Alexandre Frota, Educação e o Duplipensar

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Na quarta-feira (25/05/2016), o ator Alexandre Frota, integrantes dos Revoltados On-line (representado pelo seu líder Marcelo Reis) e a procuradora Beatriz Kicis se reuniram com o atual ministro da Educação, Mendonça Filho (DEM-PE) com propostas para por um fim as ideologias política e de gênero nas escolas.

A manchete viralizou em redes sociais (eu cheguei a compartilhar) e foi alvo de vários comentários que culpabilizavam o ator e já o consideravam como o próximo Ministro da Educação. (Falaremos sobre os interesses do ator Alexandre Frota no final deste post, no momento desejo desconstruir algumas afirmações sobre o fato.)

Não há nada de errado em qualquer pessoa propor “melhorias” para a educação. Se o Ministro decidiu recebê-los também não consigo enxergar problema nisto. Em nenhum momento Mendonça deu declarações que compactuassem com as propostas apresentadas e muito menos disse que iria implementá-las. É importante compreender esta diferença para que possamos nos aprofundar em outras instâncias que julgo pertinentes.

Aviso: não estou defendendo o Ministro Mendonça Filho como um excelente Ministro da Educação. Como professor tenho diversas críticas à sua filiação partidária e seus ideais. Um exemplos disto, assumo abertamente, é o fato de ele ter defendido o Impeachment. Isso explicitado, voltemos ao (con)texto.

Como dito acima, o Ministro receber o ator não é a problemática. Então, qual seria? A mesma disposição mostrada por Mendonça para ouvir as propostas de Frota parece desaparecer quando estudantes e educadores solicitam audiência com o mesmo. Faz-se regra atualmente em qualquer gestão não negociar com qualquer classe oucapa-1984 movimento que reivindique direitos (inclusive docentes). Tomemos como exemplos os alunos que ocupam escolas para reivindicar a instauração de uma CPI que investigue o desvio de dinheiro da merenda das escolas públicas de São Paulo. Onde está o tempo para sentar com os estudantes e ouvi-los? Este exemplo é aplicado a qualquer greve e/ou protesto. As agendas dos políticos parecem ocupadíssimas. Em contrapartida, diante da imprensa, quando pressionados a justificar o não diálogo com determinados movimentos/classes, a resposta vem fácil: “Mas houve diálogo”.

Houve?!

Faço uma pausa para conceituar o duplipensar. George Orwell, autor de 1984, criou o conceito dentro do seu romance para explicar a convivência de duas ideias contraditórias. Da leitura de 1984, este conceito sempre me escapou. Como assim aceitar duas ideias que são opostas em si mesmas? Como o partido (do livro) utiliza disto para legitimar as atrocidades cometidas? Ao presenciar, porém, em diversos momentos, este embate ideológico, no qual de um lado o povo reivindica os seus direitos e do outro o político atesta que já o faz/fez, vislumbrei a concretização do discurso de Orwell.

Vi escolas que não possuíam quadros, banheiros, cadeiras (carteiras), às vezes nem mesmo paredes divisórias entre as classes… para ouvir dos representantes públicos das secretarias de educação (quando não dos próprios governantes) que estava tudo bem. Que as escolas não apresentavam problemas. Mas e os pais dos alunos? Por que não se revoltam? Por que não protestam? Porque já internalizaram o conceito do duplipensar. Acham que o professor é vagabundo e está prejudicando o seu filho ao fazer greve, contudo se a escola não possui merenda, quadro, carteiras… não há problema, afinal de contas os responsáveis afirmaram que “está tudo bem”.

duplipensar-1984

As propostas apresentadas por Alexandre Frota e seus companheiros também operam no duplipensar. O site da Exame publicou alguns trechos do que eles propuseram ao Ministro. Frota diz:

“Nossa preocupação era justamente colocar ao ministro a importância desse projeto. Mostrar que a voz das ruas apoiam esses ministério para que a gente não tenha uma escola partidária, com o comunismo implantado nas salas de aulas, para que nossas crianças possam ser livres com uma pátria educadora de verdade e não o que vinha sendo pregado até agora, uma coisa de doutrina. Saí de lá com a certeza que ele vai fazer um bom trabalho.” [1]

A procuradora, Beatriz Kicis, completa:

“Não é uma lei da mordaça, é evitar a doutrinação. Hoje só se defende Lula e Dilma e chamam impeachment de golpe. Tem que proibir de colocar a sua verdade como sendo verdade. Queremos que seja feita uma limpeza na nossa educação porque degringolou nos últimos 13 anos. Nossa luta é pela educação.”

