Vou aqui dispensar a invocação à deusa da memória. Vou deixar de lado, como tantos de minha época, o uso desse hábito ancião, pois minha musa não é divina e a minha inspiração não provém dos Olímpios. Sou humano e como um humano contarei como enfrentei os que um dia já o foram também. Não sou rápido e habilidoso como Aquiles Semideus ou sagaz como Odisseu das Muitas Viagens, sou diferente de Enéias o Primeiro Romano e de Édipo Vítima do Destino. Não sou herói acima dos homens, sou apenas Luiz Lindt e tal rótulo já me basta, me define. Este relato não é épico ou trágico e muito menos lírico; não seria justo com tais estilos e também com meu relato. O que vou contar é como sei sobre o que ainda não aconteceu; vim explicar como conheço fatos que não presenciei; como entendo assuntos dos quais não participei. Eu vim contar como esbarrei com a história de quatro amigos que foram arremessados em um mundo mais escuro que o nosso, um mundo que eu já conhecia, mas evitava até o momento.
A minha parte na aventura começou em um dia comum, sem nada de especial, uma quarta-feira fria na qual andava do trabalho para a faculdade. Era fim de tarde e o dia aos poucos dava lugar à noite, carregando no vento o frio do que seria uma noite gelada. Ventava bastante, um vento frio e seco, mas eu não me importava com aquilo, cheguei até a gostar. O vento me agrada e sempre me agradou, me dá uma sensação de liberdade singela em um mundo todo amarrado e cronometrado. Eu observava as pessoas pelas quais passava, os mais diferentes rostos e trejeitos, todos bem agasalhados devido ao frio. Observava também todos aqueles seres que não podem ser chamados de pessoas: espíritos, anjos, demônios, elementais e tantas outras raças fantásticas como ogros e elfos e mestiços. Essa visão assustaria os não habituados, mas naquele ponto da minha vida eu já estava acostumado com toda aquela bizarrice, desde criança já via os dois mundos unidos em apenas um. Dois mundos que são, na verdade, apenas um separado em duas partes. A versão ordinária, onde os humanos habitam como se fossem reis sem se importar verdadeiramente com outras formas de vida, e a versão extraordinária, o lado oculto e fantástico onde vivem todas as criaturas fabulosas e míticas, todas aquelas divindades antigas e atuais também. Os dois lados se influenciam muito mais do que eu gostaria que fosse na prática. O nosso mundo afeta o físico de ambos os lados, como fenômenos naturais e construções, enquanto os habitantes do mundo fantástico volta e meia afetam os viventes desse lado: possessões, aparições e visões.
Admito que demorei para me habituar com essa habilidade de ver os dois lados juntos em um só; ainda acho engraçado quando vejo um anão dirigindo uma moto ou um anjo usando jaqueta de couro. Lembro da vez que vi uma senhora de idade queixando-se de uma dor absurda nas costas e precisei concordar que devia mesmo doer, considerando o gnomo que fumava cachimbo pegando carona na pobre velhinha. O dia em questão estava especialmente engraçado e fantástico: avistei um ogro absurdamente grande ajudar um senhor coxo a atravessar a rua, vi um pequeno elfo correr atrás dos pombos em uma praça, até que um dos pássaros se cansou da brincadeira e começou a persegui-lo . Tive o prazer de ajudar uma elemental do vento quando ela tropeçou e caiu no chão, e não sabia se ria da reação dela ao perceber que eu a enxergava ou se ria de um elemental do vento poder tropeçar. Já estava no meio do caminho até a faculdade quando percebi que as cores que eu enxergava pareciam menos vivas do que deveriam; o mundo ficava um pouco mais cinza a cada passo que era dado. Olhei para o outro lado da praça que atravessava e vi algo que gelou meu sangue. Lá, parada, estava uma mulher branca demais para ser algo vivo; sua testa brilhava com a marca de um olho roxo fantasmagórico e toda a cor do mundo sumia ao seu redor. Virei-me rapidamente para o outro lado e troquei de direção, não passaria perto de algo tão perverso ao ponto de apagar todo o brilho de dois mundos unidos. Mas, ao que parece, aquele não era um dia de sorte para este que aqui escreve. Do outro lado, mais um ser, agora um homem, também me encarava sem mover o foco, na testa o mesmo olho roxo pulsava. Olhei para toda a praça e, dos quatro cantos, estava cercado; quatro espíritos de pura malícia se aproximavam lentamente de mim, e ficou óbvio que suas intenções não eram das mais agradáveis. Não se tratava de uma visita social.
