Tive o prazer de concluir neste mês a leitura de A Terra Inteira e o Céu Infinito da escritora Ruth Ozeki. Não pretendo me demorar nos detalhes técnicos da obra, mas indico a leitura principalmente pela tato da autora, que faz o leitor imergir em sua obra e, indiretamente, nos dita o tempo e o ritmo da leitura de forma excepcional.
“Um ser tempo é alguém que existe no tempo, e isso quer dizer você, e eu, e todos nós que estamos aqui, ou já estivemos, ou que um dia estarão.”
A história gira em torno das protagonistas Ruth e Nao – separadas uma da outra por mais de trinta anos e a distância entre uma ilha canadense e o Japão. Certo dia, Ruth recolhe alguns destroços na praia e, dentro de uma lancheira da Hello Kitty, encontra o diário de Nao – uma jovem garota japonesa, criada por quinze anos em Sunnyvalle nos EUA, até que a quebra da bolha da internet forçou seus pais a retornarem, em uma situação miserável, para o Japão.
Permeada pelo que entendemos como “realismo fantástico” e com forte inclinação para a ideia quântica de universos paralelos, a obra gira principalmente em torno da impermanência dos estados humanos. Ruth é uma escritora beirando a meia-idade, com um sério bloqueio criativo e temerosa de estar desenvolvendo a mesma doença de sua mãe – o Alzheimer. Embora ame o movimento e o burburinho das grandes cidades – de onde extraía material para seus livros – Ruth se viu obrigada a rumar para uma ilha remota no Canadá por conta de um problema de saúde do marido, Oliver. Por sua vez, Nao se vê como uma garota americana de classe média-alta e sofre ao tentar se adaptar à sua nova rotina. Ela é vítima de bullying no colégio, precisa enfrentar em silêncio as sucessivas tentativas de suicídio do pai e a quase indiferença da mãe. Equilibrando-se precariamente nessa balança, Nao vê como alternativa escrever em seu diário a história de sua bisavó – a velha Jiko. E é ela a cola que une Ruth e Nao nessa narrativa. Feminista, escritora, ativista, bissexual e, após a morte do filho, monja zen-budista, a velha Jiko é um sopro de inspiração para as protagonistas, ensinando-as a se perceber como personagens ativas no mundo e capazes de alterar a própria realidade.
Assim como é comum em muitas obras de Gaiman, a exemplo de O Oceano no Fim do Caminho sobre o qual já falei por aqui, a tríade Nao-Ruth-Jiko corrobora um antigo e poderoso arquétipo: a virgem, a mãe e a anciã, fases comuns à vida e ao desenvolvimento das mulheres. No caso de Ruth, embora não tenha filhos, podemos entender sua obra literária como “filhos espirituais”, frutos de sua fertilidade mental.
“Eu sempre pensei na escrita como o oposto do suicídio – ela disse. – Escrever tinha a ver com imortalidade. Com derrotar a morte, ou pelo menos conseguir evitá-la.
– Como a Scheherazade?
– Isso – ela confirmou. – Contando histórias para adiar a própria execução…”.
Recomendo essa leitura. Conhecer o tempo e o espaço sob a perspectiva dessas três mulheres foi tão inspirador que me impulsionou tanto a me aprofundar em meus estudos sobre física quântica (sou uma entusiasta do assunto) como a conhecer mais intimamente a doutrina budista. Foi um sopro revigorante e uma lembrança/advertência de que tudo muda, a todo momento.