Esse texto é de autoria de Neil Gaiman e foi publicado pelo autor dias após a morte do David Bowie. O conto foi publicado na coletânea Trigger Warnning, ainda inédita no Brasil. Caso, alguma editora anuncie que irá publicá-la o Leitor Cabuloso se compromete em retirar este texto do ar. O objetivo do site ao trazer esta tradução é possibilitar aos fãs de Bowie e Gaiman um contato com este material incrível que devido ao distanciamento da língua se torna inacessível para algumas pessoas. Boa leitura!
O retorno do duque branco e magro
(The return of the thin white duke)
Ele era o monarca de tudo o que a vista alcançava, mesmo quando subia à varanda de seu palácio à noite para ouvir os relatos e contemplava o céu com suas galaxias espirais e aglomerados de estrelas. Ele governava os mundos. Ele havia tentando por muito tempo governar bem e com sabedoria e ser um bom monarca. Mas governar é duro e a sabedoria pode ser dolorosa. E é impossível, ele havia descoberto, se você reinar apenas para o bem, construir qualquer coisa sem por outra coisa abaixo. E nem mesmo ele poderia tomar conta de cada vida, cada sonho, cada população, cada mundo.
Pouco a pouco, momento a momento, morte a morte, ele parou de se importar.
Ele nunca iria morrer, porque só pessoas inferiores morriam, e ele não era inferior a ninguém.
O Tempo passou. Um dia, nas masmorras profundas, um homem com sangue no rosto olhou para o Duque e lhe
disse que ele tinha se tornado um monstro. No momento seguinte, o homem não existia mais, apenas uma nota de rodapé em um livro de história.
O Duque refletiu sobre essa conversa ao longo dos dias que se seguiram, e, eventualmente, ele acenou com a cabeça. “O traidor tinha razão”, disse ele. “Eu me tornei um monstro. Ah, bem. Gostaria de saber se qualquer um de nós pretendia ser um monstro?”
Uma vez, há muito tempo, ele havia tido amantes, mas aquilo havia sido nos dias do alvorecer do Ducado. Agora, no crepúsculo do mundo, com todos os prazeres disponíveis livremente (mas o que alcançamos sem esforço, não damos valor), e sem a necessidade de lidar com quaisquer problemas de sucessão (até mesmo a noção de que outro, alguma dia, pudesse suceder o Duque beirava à blasfêmia) não haviam mais amantes, assim como não haviam desafios. Ele sentia como se estivesse dormindo, enquanto seus olhos estavam abertos e os lábios estavam falando, mas não havia nada para acordá-lo.
O dia depois de ter ocorrido ao Duque que ele agora era um monstro, era o Dia das Flores Estranhas, comemorado com uso de flores trazidas para o Palácio do Duque de cada mundo e cada plano. Era um dia em que todos no Palácio do Duque, que cobriam um continente, estavam tradicionalmente alegres, e em que todas as trevas e temores eram abandonados, mas o Duque não estava feliz.
“Como você pode ser feliz?” perguntou o besouro informante em seu ombro, que retransmitia os caprichos e desejos de seu mestre para centenas e centenas de mundos. “Diga uma palavra, Sua Graça, e impérios vão ascender e cair para fazê-lo sorrir. Estrelas vão explodir em nova para o seu entretenimento.”
“Talvez eu precise de um coração”, disse o Duque.
“Terei centenas de centenas de corações imediatamente arrancados, extirpados, extraídos, cortados e, de outra forma, retirados dos peitos de dez mil exemplares perfeitos da especie humana”, disse o besouro informante. “Como você deseja que sejam preparados? Devo alertar os chefes, ou os taxidermistas, os cirurgiões, ou os escultores?”
“Eu preciso me importar com alguma coisa”, disse o Duque. “Eu preciso valorizar a vida. Eu preciso acordar”.
O besouro rangeu e chilreou em seu ombro. Ele podia acessar a sabedoria de dez mil mundos, mas não podia aconselhar seu mestre quando ele estava neste estado de espírito, então, não disse nada. Ele transmitiu a sua preocupação aos os seus predecessores, os antigos besouros e escaravelhos informantes, que agora dormiam em caixas ornamentadas em uma centena de mundos, e os escaravelhos consultaram-se uns aos outros, com pesar, porque, na imensidão do tempo, até mesmo isso, já havia acontecido antes, e eles estavam preparados para lidar com isso.