Generalizar todo o discurso político na escola como um discurso esquerdista é no mínimo um contra-senso. Conheço diversos professores de direita, que foram a favor do Impeachment e não consideram golpe a saída forçada da presidenta Dilma. Como já disse em outros textos, a análise dos discurso se pauta, em suas análises, no discurso do não-dizer. “… todo dizer é uma relação fundamental como não-dizer”. [3] E neste caso, o que deixa de ser dito é que se o discurso for de direita não há problema. Da mesma forma que, Beatriz, ao falar das ideologias de gênero, diz que já ficou comprovado (baseado em que estudos, ela não expõe) que falar de gênero “faz mal”, já que, segundo a própria:

“Essa coisa de dizer para criança que ela não tem sexo definido, que pode usar qualquer banheiro, faz um mal terrível.”

Novamente, no âmbito do não-dito, fica implícito que se for para falar de gênero do ponto de vista hétero-normativo não “faz mal”.

O que mais me chama a atenção na sua fala é de que isto não é uma “mordaça”. Usar a palavra liberdade para podar a liberdade faz parte do duplipensar. Citando Orwell, em passagem de 1984:

“… usar a lógica contra a lógica, repudiar a moralidade em nome da moralidade”. [2]

Retomando a fala da procuradora:

“Tem que proibir de colocar a sua verdade como sendo verdade.”

O problema não é a ideologia partidária, é a ideologia partidária de esquerda. O problema não é a ideologia de gênero, o problema é falar de gênero a partir de uma visão não hétero-normativa. Ou seja, Beatriz Kicis usa de um discurso ideológico para combater a ideologia. Logo, ao pedir a neutralidade do uso da ideologia na escola, ela utiliza uma ideologia própria. E ela está errada? Não, já que “a ideologia é um fenômeno insuperável da existência social, na medida em que a realidade social sempre possui uma constituição simbólica e comporta uma interpretação, em imagens e representações, do próprio vínculo social”. [4] Em suma, é impossível desvincular a ideologia de qualquer discurso.

manipulação

O desejo de uma linguagem neutra, pura, despida de ideologias é uma das maiores falácias da nossa contemporaneidade. Falácia esta sustentada pela imprensa que usa a alcunha de possuir um jornalismo “imparcial”. A imparcialidade não existe. A partir do momento em que você profere o seu discurso este discurso está imbuído com toda a carga ideológica que você traz. A simples seleção de palavras carrega a posição de quem diz algo.

Uma ideologia é operatória e não-temática. Isto é, ela opera atrás de nós, mais do que a possuímos como um tema diante dos olhos. É a partir dela que pensamos, mais do que podemos pensar sobre ela. É devido a esse estatuto não-reflexivo e não-transparente da ideologia que se a noção de dissimulação, de distorção. [5]

Vejamos como exemplo a citação da fala de Alexandre Frota, apresentada acima. Frota optou pelo uso do discurso direto, que corresponde a citar o que foi dito de maneira íntegra. Percebe-se que (caso não tenha sido um erro de digitação), em dado momento há um erro de concordância no trecho “esses ministério”. É possível inferir que o repórter que montou o post escolheu o discurso direto como uma forma de evidenciar o erro na fala de Frota, fazendo com que o leitor tenha uma imagem negativa do ator. Mesmo sabendo que a oralidade é possuidora de certa liberdade, ainda são vistos como negativos os erros de concordância no nível pronome e substantivo, como no caso de Frota. (O correto deveria ser “esses ministérioS”)

O repórter poderia ter optado pelo discurso indireto que no caso mascararia o erro de concordância, exemplo:

“Alexandre Frota disse que a sua preocupação era justamente colocar ao ministro a importância desse projeto. Mostrar que a voz das ruas apoiam esses ministérios…”.

