Como um professor de línguas ocupado e com um temperamento tendendo à depressão revolucionou a escrita de histórias fantásticas enquanto corrigia provas? Como um soldado enfiado nas úmidas trincheiras da Primeira Guerra Mundial consegui produzir um épico da fantasia?
Em primeiro lugar, é importante entender que John Ronald Reuel Tolkien realmente acreditava no gênero que ele escrevia. Tolkien era mesmo apaixonado por fantasia. E com toda a certeza ele não a escrevia para agradar a ninguém, e nem escrevia porque era o gênero da moda. Na verdade, era bem o inverso disto.
Costuma-se pensar que os gêneros literários divertidos como a fantasia são só depreciados pelo “povo das togas pretas” no Brasil e que isto é algo novo. Na verdade os chamados subgêneros como fantasia, terror e a ficção científica são invejados… digo! Odiados faz muito mais tempo pelos escritores chatos… digo! Alguns escritores catedráticos.
Tolkien em seu tempo viveu intensamente esta realidade. Naquela época, fantasia era relegada a um subgênero que servia apenas para crianças. Tolkien e outras pessoas como seu amigo C.S.Lewis odiavam este tipo de preconceito com o gênero. Eles acreditavam na fantasia, não que Tolkien acreditasse na existência de elfos e dragões ou na existência literal de criaturas fantásticas. Mas ele acreditava que a fantasia dialogava com a realidade e a tornava um lugar melhor para se viver. Tratava-se de um gênero literário nobre e grandioso e não apenas histórias de fadas para crianças sonolentas.
O pensamento vigente das cátedras era contrário a isto. Acusavam a fantasia de escapismo e diziam que esta característica era negativa. Frequentemente Tolkien sofria duras críticas e escárnios de seus colegas. Inclusive foi escrito um livro escarnecendo do Hobbit. Intitulado “The Boggit“, houve uma edição em português e ainda pode ser encontrada em sebos.
Em uma de suas palestras que foi transformada em um ótimo livro, “Sobre Historias de Fadas“, Tolkien deixa claro a ideia que ele acreditava que a fantasia, mesmo se for considerada como mero escapismo, ainda assim é algo benéfico:
Não é dever de todo soldado que foi capturado escapar e levar o máximo de pessoas consigo?
Desta forma ele reafirmou que apesar de seus livros serem escapistas, ou fornecerem uma experiência de fugir um pouco do quotidiano, isto era uma das coisas boas da fantasia.
Portanto a primeira coisa que podemos concluir sobre o seu método é:
1) Tolkien escrevia com paixão e escrevia o que ele mais gostava de ler independente do que era popular naquele momento.
Além de Tolkien, ter fé que a fantasia era algo benéfico ao espírito humano, ele também acreditava que escrever era aquilo de mais importante que ele fazia. Era sua paixão e ele acreditava que sua escrita era a pequena parte dele que iria permanecer.
Existe no final do mesmo livro citado um conto chamado “Uma folha por Niggle“, fala de um pintor que não conseguia se concentrar naquilo que ele mais amava. Sempre as coisas em volta atrapalhando. Era uma parábola para sua própria vida. Tolkien, não apenas escrevia para viver. Na verdade como a esmagadora maioria dos escritores. Ele precisava de outro trabalho para viver e escrever era relegado aos intervalos, fugas e brechas da vida. Mas era o que mais ele amava fazer.
Ele sempre estava escrevendo. Enquanto esperava os alunos terminarem as provas, nas longas horas de espera nas trincheiras da Segunda Guerra. Ele pegava uma folha qualquer e escrevia sobre sua amada, a Terra Média.
Talvez você, leitor, ainda não reparou, mas grande parte da vida de verdade acontece mesmo nos intervalos. Nos recreios da escola, nos horários de almoços, na pausa do cafezinho. São estes os momentos que nós mais ansiamos. É quando lemos, conhecemos pessoas, fazemos amizades eternas e conhecemos o verdadeiro amor. Nestes intervalos mágicos é quando tudo acontece. É quando a fantasia toca na realidade. É quando Tolkien escrevia. Acho que ninguém mais vai ter coragem de dizer que escapar do quotidiano é algo realmente negativo.
Portanto, o segundo ponto de seu método de escrita:
2) Tolkien escrevia sempre e a cada minuto de brecha que lhe era disponível.
Uma outra coisa que é importante entender sobre Tolkien. Por ele não ligar para prazos ele era um escritor bem avesso ao modelo, digamos, industrial de cumprir agendas apertadas e tudo o mais. Eu vejo pessoas se descabelando com a demora de George R.R. Martin em terminar seus livros. Vi pessoas desesperadas esperando a J.K. Rowling, terminar sua série sobre Harry Potter. Mas nada se compara com a espera que os leitores tiveram entre lançamento de O Hobbit e O Senhor dos Anéis.
O Hobbit foi lançado em 1937 e O Senhor dos Anéis foi entre 1954-1955. Um hiato de apenas 17 aninhos! Não estou considerando que a distribuição de livros era muito mais precária nesta época e que muitos
receberam o livro com 2 anos de atraso. E a edição em português saiu somente em 1974. Haja paciência!
