Se o caro leitor acredita que esta crítica tem a intenção de despertar emoções arrebatadorAs de fazer o coração explodir de felicidade, se busca impressões que corroborem com sua empolgante empolgação não encontrará nada disto aqui.
ALERTO QUE Se ainda nÃO assistiu a Desventuras em Série e teme receber spoilers, seja dA série seja dos livros, afirmo de maneira positivamente positiva que poderá ler o texto sem medo.
Para finalizar, peço imensamente que as pessoas que leram os livros não coloquem spoilers nos comentários. Spoiler aqui é umA palavra que significa “quando você revela uma cena importante que poderia estragar a experiência a quem não assistiu”. Respeitem os que como eu, apenas acompanharão a série.
Comecei a assistir Desventuras em Série após o lançamento, mas diferente de alguns não estava no hype, apenas não tinha nada mais importante para assistir. Não li os livros, e para ser bem franco, se já posso retirar um ponto do programa, não concluí a 1ª temporada interessado em lê-los. Muito pelo contrário, ao longo dos seus oito episódios fiquei com uma sensação de gratidão por não precisar mais tocar na obra original. O que neste caso é um ponto positivo.
Também não assisti a adaptação com Jim Carrey, logo este texto não será um comparativo entre as mídias, porém se você chegou até aqui e ainda não abandonou a leitura adianto que – apesar do tom pessimista – a nova aposta da Netflix me deixou impressionado por outras questões que, de certo modo, tangem a nossa sociedade.
O canal Pipoca e Nanquim fez uma excelente apresentação do universo dos livros (escritos por Lemony Snicket, pseudônimo de Daniel Handler, e ilustrada por Brett Helquist; no Brasil a obra é lançada pela Companhia das Letras) e revelou detalhes da produção da adaptação de 2004 que influenciaram na atual aposta da Netflix. Deixo links para vocês apreciarem o conteúdo.
A história dos desafortunados órfãos Baudelaire – que viviam felizes com seus pais até perdê-los num misterioso incêndio que não apenas vitimou ambos como destruiu sua casa e, portanto, tudo que ela possuía deixando Klaus (o leitor), Violet (a engenheira) e Sunny (um bebezinho de dentes afiados), sem ninguém que possa tomar conta deles, obrigando-os a ficar sob a tutela do terrível conde Olaf até que a irmã mais velha atinja a maior idade e possa ser dona da fortuna deixada como herança por seus pais – poderia ser um conto de fadas infanto-juvenil maniqueísta onde, apesar de todas as dificuldades, no final o bem triunfa e o mal é punido. Sim, poderia, mas se assim o fosse, esta não seria a história dos Baudelaire.
A visão maniqueísta do mundo de que no fim quem perseverar vencerá é uma analogia com o mantra que permeia livros e livros do meio empresarial stand up. Bordões como: “Acredite nos seus sonhos”, “Você controla o seu destino”, “Faça você mesmo” preenchem páginas e páginas de uma literatura vazia que leva o leitor a crer realmente que “só basta querer para acontecer”. É nesse momento, quando estamos esperançosos que o destino dos irmãos irá mudar para melhor que aparece o narrador (Lemony Snicket, interpretado por Patrick Warburton) e nos relembra pela enésima vez que se procuramos uma história com finais felizes deveríamos procurar outra forma de entretenimento.
E esse é o ponto alto de Desventuras, nos dar esse gosto amargo da frustração. Frustração a qual estamos muito pouco habituados. Se vivemos em uma sociedade onde ser feliz é uma obrigação, publicando fotos de nós mesmos seguidas de frases motivacionais como “amo meu trabalho”, “não permita que a inveja destrua seus sonhos”, “confie em Deus pois só Ele pode lhe tirar do caminho” e outras coisas do tipo; acompanhar uma jornada de “desventuras” talvez seja um tapa para despertarmos deste sonho que querem nos vender onde somos “heróis de nossa própria jornada”. E o elemento narrativo usado para isto é personificado na figura do Lemon Snicket.