Ou seja, o discurso direto foi utilizado para depreciar a imagem do ator perante o público leitor. O que expõe o redator do post como alguém de discorda do discuso de Frota. O que reforça, através desta simples análise, que mesmo o redator do post assumiu uma postura ideológica ainda que não tenha sido a sua intenção, pois como expresso na citação acima a ideologia “opera atrás de nós”, tendo em vista que “é a partir dela que pensamos, mais do que podemos pensar sobre ela”.

Levando em consideração que uma proposta como esta seja aprovada, como fiscalizar? Ao falar do Temer, quem evocar em seu discurso “o atual presidente do Brasil, Michel Temer” ou “o atual presidente interino do Brasil, Michel Temer” pode estar, inconscientemente, em sua fala, deixando uma marca de aceitação ou desaprovação do Temer enquanto presidente. A ausência do adjetivo interino, que significa de teor provisório, temporário, explicita que o enunciador aceita Michel Temer como presidente do Brasil; enquanto a presença do adjetivo interino evidencia a insatisfação, não legitimidade de Temer como presidente do país. Exponho a complexidade da linguagem como uma forma de problematizar o que defendem Frota e seus apoiadores. Repito: essa linguagem polida, imparcial, apartidária e não ideológica, não existe.

Querer uma escola sem ideologia é querer uma escola sem linguagem. Uma escola que opera no mutismo, no silêncio. Prega-se o fim de qualquer interação humana. Prega-se o fim da educação de qualquer tipo. Contudo, antes que alguém ouse usar disto como deboche para brandar algo do tipo: “É isso mesmo! Queremos uma escola de silêncio”, como uma desculpa para justificar que o silêncio docente seja uma proposta viável de não ideologia, afirmo que também há um equívoco aí. Uma das pensadoras mais proeminentes da análise do discurso no país, Eni Puccinelli Orlandi afirma:

O silêncio é assim a “respiração” (o fôlego) da significação; um lugar de recuo necessário para que se possa significar, para que o sentido faça sentido. Reduto do possível, do múltiplo, o silêncio abre espaço para o que não é “um”, para o que permite o movimento do sujeito.

O real da linguagem – o discreto, o um – encontra sua contraparte no silêncio. [6]

O silêncio também é linguagem, logo também é ideológico. Afinal de contas, dependendo do contexto, calar pode ser sinal de protesto ou de concordância. A famosa foto de todos saudando Hilter menos um homem que cruza os braços é um sinal de silêncio como uso de protesto; um exemplo de silêncio usado como forma de concordar é o próprio dito popular que diz: “quem cala, consente”.

O-Homem-que-se-recusou-a-fazer-saudacao-nazista

Como último ponto, retomo a questão que deixei pendente no início do texto, sobre a posição política de Frota. É evidente, pelo menos para mim, que o ator vem figurando em diversas manifestações políticas com o intuito de se promover. Vejo-o concorrendo, muito em breve, a algum cargo político. Isto não é novidade no Brasil nem em outros países. O que, invariavelmente, elucida também a predisposição de Mendonça Filho, Ministro da Educação, em abrir espaço na sua agenda para recebê-lo, contudo, e é sempre bom relembrar, que não realiza o mesmo esforço em prol das classes estudantil e docente, por exemplo. Duplipensar.


  1. http://exame.abril.com.br/brasil/noticias/frota-vai-ao-mec-e-pede-fim-do-comunismo-nas-escolas
  2. http://www.arthur.bio.br/2012/08/30/politica/brasil/duplipensar-virou-politica-oficial#.V0Zam_krLIU
  3. ORLANDI, Eni P. As Forma do Silência: nos movimentos do sentido. Página 12.
  4. Brandão, N. H. Helena. Introdução à análise do discurso. Página 29.
  5. Idem 4. Página 28.
  6. Idem 3. Página 13.