Ficar ali parado com uma expressão de espanto no meio da praça não era o mais indicado, muito menos começar a discutir com o nada quando haviam tantas pessoas comuns no local. Decidi que precisava passar completamente para o lado fantástico. Não gosto de ficar totalmente imerso no outro lado; quando entro por inteiro na minha forma espectral (ouvi essa de um espírito benigno) chamo muita atenção e prefiro passar despercebido. Infelizmente, já não dava mais para ficar sozinho no meu canto. Entrei no meu lado espectral e respirei fundo, me preparando para seja lá qual fosse a situação.
A marca da família brilhou vermelha na minha testa, um pinheiro rubro que aparece em todos que partilham do meu sangue (embora poucos dos meus parentes tenham aprendido a usá-lo). Uma espada de madeira negra surgiu na minha mão, objeto quase de estimação, muito pesada para manusear e ainda mais pesada quando acerta uma cabeça. Por último, o nome da minha família queimou em minhas costas, incinerando a camisa que eu usava e estragando aquela jaqueta de couro que eu vestia sempre.
As quatro criaturas espantaram qualquer morador do lado de lá; não havia mais ninguém na praça à exceção deles e deste azarado escritor . Cercando-me estavam a mulher, quase um agouro de maus tempos com aquele olhar de pura maldade, e três homens, dois com roupas velhas e rasgadas e um terceiro com mais ou menos a minha idade e vestido de forma alinhada. Todos olhavam fixos para mim com os olhos opacos e mortos; apenas a marca em suas testas pareciam se mover. Os dois maltrapilhos avançaram em minha direção, e o terceiro andou até a mulher e apenas observou enquanto os outros faziam o serviço sujo. Aquelas coisas correram até o ponto onde eu me encontrava sem mostrar qualquer emoção humana nos rostos; logo percebi que aqueles pobres coitados estavam apenas sendo controlados. Os movimentos travados, os golpes impossíveis para alguém em sã consciência, as táticas suicidas e os olhos sem expressão, tudo mostrava que alma nenhuma habitava aquelas mentes desoladas. Eram conchas ocas, cascas sem conteúdo, lembranças fracas do que foram em dias passados. Senti pena, mas nada podia fazer por suas almas além de torcer para que já tivessem se libertado. Decidi que aquelas marionetes das quais desviava não deveriam continuar insultando a memória daqueles dois desconhecidos; despachei-as para o descanso definitivo, um golpe certeiro em cada e aquela luta estava terminada. Do pó vieram, ao pó retornaram.