Uma plano há muito esquecido, desde o amanhecer dos mundos, foi colocado em movimento. O Duque estava realizando o ritual final do Dia das Flores Estranhas, sem expressão em seu rosto magro, um homem vendo seu mundo como ele era, e sem lhe dar valor, quando uma pequena criatura alada esvoaçou para fora da flor em que estava se escondida.
“Sua graça”, ela sussurrou. “Minha senhora precisa de você. Por favor. Você é sua única esperança.”
“Sua senhora?” perguntou o Duque.
“Essa criatura vem do além”, clicou o besouro em seu ombro. “De um dos lugares que não reconhecem a soberania do Ducado, das terras para além da vida e da morte, entre o ser e o não ser. Ela deve ter se escondido dentro de um botão de orquídea importada de além-mundo. Suas palavras são uma armadilha, ou uma cilada. Eu devo destruí-la”.
“Não”, disse o Duque. “Deixe-a.” Ele fez algo que não fazia há muitos anos, acariciou o besouro com o dedo fino branco. Seus olhos verdes ficaram pretos e ele cigarreou no silêncio perfeito.
Ele segurou a pequena criatura em suas mãos, e voltou para seus aposentos, enquanto ela lhe falou sobre sua sábia e nobre Rainha, e dos gigantes, cada um mais bonito do que o outro, e daquele que era o maior, mais perigoso e mais monstruoso, e que manteve a rainha uma cativa.
E enquanto ela falava, o Duque lembrou dos dias quando um rapaz das estrelas tinha chegado ao mundo para tentar a sorte (pois naquela época havia fortunas em todos os lugares, apenas esperando para serem encontradas); e na lembrança, ele percebeu que sua juventude havia sido a menos tempo do que ele havia pensado. Seu besouro informante estava repousando em cima de seu ombro.
“Por que ela mandou você para mim?” ele perguntou a pequena criatura. Mas, sua tarefa estava cumprida e ela não mais falaria, e em instantes ela desapareceu, tão instantaneamente e permanentemente quanto uma estrela que se extingue sob a ordem do Duque.
Ele entrou em seus aposentos privados, e colocou o besouro informante desativado em seu estojo, ao lado da cama. Em seu escritório, ele pediu para seus servos lhe trazerem um comprido estojo preto. Abriu-o e, com um toque, ativou seu mestre conselheiro. Ele se sacudiu, e então subiu e em seus ombros na forma de uma víbora, a cauda da serpente penetrou no plugue neural na base de seu pescoço.
O Duque contou a serpente o que pretendia fazer.
“Isto não é sábio”, disse o mestre conselheiro, após um momento ponderando sobre os precedentes, com a inteligência e a experiencia de cada conselheiro que o Duque já possuiu disponíveis em sua memória.
“Eu procuro aventura, não sabedoria”, disse o Duque. O fantasma de um sorriso começou a tocar nas bordas de seus lábios. O primeiro sorriso que seus servos tinham visto em mais tempo do que podiam se lembrar.
“Então, se você não vai ser dissuadido, leve um corcel de batalha”, disse o conselheiro. Foi um bom conselho. O Duque desativou o mestre conselheiro e solicitou a chave do estabulo dos corcéis de batalha. A chave não tinha sido tocada em mil anos, as cordas estavam empoeiradas.
Uma vez já haviam existido seis corcéis de batalha, um para cada um dos Senhores e Senhoras da Noite. Eles foram brilhantes, bonitos, imparáveis, e quando o Duque foi forçado, com pesar, a encerrar a carreira de cada um dos Senhores da Noite, ele se recusou a destruir seus corcéis de batalha, em vez disso, ele os colocou onde não poderiam ser de nenhum perigo para a humanidade.
O Duque pegou a chave e tocou o arpejo de abertura. O portão se abriu, e um corcel de batalha preto-nanquim, preto-óleo, preto-carvão, desfilou para fora com graça felina. Ele levantou a cabeça e olhou para o mundo com olhos orgulhosos.