Como se não bastasse isto, Tolkien tinha uma peculiaridade que mataria de enfarto qualquer leitor apressado da era da internet. Ele reescrevia uma mesma história dezenas de vezes. Nunca o texto parecia estar bom o suficiente para a publicação. Dizem que existe um conto com mais de 50 versões do Tolkien. Pode ser exagero, mas lendo as notas do Silmarillion, vemos que seu filho, Christopher Tolkien, dedicou enorme parte de sua vida a colocar ordem num caos de papeizinhos e mais papeizinhos e cadernos que seu pai escrevia sem parar até sua morte em 1974. Ainda hoje ele está tentando catalogar e publicar tudo. Christopher está atualmente com 89 anos (nascido em 1924).
Não estou dizendo que isto é uma coisa totalmente boa, Tolkien era muito extremado em reescrever. Mas a coisa boa era que ele selecionava muito o produto final e com certeza ele relia e não tinha medo de refazer tudo, portanto:
3) Tolkien revisava e reescrevia até ficar o melhor possível
Ao contrário do que se pode pensar e já que estamos falando em revisar, Tolkien não era um escritor solitário que só tinha relação com os seus papeizinhos e pensamentos. Longe disto!
Ele fazia parte de um grupo, um verdadeiro clube de escritores que se encontravam em um barzinho de Oxford e liam seus textos mais recentes uns para os outros. Os Inklings.
Deixe-me falar rapidamente sobre os Inklings. Era um grupo de escritores de Oxford realmente de peso. C.S.Lewis e Christopher também faziam parte. Tolkien realmente contava com pessoas de peso para criticar suas estória:
C. S. Lewis, Owen Barfield, Charles Williams, Adam Fox, Hugo Dyson, Robert Havard, Nevill Coghill, Charles Leslie Wrenn, Roger Lancelyn Green, Colin Hardie, James Dundas-Grant, John Wain, R. B. McCallum, Gervase Mathew, C. E. Stevens, J. A. W. Bennett, Lord David Cecil, Christopher Tolkien e Warren “Warnie” Lewis (irmão mais velho de C. S. Lewis).
Desta forma ele reunia opiniões de outros quanto aos seus textos. E muitas vezes ouvia seus amigos. Ele não somente lia em voz alta seu texto, mas tinha uma “apresentação” do mesmo para os outros. Isto é bem diferente de ler seu texto sozinho num quarto para si mesmo.
Imagine preparar uma apresentação do texto que você está escrevendo agora mesmo para os seus amigos. E fazer isto em um lugar público, como um café ou barzinho. Tem-se que estar muito seguro do texto para fazer isto. Não sei quando às outras pessoas, mas eu iria revisar o máximo possível meu texto antes de apresenta-lo. Isto exige que o texto esteja no mínimo aceitável. Ele precisa ser interessante e tem que ter começo meio e fim. Nada de ideias incompletas, nada de pedaços ou primeiros capítulos mal feitos.
Tolkien também mostrava tudo à sua família. Lembrando que O Hobbit foi escrito para seus filhos. Ele mandou vários capítulos de O Senhor dos Anéis em forma de carta para sua família enquanto estava servindo na guerra.
O quarto ponto do do que podemos intuir sobre o método de escrita de Tolkien é:
4) Submeter o texto a outras pessoas experientes. E submeter o texto à pessoas que gostam de você ao ponto de dizerem a verdade.
Existe um pequeno livro de Tolkien, “Meste Gil de Ham“. É um show em revelar as várias fases de preparação do seu texto. Mostra como ele esboçava, mostra uma primeira versão e mostra como ficava o texto final. As bases do método que ele usava pra escrever.
Desnuda muito do que vimos até aqui de forma clara. Uma coisa rara de se ver é como ele fazia um esboço de estória. Temos o ótimo “Contos Inacabados” para nos mostrar as muitas versões de suas estórias. Mas não me lembro de ver um manual tão prático de como escrever uma história quanto o “Meste Gil de Ham“. Neste pequeno conto, vemos duas versões do texto. Uma mais crua e uma reescrita e com muito mais sustância. As duas saborosas e muito reveladoras do modo como ele escrevia. Existe um personagem, o cão. Não vou entregar nenhum “spoiler” sobre ele, mas quando você ler perceba como ele evolui da primeira para a segunda versão.
E também existe um esboço de uma continuação da aventura nas páginas seguintes do livro. Um bom exercício é tentar escrever esta continuação utilizando o esboço de Tolkien. Tem tudo ali necessário para tal.
Quanto ao esboço em si, ele basicamente faz um despejo da ideia da estória e assinalava os pontos e personagens importantes. Ou seja em primeiro lugar ele “salvava” suas ideias escrevendo-as de forma a definir um verdadeiro esqueleto do que viria a ser a estória. E ele se inspirava de pequenas coisas para as estórias. Às vezes, as misteriosas origens de uma palavra já o faziam ter visões de jornadas épicas inteiras. Por isso, este é nosso quinto e último ponto:
5) Tolkien tinha um esqueleto básico de como a estória iria terminar. Mas isto não era rígido.
É claro que Tolkien não seguia religiosamente todos estes pontos. E estes pontos foram garimpados lendo-o e tirando conclusões sobre seu estilo. Tolkien nunca escreveu estes 5 pontos da forma como apresentamos aqui. Além disso certamente ele tinha diretrizes que não pudemos descobrir. Mas eu estou bem certo que estes cinco pontos fazem muito sentido de acordo com trabalho de Tolkien e não estão muito longe do que ele fazia para escrever.
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Espero que estes 5 pontos possam ser úteis e terem divertido a todos. Lembrem-se sempre que devemos testar o que funciona melhor para nós mesmos e não existem fórmulas mágicas. Apesar de existir uma certa mágica envolvida no ato de escrever.