Olhei para os dois restantes e senti a raiva e o desprezo crescerem dentro do meu coração: nenhuma reação eu pude arrancar com a absoluta obliteração de metade de seu grupo. Eu acabara de presenciar dois peões serem descartados com uma frieza sub-humana, e na minha frente estavam paradas a rainha e sua torre. Não hesitei, corri na direção de ambos; agora que haviam me posto na briga eu iria até o fim. Meu sangue fervia, as pupilas se fechavam enquanto meus olhos brilhavam de raiva e a marca explodia em luz. O jovem se pôs à frente da mulher e retribuiu a minha atitude. Correu até mim e no meio nos encontramos, punhos colidiram e as folhas caídas voaram do chão com o impacto. A minha espada voou até o seu crânio, mas, com rapidez, meu oponente se agachou e tentou me derrubar com uma rasteira. Pulei para trás evitando a manobra por centímetros. A luta estava equilibrada; tanto eu quanto o meu oponente lutávamos com ferocidade e os golpes desferidos tinham o mesmo objetivo claro de aniquilar o lado oposto sem o menor traço de misericórdia. Piedade e compaixão eram agora palavras estranhas para mim: meu único objetivo era exterminar de vez meu oponente antes que ele me exterminasse primeiro. Era fácil de perceber que o oponente da vez não era apenas um boneco manipulado como os dois anteriores; ali estava um lutador treinado, alguém de fato perigoso, com a intenção de me matar com seus punhos. Não se valia de armas para o combate, apenas de sua própria agilidade e da habilidade absurda de ler com exatidão todos os meus movimentos e antecipá-los, creio que por culpa daquele olho maldito que em sua testa pulsava. Apesar de o olho controlá-lo também, sua mente ainda estava lá. Era como se tivesse sido deturpada em vez de apagada; ainda lembrava de tudo o que aprendera antes de se tornar vítima da mulher fantasmagórica, mas algo dentro de sua mente estava mudado. Não era uma casca vazia e, ao mesmo tempo, não era mais a pessoa que já fora. Não deixei que essa situação lastimável me afetasse, mesmo que acabasse matando alguém que ainda tinha uma alma. Por mais deturpada que fosse, preferia ele morto e livre dessa maldição do que eu. Ainda precisava entregar um trabalho na faculdade naquela noite.
Conforme a luta avançava, algo começou a me incomodar: um certo desconforto vindo do fundo da minha consciência, um pequeno distúrbio que foi tomando tamanho e forma conforme eu enfrentava o patife controlado. Não era uma sensação proveniente da minha própria cabeça, algo estranho e absurdo estava sendo plantado dentro do meu cérebro, imagens perturbadoras de violência e morte, uma maré de lembranças que não me pertenciam, lembranças obscuras e cruéis de assassinatos e desmembramentos. Senti o pior lado da humanidade sendo forçado para dentro da minha mente através de visões horríveis nas quais eu próprio estava envolvido nas piores atrocidades que o homem em sua infeliz imaginação pode criar. Em um tolo momento, olhei para a mulher e então percebi que toda aquela malícia vinha dela; aquele olho maldito estava me mostrando um lado da minha personalidade que não existia, na tentativa de afetar a minha concentração. Fui jogado ao chão e imobilizado pelo oponente que tolamente ignorei. A mulher se aproximou lentamente e, a cada metro que os pés mortos daquela criatura a traziam para mais perto de mim, pude sentir uma avalanche de imagens e memórias grotescas de pessoas sendo torturadas. Pude lembrar com clareza quando vi meus amigos morrerem nas minhas mãos e vi a minha família sendo torturada desumanamente na minha frente, mesmo que nada daquilo jamais tivesse acontecido. Estava pronto para aceitar o meu destino, a minha sorte, por mais infeliz que fosse. A morte era melhor do que continuar revendo aquelas visões horríveis, aquelas memórias falsas que tanto perturbavam a minha alma. Quase no fim, para a minha mais sincera surpresa, junto com as mais queridas memórias que de fato me pertenciam, lembrei de alguns versos de um antigo mestre lusitano:
“No mar tanta tormenta e tanto dano,
Tantas vezes a morte apercebida!
Na terra tanta guerra, tanto engano,
Tanta necessidade aborrecida!
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida,
Que não se arme e se indigne o Céu sereno
Contra um bicho da terra tão pequeno?”