“Onde vamos?” perguntou o corcel de batalha. “O que vamos enfrentar?”
“Nós vamos para o além”, disse o Duque. “E quanto a quem vamos enfrentar… bem, isso há de ser visto.”
O Duque subiu nas costas do corcel de batalha, o metal frio era macio como carne viva entre suas coxas, e ele o incitou avante.
Um salto e estavam correndo pela espuma e fluxo de Subespaço. Juntos, eles foram caindo através da loucura entre os mundos. O Duque, então, riu onde nenhum homem poderia ouvi-lo. Eles viajaram juntos através Subespaço, viajando para sempre no Subtempo (onde os segundos da vida de uma pessoa não são contados).
“Isto parece algum tipo de armadilha”, disse o corcel de batalha, como o espaço abaixo das galáxias evaporando-se sobre eles.
“Sim”, disse o Duque. “Estou certo que é”.
“Ouvi falar desta Rainha”, disse a corcel de batalha, “ou de alguém parecido. Ela vive entre a vida e a morte, e leva guerreiros e heróis e poetas e sonhadores à desgraça.”
“Parece verdade”, disse o Duque.
“E quando voltarmos para o espaço real, eu esperaria uma emboscada”, disse o corcel de batalha.
“Isso parece mais do que provável”, disse o Duque, quando eles chegaram ao seu destino, e explodiram para fora do Subespaço de volta à existência.
Os guardiões do palácio eram tão belos quanto a mensageira havia avisado, e tão ferozes, quanto eles esperavam.
“O que você está fazendo?” eles chamaram, quando vieram para o ataque. “Você não sabe que estranhos são proibidos aqui? Fique com a gente. Nós amaremos você. Vamos devorá-lo com o nosso amor.”
“Eu vim para resgatar a sua Rainha”, ele lhes disse.
“Resgatar a Rainha?” eles riram. “Ela vai ter sua cabeça em uma bandeja antes de olhar para você. Muitas pessoas vieram para salvá-la ao longo dos anos. Suas cabeças repousam em bandejas de ouro em seu palácio. A
sua vai ser apenas a mais fresca.”
Haviam homens que pareciam anjos caídos e mulheres que pareciam demônios elevados. Haviam pessoas tão belas que eles teriam sido tudo o que o Duque jamais havia desejado, se fossem humanos, e eles se pressionaram contra ele, pele com carapaça e carne contra armadura, para que pudessem sentir sua frieza, e ele poder sentir o calor deles.
“Fique conosco. Nos deixe te amar”, sussurraram eles, e estenderam as mãos com garras e dentes afiados.
“Eu não acredito que seu amor irá provar ser bom para mim”, disse o Duque. Uma das mulheres, de cabelos claros, com os olhos de um peculiar azul translúcido, o lembrou de alguém há muito esquecido, de uma amante que tinha saído de sua vida um longo tempo atrás. Ele encontrou o nome dela em sua mente, e teria a chamado em voz alta, para ver se ela se virava, para ver se ela o reconhecia, mas o corcel de batalha a atacou com garras afiadas, e os claros olhos azuis se fecharam para sempre.
O corcel de batalha movia-se rapidamente, como uma pantera, e todos os guardiões caiam no por terra, se contorciam e então ficavam inertes.
O Duque estava diante do palácio da Rainha. Ele deslisou de seu corcel de batalha até a terra fresca.
“Daqui, eu irei sozinho”, disse ele. “Espere, e um dia eu voltarei.”
“Eu não acredito que você irá voltar”, disse o corcel de batalha. “Vou esperar até o próprio tempo chegue ao fim, se for necessário. Mas ainda assim, eu temo por você.”
O Duque tocou com seus lábios o aço preto da cabeça do corcel, e lhe disse adeus. Ele caminhou ao resgate da Rainha. Lembrou-se de um monstro que tinha governado os mundos e que nunca iria morrer, e ele sorriu, porque ele não era mais aquele homem. Pela primeira vez desde a sua primeira juventude, ele tinha algo a perder, e a descoberta disso o fazia jovem novamente. Seu coração começou a palpitar em seu peito, enquanto ele caminhava pelo palácio vazio, e ele riu alto.
