uma jogada pelo lado direito agora. É o ala Gonçalo que está apoiando o ataque! Ele faz um passe para Francesco, na altura da intermediária alienígena. A jogada prossegue com uma tabela rápida entre Francesco e Villar (o substituto de meu irmão), até que Villar encontra Dos Santos bem posicionado, sem qualquer pressão do adversário. Ele adentra a grande área e Villar o aciona com precisão.

— Vai, Dos Santos! — grito a plenos pulmões.

GOL! Golaço de Dos Santos! Eu ergo as mãos aos céus, direciono os olhos para o lateral do campo e vejo Max pulando como um louco! Que sensação incrível esta — uma incomensurável felicidade!

*

Os gigantes de HD 40307g começam a exercer intensa pressão sobre nossa defesa. Na qualidade de capitão, grito com a equipe, dizendo que não podemos permanecer acuados. A admoestação parece dar resultado, pois Francesco dispara com a bola desde o meio de campo, dribla três adversários e desfere uma bomba, que explode na trave esquerda do guarda-meta Agnew.

Aproxima-se o final da primeira etapa e eu começo a respirar um pouco mais aliviado. Até que… o que é isso? Um vacilo no lado direito de nossa defesa! Urik pode fazer um cruzamento perigoso. Ele o faz! A bola desvia em alguém de nosso time. Ricocheteada, ela quica no interior da pequena área.

Darrel, por favor! Darrel!

Ele se atira com valentia aos pés do adversário, desviando a esfera de couro para a altura da meia-lua da grande área. Nosso cabeça-de-área tenta afastar o perigo, mas falha! A bola sobra para… Dan — justo para Dan! O craque alienígena faz um arremate certeiro, vencendo Darrel e celebrando com uma desajeitada cambalhota o gol de empate.

Uma ducha de água fria, para usar uma das expressões preferidas de Max.

Uma ducha gelada, para ser mais exato.

*

Quando o primeiro tempo terminou, um vendaval de emoções invadiu meu cérebro. Durante o intervalo, vivi a expectativa de que o treinador colocasse Max em campo, mesmo ele não estando em suas melhores condições físicas. Afinal, meu irmão era um dos craques do time. Entretanto, voltamos para o segundo tempo com a mesma formação.

O jogo seguiu equilibrado e repleto de oportunidades de gol para ambas as esquadras. Começava a ficar evidente que nosso maior adversário naquele dia seria o arqueiro Agnew. Parafraseando meu irmão mais uma vez, digo que Agnew estava defendendo até pensamento! Aliás, “Agnew, o Terrível” me parece uma boa designação.

Olho para o banco de reservas e vejo a tensão no rosto de Max. Ele parece não estar nada otimista com o resultado deste jogo. Assimilo seu pessimismo. Poucos minutos depois, todavia, ouço uma exaltação vinda das arquibancadas: gritavam por Max.

O treinador o chamara para entrar em campo!

*

É a primeira vez que Max toca na bola: um lindo passe em profundidade, que coloca o lateral Rocha naquilo que chamam de cara do gol adversário. Eu me preparo para gritar “gol” e dar um abraço apertado em meu irmão, mas nosso ala esquerdo titubeia com a bola nos pés. O gigante Agnew surge à sua frente e… derruba-o!

É pênalti!

À beira do gramado, o treinador ordena que eu faça a cobrança, mas vejo nos olhos de meu irmão que ele quer esta atribuição. Aponto-o para o mestre, como a lhe pedir autorização para abdicar da tarefa. A princípio, noto o professor apreensivo, mas no instante seguinte ele faz um gesto afirmativo com a cabeça: Max está autorizado a cobrar o pênalti e — oxalá — convertê-lo no gol da vitória!

Ele respira fundo e toma a bola em seus braços. Coloca-a na marca de cal, fecha os olhos e respira profundamente. Aproximo-me e lhe desejo boa sorte. Meu irmão esboça um sorriso; parece sentir o peso da responsabilidade. Pensei em lhe pedir a bola, mas aquele era seu jogo, sua simulação. Deixei-o então a sós, diante do Terrível.

Max parece disposto a disparar um torpedo, tamanha a distância que toma da bola. Ele corre em direção a ela de forma decidida, mas hesita no meio do caminho. Quase para. Os dois passos seguintes são lentos e vacilantes…

NÃO! Um chute rasteiro muito fraco, quase no meio da cidadela inimiga. Agnew nem precisa utilizar seus membros superiores; é capaz de defender a cobrança apenas esticando sua perna esquerda.

Meu irmão abaixa a cabeça, acusando o golpe.

*

Vivenciei uma tormenta durante os minutos seguintes, sobretudo por notar que Max tentava decidir o jogo sozinho, desperdiçando boas oportunidades de realizar jogadas em equipe. Ele parecia alucinado; dava a impressão de que vencer aquela partida era uma questão de vida ou morte.

Porém, não vencemos, ao menos durante o tempo regulamentar. Os dois times haviam se desgastado muito no primeiro tempo e não foram capazes de chegar ao gol de desempate durante a segunda etapa, apesar de várias oportunidades desperdiçadas.

Fim do tempo regulamentar. Agora teríamos que enfrentar trinta minutos de prorrogação.

Conversei com Max durante o curto intervalo. Ele confessou ter ajustado o grau de dificuldade do simulador de experiências para a Grande Final. Colocara-o no nível máximo.

— Quanto mais difícil a batalha, mais saborosa a vitória — disse-me ele.