O que pode um simples homem fazer contra tanto ódio, tanta raiva despejada de uma só vez? O que pode um humano, pequeno e sozinho se comparado ao mundo, realizar contra a cólera de tamanha malícia reunida? O que resta fazer quando se é jogado e preso no chão com toda sua mente em pedaços e sua vida prestes a terminar? É curioso pensar como a resposta veio rápida e, de certa forma, de longe do local onde eu estava prestes a morrer. Olhei para a aliança na mão direita e senti arder a marca da minha família nas costas; lembrei que não vivia apenas por mim, não era o único para o qual minha vida importava. Aquelas visões tanto me afetaram justamente por mostrar tudo que eu amo morrendo e sofrendo. A minha vida não apenas me pertence, a minha morte não é apenas o meu fim, é o fim de tantos elos que me mantém em movimento, que sempre me ajudaram e me alegraram. Não podia morrer ali, seria a escapatória fácil no fim de tudo; deixar que um destino cruel me alcançasse sem fazer nada seria pura covardia e eu não estava disposto a partir desse mundo jovem, inteligente, bonito e covarde! Aparentemente não partirei desse mundo humilde, mas com esse detalhe eu já me conformei. Que a minha musa e o meu sangue esperassem por mim; eu voltaria para eles, por eles, e limparia aquelas imagens horríveis da memória. Uma nova determinação cresceu em mim, uma explosão de sentimento que jogou para longe tanto a mulher que estava perto de cortar fora meu pescoço quanto o rapaz que segurava meus braços contra as costas. Me levantei, beijei minha aliança e olhei diretamente para o olho roxo que agora brilhava descontrolado.
Com um movimento rápido eu recuperei a minha arma e a arremessei contra o jovem controlado. Madeira negra contra testa limpa foi o encontro e o oponente no chão caiu inconsciente; ainda me admiro que o seu crânio não se rachou. Acabei não matando aquele pobre deturpado, lamentei na hora, mesmo que tenha respirado aliviado instantes depois. Corri para cima da mulher no momento em que se levantou. Não estava abalada ou ferida, mas seu sorriso sádico não mais se fazia presente. A criatura fechou os olhos e a marca roxa brilhou intensa, tentando me inundar novamente com imagens grotescas. Entretanto, aquilo não mais me afetava; minha alma ardia e meus olhos fulgiam com brilho intenso, todas aquelas ondas de terror evaporaram no calor do momento. Nunca havia corrido em tal velocidade, nunca havia mergulhado tão fundo naquela força que residia dentro de mim. Juntei as energias que transbordavam e, com a alma apostada num único golpe, acertei aquele olho tenebroso que insistia em brilhar roxo no mundo cinza que havia criado. A mulher sumiu em um grito de agonia que ecoou sem sair de sua boca, seu jovem capanga desapareceu junto, e o vento se encarregou de levar o que havia restado dos outros dois, que agora não eram mais do que pó e manchas no chão. O mundo voltou ao colorido tão belo de sua natureza e eu voltei ao nosso lado zonzo e fraco; sentei-me no primeiro banco que avistei e, novamente, fui transbordado com visões.
Vi aquele jovem ser controlado, suas emoções manipuladas, vi sua amada ser corrompida, vítima de uma armadilha psicológica. Vi seu amigo ser assassinado brutalmente e vi também um quarto jovem, mediano e sem nada de especial, ficar sozinho no mundo após perder o que tanto cultivara, uma amizade de ouro com três pessoas que agora não mais eram as mesmas. Me enxerguei escrevendo esse relato, explicando para vocês como me envolvi com esses quatro infelizes, e previ que também escreveria a história deles e o começo dessa saga em suas vidas. Por último, entendi que isso tudo fora visto pela mulher que tentou me eliminar; ela sabia que eu acabaria tendo essas visões do que aconteceu e do que acontecerá, mas sua pressa de negar o destino acabou apenas o confirmando. Eu agora sabia que entrara em uma história longa e que chegara a hora de mergulhar de vez no que esse mundo possui de mais fantástico, e que ainda me encontraria com esses quatro amigos das minhas visões.
Por ora, me contentei em levantar, bater a poeira da roupa, que, por sorte, estava inteira desse lado da realidade, e continuar andando até a faculdade, para a qual já estava atrasado.
Afinal de contas, eu tinha um trabalho para entregar.
Luiz Lindt tem vinte e cinco anos e mora em Curitiba, Paraná. Estuda Letras na UFPR e trabalha como professor de inglês, é tradutor iniciante e escritor dos seus próprios devaneios. Prefere escrever fantasia, mas nunca exclui outros estilos narrativos.