Ela estava a sua espera, no lugar onde as flores morrem. Ela era tudo o que ele tinha imaginado que seria. A saia era simples e branca, as maçãs do rosto eram proeminentes e muito escuras, seu cabelo era longo e infinitamente escuro, como a cor da asa de um corvo.
“Estou aqui para salvá-la”, ele disse a ela.
“Você está aqui para salvar a si mesmo”, ela o corrigiu. Sua voz era quase um sussurro, como a brisa que agitou as flores mortas.
Ele abaixou a cabeça, embora ela fosse tão alto quanto ele.
“Três perguntas”, ela sussurrou. “Responda-as corretamente, e todos os seus desejos serão seus. Falhe, e sua cabeça vai descansar para sempre em uma bandeja de ouro.” Sua pele era do marrom das pétalas das rosas mortas. Seus olhos eram do dourado escuro do âmbar.
“Faça suas três perguntas”, disse ele, com uma confiança que não sentia.
A Rainha estendeu um dedo e correu a ponta suavemente ao longo de sua bochecha. O Duque não conseguia se lembrar da última vez que alguém o havia tocado sem sua permissão.
“O que é maior do que o universo?”, ela perguntou.
“Subespaço e Subtempo”, disse o Duque. “Porque ambos incluem o universo, e também tudo o que não é o universo. Mas eu suspeito que você procura uma resposta mais poética e menos precisa. A mente, então, porque
ela pode conter um universo, assim como imaginar coisas que não existem, e nunca existiram”.
A rainha não disse nada.
“Estou certo? Estou é errado?” perguntou o Duque. Ele desejou, momentaneamente, pelo sussurro ofioideo de seu mestre conselheiro, descargando, através do seu plugue neural, a sabedoria acumulada de seus conselheiros ao longo dos anos, ou até mesmo os rangidos de seu besouro informante.
“A segunda questão,” disse a Rainha. “O que é maior do que um rei?”
“Obviamente, um Duque”, disse o duque. “Porque todos os reis, papas, chanceleres, imperatrizes e tal servem apenas e unicamente a minha vontade. Mas, novamente, eu suspeito que você está procurando uma resposta que é menos precisa e mais imaginativa. A mente, mais uma vez, é maior do que um rei ou um Duque. Porque, embora eu não seja inferior de ninguém, há quem poderia imaginar um mundo em que há algo superior a mim, e outra coisa novamente superior a isso, e assim por diante. Não! Espere! Eu tenho que a resposta. É a Grande Árvore: Kether, a Coroa, o conceito de monarquia, é maior do que qualquer rei”.
A Rainha olhou para o Duque com olhos cor de âmbar, e disse: “A sua última pergunta: o que você nunca pode ter de volta?”
“A minha palavra”, disse o Duque. “Embora, agora pensando a respeito, uma vez que eu dou a minha palavra, às vezes, as circunstâncias mudam e às vezes os mundos, em si, mudam de maneiras infelizes ou inesperados. De tempos em tempos, se for o caso, a minha palavra precisa ser mudada em conformidade com a realidade. Eu diria, então que é a morte, mas, na verdade, se eu me encontrar na necessidade por alguém que eu já tenha, previamente, matado, eu posso simplesmente reincorporá-lo… “
A rainha parecia impaciente.
“Um beijo”, disse o Duque.
Ela balançou a cabeça.
“Há esperança para você”, disse a Rainha. “Você acredita que é minha única esperança, mas, sinceramente, eu sou a sua. Suas respostas foram todas erradas, mas, pelo menos, não eram tão erradas quanto as dos outros.”
O Duque contemplou a possibilidade de perder a cabeça para aquela mulher e percebeu que a perspectiva era menos perturbadora do que ele esperava.
O vento soprou através do jardim de flores mortas, parecendo ao Duque com fantasmas perfumados.
“Você gostaria de saber a resposta?” ela perguntou.
“As respostas”, disse ele. “Certamente.”
