Toda obra de arte é, de forma intencional ou não, um retrato de sua época. Seja artisticamente, revelando uma estética comum daquele tempo; culturalmente, ao retratar costumes típicos; socialmente, ao analisar as relações nas camadas sociais da época; ou politicamente, mostrando a realidade governamental. O grande impacto é quando uma obra retrata várias épocas diferentes, seja no futuro ou no passado, e se tratando de George Orwell, com certeza no nosso presente.
Considerado um dos romancistas mais importantes do século XX, George Orwell não ganhou esse título pela sua técnica, por sua prosa refinada, personagens multifacetados ou pelas histórias surpreendentes, e sim pelos conceitos que criou. Ao denunciar regimes totalitários, doutrinas limitadoras e o sistema opressor da sociedade, Orwell projetou na ficção – em alguns casos, quase científica – ideias fantásticas, que sintetizam o poder de manipulação do estado e da mídia sobre a população.
E esses conceitos, não só se aplicam à realidade que o autor propôs, mas também podem ser facilmente utilizados no mundo em que vivemos atualmente. Em “A Revolução dos Bichos”, uma fábula que critica o stalinismo, Orwell decide criar de uma maneira simples, algo que denunciasse o regime da União Soviética. Mas, o que aparentaria ser específico, se expande, e até hoje consegue atingir um extremo nível de realidade.
“Os porcos já liam e escreviam muito bem. Os cães aprenderam a ler razoavelmente, mas não se interessavam pela leitura de nada além dos Sete Mandamentos. Maricota, a cabra, lia um pouco melhor que os cães e costumava ler para os demais, à noite, os pedaços de jornal que achava no lixo. Benjamim sabia ler tão bem quanto os porcos, mas não exercia sua faculdade. Ao que soubesse – costumava dizer – não havia o que valesse a pena ler. Quitéria aprendeu todo o alfabeto, mas não conseguia juntar as letras. Sansão não foi capaz de ir além da letra D” (A Revolução dos Bichos).
Os porcos, que tomam o poder na Granja Solar, usam como meio para manipular as leis e burlar os mandamentos, a ignorância dos outros animais, já que poucos sabem ler e os que sabem, são de quase nenhuma utilidade. O que não se diferencia dos dias de hoje: querem a nossa ignorância, já que por falta de conhecimento, dificilmente vamos contestar alguma coisa.
Em sua obra prima, os exemplos se acumulam. “1984” previu diversos comportamentos e estratégias de manipulação. A teletela, no livro, é um instrumento utilizado pelo Partido para monitorar seus membros e ela estava presente em todas as propriedades, em todos os lugares, vigiando a tudo e a todos.
“A teletela recebia e transmitia simultaneamente. Todo som produzido por Winston que ultrapassasse o nível de um sussurro muito discreto seria captado por ela; mais: enquanto Winston permanecesse no campo de visão enquadrado pela placa de metal, além de ser ouvido também poderia ser visto”. “Você era obrigado a viver – e vivia, em decorrência do hábito transformado em instinto – acreditando que todo som que fizesse seria ouvido e, se a escuridão não fosse completa, todo movimento examinado meticulosamente”. (1984)
Em 1949, quando foi publicado “1984”, não se tinha o conhecimento das tecnologias de hoje, mas Orwell previu que nossas vidas iriam ser vigiadas e que a todo momento estaríamos sendo monitorados. Mas o autor errou em achar que nos tirariam a privacidade à força, atualmente somos nós a jogar nossa intimidade nas redes sociais.
Outro conceito presente neste romance é a personificação de um conceito. Mas diferente de como faz Neil Gaiman, o símbolo para Orwell representa muito mais do que apenas um sentimento. Ele é capaz de encaminhar uma nação, dirigir as atenções de um povo para apenas um comandante ou um inimigo.
“A programação de Dois Minutos de ódio variava todos os dias, mas o principal personagem era sempre Goldstein. Ele era o traidor original, o primeiro conspurcador da pureza do Partido. Todos os crimes subsequentes contra o Partido, todas as perfídias, sabotagens, heresias, todos os desvios eram resultado direto de sua pregação. Desta ou daquela maneira ele continuava vivo e maquinando seus conluios: talvez em algum lugar do outro lado do mar, talvez até sob a proteção de seus benfeitores estrangeiros – era o que se dizia ocasionalmente – em algum esconderijo na própria Oceania”. (1984)
Se trocarmos acima Goldstein por Osama Bin Laden e Partido por Estados Unidos, podemos perceber a qual nível chegou a genialidade de Orwell. Bin Laden, assim como Goldstein, foi utilizado como imagem maior do inimigo da nação e só assim Bush conseguiu concentrar a atenção de uma nação em apenas um homem. A personificação do ódio de todo um país.
E é aí que chegamos ao mote da obra de Orwell: Bin Laden outrora não fora aliado dos EUA? A Oceania está em guerra com a Eurásia ou a Lestásia? De que lado estão os porcos? Sempre há contradição no ser humano e é isso que o autor buscava retratar. A corrupção dos ideais, sendo ela voluntária ou não. Esta característica do escritor inglês fica ainda mais evidente em seu romance “Moinhos de Vento“, onde mostra a vida de um artista revoltado contra o sistema, mas que depois de passar por diversos problemas, acaba por aceitá-lo, e fazer parte dele.
George Orwell é reconhecido até hoje como um dos maiores romancistas do século XX por sua capacidade de reunir conceitos complexos de uma forma simples, apresentar teorias filosóficas e sociológicas acerca do cotidiano, mas de forma aplicada, utilizando os ideais de Karl Marx e antecipando os de Michael Foucault, criticando diversos comportamentos da sociedade e do estado, revelando o lado contraditório presente em todo ser humano.
Orwell consegue abrir as portas de sua (nossa) mente para um universo caótico e assustador.