Onironauta

7

A selva não reagiu ao movimento silencioso do tigre. Caçador experiente, não provocava o menor ruído ao passar pelos arbustos. Um besouro azul metálico parecia ser o único a percebê-lo, voando para longe da flor rosa e branca onde antes repousava.

A apenas alguns metros do caçador estava Vema, pernas cruzadas em posição de lótus, suas mãos sobre as coxas. Ela tinha os olhos fechados, as costas para a fera. Para todos os efeitos, estava em outro mundo.

O tigre chegou perto o suficiente para saltar sobre ela, capturá-la com suas garras e presas. Não haveria escapatória. Soltou um poderoso rugido.

– Isso não está certo.

Vema descruzou as pernas e se levantou sem usar as mãos. O grande felino abaixou a cabeça, acuado como um gato doméstico com um décimo do seu tamanho. A onironauta agachou-se ao seu lado, examinando algo além da visão. Com uma mão treinada puxou o som, abrindo-o como um pergaminho sobre a cabeça do animal. Cordas de cores inimagináveis como as de um instrumento jamais criado teciam o rugido da forma errada.

Ela puxou aqui, amarrou ali. Fechou-o. Sinalizou com a cabeça. O tigre tentou novamente, falhou novamente.

Não era perfeito. Ela não sabia bem o que era, mas havia alguma coisa destoando.

Vema fez carinho na cabeça do tigre. Não era culpa dele, claro. A culpa era dela.

Seu cliente pagou por uma experiência bem específica, uma que ele dizia ter perdido com a idade. A experiência puxaria a memória. Talvez. Não precisava ser perfeita para isso, mas Vema jamais entregaria menos do que a perfeição.

Dando as costas à selva, Vema fez um corte no sonho e saiu. Do lado de fora da bolha enevoada uma rede de teias prateadas conectava os sonhadores de toda a cidade. Em algum lugar do Grande Sonhar ela encontraria a peça que faltava.

Ela nunca tinha visto um tigre; nem mesmo uma selva como aquela. Na verdade, jamais vira tantas árvores juntas em toda sua vida. Não na Cerca Viva, além das muralhas da cidade. Como a maioria dos habitantes de Último Refúgio, ela não se atrevia a ir até lá sem todo um batalhão de soldados armados. Enquanto sair das muralhas da cidade era uma experiência letal, entrar nos sonhos dos vivos era apenas parte do seu trabalho.

O problema era encontrar o sonho certo.

Ela imediatamente descartou aqueles jovens demais, como ela. Nenhum deles teria as memórias reais de ela precisava. Talvez tivessem fabricações baseadas em histórias e desenhos. Ela marcou nódulos de sonhos de imigrantes, aqueles que vieram das terras de seus ancestrais e das ilhas do Oceano de Mil Deuses, onde feras e florestas selvagens eram uma realidade. Então empurrou para longe aqueles cercados de fumaça negra. Pesadelos predavam esses nódulos, tomando vantagem de mentes e corpos cansados dos operários e estivadores que já tinham problemas o suficiente em suas horas despertos.

Vema se sentia mal por fazê-lo, mas ela não tinha como lidar com um ninho como aquele. Não hoje, enquanto um cliente aguardava um sonho artesanal. Ela tinha contas a pagar, gostasse ou não. A última coisa que precisava àquela altura era tropeçar no território de um rakshasa.

Essa decisão por si só tornou poucas as suas opções. Alguns mercadores chegados recentemente de além-mar, alguns membros da guarda citadina, alistados pela Companhia Mercantil para proteger seus interesses na cidade. Sim, havia ali uma mente forte com a experiência que ela precisava.

Ela estendeu a mão e beliscou o sonhador. A bolha prateada era grudenta e consistente de forma incomum. Ela afastou os dedos, usando sua outra mão para ajudar a abrir o sonho diante dela. Foi preciso mais esforço do que era costumeiro para penetrar aquele sonho.

Vema entrou para uma batalha em andamento. Homens e mulheres de vários tons de peles escuras lutavam contra uma horda muito maior liderada por homens de vestes negras esvoaçantes montados em animais brancos listrados. As listras lembravam Vema do tigre, mas era aí que as semelhanças acabavam.

‘Cavalo’, ela lembrou-se. Ou algo assim. Já tinha visto alguns nos sonhos de outros, mas era diferente dessa vez. Talvez fosse só a interpretação do sonhador para a mesma coisa. Realidade e imaginação misturavam-se de forma curiosa no Mundo dos Sonhos.

Procurou à sua volta pela fonte. Encontrou-o no meio do confronto, escudo diante de si, empurrando soldados na direção do inimigo. Gritava com ódio, os olhos arregalados de pânico. Ele ergueu sua lança, pronto a arremessá-la. Havia um poder bruto emanando dele, algo de certa forma atraente.

Vema balançou a cabeça. Esse não era o sonho certo.

Estendeu uma mão novamente, beliscou sua mente e abriu. Ele resistiu. Virou-se para encará-la diretamente.

Um calafrio subiu a espinha de Vema. Sonhadores não deveria perceber onironautas.

O sonho nem sequer estremeceu, as pessoas não tornaram-se névoa. O sonhador não despertou.