Às vezes meu irmão parece insano. Mas, fazer o quê? Eu o amo mesmo assim!

*

Pressionamos a equipe alienígena durante todo o primeiro tempo da prorrogação. Foi nosso melhor momento durante toda aquela partida. Muitas situações de gol foram perdidas.

Durante o segundo período, no entanto, o jogo perdeu velocidade. Os jogadores de ambas as equipes, além de exaustos, mostravam certo receio de se aventurar ao campo inimigo e sofrer um rápido e fulminante contra-ataque.

*

A cobrança dos decisivos pênaltis estava a poucos minutos de nós. Precisávamos de um gol com urgência. Confiávamos em Darrel, mas sabíamos que a natureza havia sido mais benevolente com Agnew o Terrível para o exercício daquele ofício. Não bastasse isso, eu começava a perceber o aumento do peso de minhas pernas — era o cansaço que me dominava.

Foi então que vi Max conduzir a bola em direção à linha de fundo, no lado direito de nosso ataque, próximo à grande área dos Battolls. Pensei: é agora ou nunca! Eu ainda estava na intermediária, ofegante. Meu preparo físico sofrível estava a me dizer que eu não aguentaria mais um pique. Mas fui teimoso: impulsionei as pernas com a força de minha mente — é ela quem me comanda!

Aproximo-me da grande área em correria desenfreada, na direção da marca de pênalti. Torço para que Max faça o cruzamento; confio em sua habilidade e inteligência.

Antes que Max lance a bola em minha direção, posiciono-me à frente do gol, buscando aproximar-me da segunda trave. Meu irmão dá um corte no zagueiro, deixando-o estirado no chão. A bola quase ultrapassa a linha de fundo, todavia Max consegue alcançá-la e efetua um cruzamento forte e rente ao chão, fazendo com que a bola passe por baixo do corpanzil de Dan. Em seguida, grita com rouquidão:

— Guilherme, faça o gol!

“Guilherme”, ele disse. Max pronunciou meu nome mais uma vez!

Eu me atiro em direção à bola, como um adolescente no vigor dos quinze anos, pois sinto que é nossa última chance na partida. Por um momento, vivencio a impressão de ter apagado. Em seguida, ouço um grito vindo do banco de reservas. Parece-me ser a voz do treinador, que é seguida por um barulho ensurdecedor, oriundo de todas as partes do Estádio.

Dominado pela emoção, mal senti o choque da bola contra minhas canelas. Quando abro os olhos, vejo-me deitado, tendo a meu lado um tufo de grama que minhas chuteiras arrancaram. Um mero instante depois, todo o peso de Max está sobre mim, socando meu corpo contra o chão:

Gol, mano! Goool!

Ele chora; chora e ri com a alegria da criança que deixara de ser (não por completo) há cerca de oito anos. Como irmão mais velho e protetor, delicio-me com uma satisfação incomensurável ao vê-lo tão eufórico.

— O título será nosso! — é o que respondo no exato instante em que percebo que algumas lágrimas rolam também em meu rosto.

Os demais jogadores chegam quase que instantaneamente. A alegria é enorme. Contagia. Nas arquibancadas, os sudamericanos fazem uma festa muito bonita. É difícil acreditar que se trata de uma mera simulação. Tudo parece ser muito real, uma realidade magnífica, bastante diferente do que tem nos proporcionado o (agora vejo) entediante século XXVI.

*

Minha mente retorna ao instante atual.

Sim, eu estava emocionado. E fiquei ainda mais tomado pela emoção quando o árbitro apitou o final do jogo. Que comemoração magnífica nós fizemos!

Mas… Como compreender aquela minha excitação? Tal comportamento não era de meu feitio. Max disse-me hoje, com sua sabedoria juvenil, que as emoções dispensam explicações. E que podem ser muito intensas e agradáveis.

— É o coração quem me comanda! — exclamou ele, com a mão no peito.

Se deixasse a cargo de minha mente a interpretação do que vivenciamos nas simulações, ela definiria aquilo como algum tipo de patologia psíquica, motivada provavelmente pelo delírio coletivo do jogo. Todavia, sinto (sim, sinto!) que aquelas experiências foram deveras enriquecedoras para meu intelecto. Participei de um certame imaginário que agregou significado à minha existência.

Está bem, eu confesso: noto que já não é o cérebro quem me dirige. Ao menos, não ele sozinho. Meu irmão mostrou-me que sou mais que um ser pensante. Sou inteligência, mas também sou sentimento. Compreendo agora que é racional que eu tenha o desejo de extravasar minhas emoções. Quero continuar a fazer isto.

Experimento desde então uma sensação muito agradável. É algo intenso, que eu desconhecia por completo. Posso ver no reprodutor de imagens e sensações uma mudança até mesmo em minha aparência: estou a exibir, neste momento, um sorriso exultante. Há certo brilho em meus olhos.

Terei perdido o juízo, a sensatez, o senso do ridículo? Não, não creio. Segundo Max, esta é a tal felicidade.

Então é isto: eu estou feliz. E, pensando bem, não é para menos. Afinal, fiz o gol do título da Sudamérica!

Eu ergui a Taça de Campeões da Copa Galáctica de 2502!



Ricardo Guilherme dos Santos
é um canceriano fã de música, ficção científica e fantasia. Foi editor do fanzine Somnium, do CLFC, entre as edições 107 a 111. Nasceu na Terra, mas dizem que vive no mundo da Lua.