Os adultos são os maiores vilões em Desventuras em Série. Focados apenas em seus “eus” não conseguem ver o óbvio, mesmo que seja o conde Olaf disfarçado (interpretado pelo Neil Patrick Harris que diferente do Jim Carrey, pelo que vi nas críticas ao filme não rouba a cena, mas cumpre muito bem seu papel na trama). Os adultos são egoístas, individualistas e sempre colocam seus próprios interesses na frente do futuro daquelas crianças. Desde a cena onde a esposa do banqueiro mostra o jornal com a foto da casa incendiada dos Baudelaire diante dos irmãos, onde ela afirma que eles deveriam sentir-se orgulhosos, pois estavam na primeiro página de um jornal, já que ela própria nunca estaria; até a insistência do conde em roubar a fortuna dos órfãos reitera que todos querem alcançar a felicidade plena, mesmo que para isso precisem acabar com o futuro daquelas crianças.
E esta é uma conclusão aterradora. Nenhum adulto da série consegue pensar coletivamente. Mesmo aqueles que veem que os irmãos precisam de seu auxílio não conseguem largar sua individualidade em prol do outro. Tio Monty, um dos poucos que trata os irmãos com carinho e atenção, é egoísta não reconhecendo o conde (novamente disfarçado) achando que tratava-se de um espião da sociedade de herpetologia. Seus sobrinhos o alertavam, gritavam que o perigo existia, mas ele estava focado demais em si para poder enxergar.
E o que fazem os irmãos? Eles precisam do “nós” para sobreviver. Separados já teriam perecido, mas juntos eles conseguem chegar na próxima etapa, não um final feliz, afinal de contas finais felizes só ocorrem em contos de fadas, certo? Pouco importa se o conde Olaf passou mais um episódio sem alcançar seu objetivo, os Baudelaire não venceram apenas ganharam mais um dia.
Quem nunca foi fruto de uma injustiça? Quem nunca levou a culpa por uma travessura de um irmão ou foi caluniado por um colega de trabalho? Não controlamos tudo a nossa volta. Às vezes você se programa para uma viagem e alguém próximo adoece e é isso. Nada de reembolso, nada de grande prêmio no final. Ninguém vai aplaudir por você ter cumprido sua função e ficado ao lado daquela pessoa que precisa. Não somos senhores de nossa jornada. Existem fatos terríveis que podem acontecer e quem estão além de nosso controle. O narrador reforça essa mensagem constantemente. Por quê? Porque a narrativa de que no final tudo dará certo retorna inconscientemente.
É como se estivéssemos nos dizendo o tempo todo: “ele está dizendo isso, mas no fim eles serão felizes”. Não em Desventuras, a série nos relembra que a vida não é linear, nem justa. Hoje pode ser um dia nublado, amanhã pode ter um temporal e depois de amanhã fará sol? Quem sabe. Contudo precisamos seguir em frente, por que é a vida. Não há troféus, não há medalhas, só o dia seguinte. No entanto, as narrativas atuais nos fazem crer que a felicidade está logo ali e basta queremos para alcançá-la. Não é à toa que passamos tanto tempo em rede social provando que somos felizes. Comer um lanche sem tirar foto? Sair sem publicar no instagram para que aquele momento ganhe corporeidade e que através das curtidas nossa alegria seja concretizada?
Por isso, Desventuras em Série é a antítese dessa sociedade do happy end. Contar uma série de desventuras com crianças vai contra as demais narrativas contemporâneas onde no final a mocinha sempre fica com o mocinho.
Talvez a nova aposta da Netflix possa não ser uma série extraordinária. Pode não ter despertado em mim a chama para correr a livraria comprar e ler os livros, mas possui um bom elenco e uma narrativa que foge dos padrões do “vá em busca de seus sonhos”. Seus personagens são sobreviventes que não sabem como será o dia de amanhã, que não possuem uma jornada clara com um final predeterminado. Os irmãos nos levam por um passeio através de um mundo de adultos egoístas, estes sim, caminhando por uma estrada de tijolos amarelos que só eles conseguem ver, em busca do pote de ouro, ouro de tolo.
Nota:
Esperarei ansioso pela segunda temporada. Gostaria muito que ao término da história dos irmãos Baudelaire não houvesse realmente um final feliz e de que nossas expectativas continuassem frustradas sem saber como será seu fim.