Vema temeu ficar presa naquela memória, o corpo vegetando até definhar no quarto da pensão onde vivia.

Ela abriu a mente do sonhador e puxou qualquer coisa que o distraísse.

A terra tremeu. Soldados foram arremessados para todos os lados e uma criatura enorme rompeu o chão, atraída por suas manipulações. Era facilmente do tamanho de uma casa, a pele cinzenta grossa, uma cauda enorme em sua face flanqueada por dois dentes compridos como lanças. Arqueiros se empoleiravam numa cesta em suas costas.

Por toda parte chumaços grossos de grama e raízes brotavam rápido do solo árido. As montanhas distantes desapareceram enquanto uma selva parecida com a que ela tecia surgiu a sua volta. Soldados mudaram. Não eram mais dois exércitos, mas sim grupos isolados lutando por suas vidas contra homens usando turbantes e túnicas coloridas. A atenção do sonhador retornou ao monstro cinzento. Mais deles se aproximavam, pisoteando e empalando seus companheiros.

O sonhador arremessou sua lança, atingindo um dos monstros entre as presas. A criatura soltou um urro, mas não era o rugido que ela precisava. O sonhador fugiu às pressas como a maioria de seus companheiros.

Vema foi atrás dele sem precisar correr. Ela ignorava o terreno irregular e as árvores, simplesmente ressurgindo onde precisava estar quando precisava estar. Ela estava impressionada com a capacidade do sonhador de evitar raízes e galhos. Atrás deles muitos caíam. Aqueles que os gigantes cinzas não matavam eram executados pelos homens de roupas coloridas. Ou era muito habilidoso no mundo real ou era muito cheio de si.

O tempo passa de forma estranha em sonhos. A pouca luz que conseguia evadir as copas grossas das árvores estava morrendo como os soldados do sonhador.

Ele permanecia em silêncio, respirando pesado, suando, oculto no alto de uma árvore. Tinha na mão um amuleto até então escondido sob a armadura de couro. Muito além, o som de homens e feras também os abandonava.

Vema subiu atrás dele, sentando-se em um galho estreito e fino. Seus olhos estavam no sonhador, curiosa. Quanto daquilo era memória e quanto era imaginação?

Exausto, o homem fechou os olhos e dormiu. O céu escureceu imediatamente. Em sua memória, passava-se apenas um momento. Provavelmente foram horas.

Um som baixo, cadenciado, veio de trás de Vema. Ela sentiu o movimento logo atrás dela, leve apesar do tamanho, belo apesar de letal.

O tigre caminhava lentamente por um galho grosso o suficiente para suportar seu peso. Ele parou e rugiu.

Isso!

Vema agarrou aquilo, causando uma pausa anômala no movimento e som, e copiou ambos para sua coleção particular, para caso precisasse em outra ocasião. Levantou-se, satisfeita, permitindo que o sonho continuasse.

Vema ergueu a mão para partir uma saída no sonho. Parou ao perceber que estava sendo observada.

O sonhador ainda estava em seu canto da árvore, mas agora tinha uma adaga em sua mão. Sua atenção não estava no tigre, mas sim nela. Ele franziu a testa, confuso.

Vema olhou novamente para o tigre. Ela gostaria de saber como aquilo terminou. Gostaria de saber mais sobre aquele homem.

Mas não agora. Ela tinha um trabalho para finalizar.

Vema cortou o sonho e partiu no momento em que o tigre saltou. Atrás dela a bolha prateada estourou. O sonhador tinha despertado.

Tudo estava exatamente como deixou em seu projeto. O besouro retornou à sua flor. O tigre a seguia com os olhos, empolgado por poder fazer sua parte. Agora que ela tinha visto outro ele parecia bem maior do que deveria. Talvez seu cliente o lembrasse assim, motivado pelo medo. Ou o outro, o sonhador, o imaginava menor, prova de seu destemor diante do perigo.

Agachada ao lado da fera de sonhos, Vema sacou do tigre sua versão do rugido e o examinou. Trabalhando de memória, puxou uma corda enquanto amarrava outra. Ela cortou uma terceira, eliminando o trecho final, amarrando-a a uma quarta. Com a mão livre ela criou uma nova corda de um grave vermelho escuro e com ela construiu um padrão crescente, que adicionou ao fundo.

– Tente de novo.

O tigre fez como ordenado.

Isso. Aquele som no fundo da garganta, uma cadência discreta, como um grande tambor distante. Era isso que faltava.

Vema se levantou, sorridente, e fez carinho na cabeça do tigre. Voltou para onde estava sentada antes. Ainda havia muito trabalho pela frente.


J. M. Beraldo é um nômade carioca que ganha a vida como game designer. Tem contos nas revistas Scarium e Trasgo, e nas antologias Brinquedos Mortais (2012), Sagas 4 (2013), O Outro lado da Cidade (2015), Piratas! (2015), Samurai x Ninja (2015) e Dinossauros (2016). Publicou os livros Véu da Verdade (2005), Taikodom: Despertar (2008), Império de Diamante (2015), Último Refúgio (2016) e Laicus – Pecados e Mentiras no Rio de Janeiro Colonial (2016). Tem ideias demais e tempo de menos, mas jura que um dia coloca tudo para fora.