“Somente uma resposta, e é essa: o coração”, disse a Rainha. “O coração é maior do que o universo, para que possa encontrar piedade nele para tudo no universo, e o próprio universo pode sentir compaixão. O coração é maior do que um rei, porque um coração pode conhecer um Rei pelo que ele é, e ainda assim amá-lo. E uma vez que você dê o seu coração, você não pode tê-lo de volta. “
“Eu disse um beijo”, disse o Duque.
“Não foi tão errada quanto as outras respostas”, ela disse a ele. O vento soprava mais alto e mais selvagem e por um instante o ar estava cheio de pétalas mortas. Então o vento se foi, tão de repente quanto surgiu, e as pétalas partidas caíram no chão.
“Então eu falhei na primeira tarefa que você me deu. No entanto, eu não acredito que minha cabeça ficaria bem em cima de um prato de ouro”, disse o Duque. “Ou sobre qualquer tipo de prato. Dê-me uma tarefa, então, uma busca, algo que eu possa realizar para mostrar que eu sou digno. Deixe-me resgatá-la deste lugar”.
“Nunca fui eu que precisei de resgate”, disse a Rainha. “Os seus conselheiros, escaravelhos e programas lhe enganaram. Eles mandaram você aqui, como mandaram aqueles que vieram antes de você, há muito tempo, porque é melhor para você desaparecer por sua própria vontade, do que é para eles para matá-lo em seu sono. E menos perigoso”. Ela pegou sua mão. “Venha”, disse ela. Eles andaram para longe do jardim das flores mortas, além das fontes de luz, pulverizando suas luzes para o vazio, e na cidadela de música, onde as vozes perfeitas esperavam a cada volta, suspirando e soando e cantarolando e ecoando, embora ninguém estivesse lá para cantar.
Além da cidadela havia apenas névoa.
“Lá”, ela disse a ele. “Estamos no final de tudo, onde nada existe, apenas o que nós criamos, por ato de vontade ou por desespero. Aqui neste lugar. Eu posso falar livremente. Somos só nós, agora”. Ela olhou em seus olhos. “Você não tem que morrer. Você pode ficar comigo. Você vai ser feliz por ter finalmente encontrado a felicidade, um coração e valor para existência. E eu vou te amar”.
O Duque olhou para ela com um flash de raiva intrigada. “Eu pedi para me importar. Eu pedi por algo com o que eu pudesse me importar. Eu pedi por um coração”.
“E eles lhe deram tudo o que você pediu. Mas você não pode ser o monarca deles e ter essas coisas. Então, você não pode voltar”.
“Eu … eu pedi a eles para fazer isso acontecer”, disse o Duque. Ele não parecia mais com raiva. As névoas na borda daquele lugar eram pálidas, e elas feriam os olhos do Duque quando ele olhava para elas muito profundamente ou por muito tempo.
O chão começou a tremer, como se estivesse sob os passos de um gigante.
“Existe alguma verdade aqui?” perguntou o Duque. “Existe algo confiável?”.
“É tudo verdade”, disse a Rainha. “O gigante virá. E ele vai matá-lo, a menos que você o derrote”.
“Quantas vezes você já passou por isso?” perguntou o Duque. “Quantas cabeças acabaram em pratos de ouro?”.
“A cabeça de ninguém jamais terminou numa bandeja de ouro”, disse ela. “Eu não estou programada para matá-los. Eles lutam por mim e eles me ganham e eles ficam comigo até que eles fecham os olhos pela última vez. Eles se contentam em ficar, ou eu faço eles se contentarem. Mas você…, você precisa do seu descontentamento, não é?”.
Ele hesitou. Então, ele assentiu.
Ela colocou os braços em volta dele e o beijou, lenta e suavemente. O beijo, uma vez dado, não podia ser tomado de volta.
“Então, agora, eu vou lutar contra o gigante e salvá-la?”.
“É o que acontece”.
Ele olhou para ela. Ele olhou para si mesmo, para sua armadura esculpida, para suas armas. “Eu não sou covarde. Eu nunca fugi de uma luta. Eu não posso recuar, mas eu não vou me contentar em ficar aqui com você. Então eu esperarei aqui, e eu vou deixar o gigante me matar”.
Ela pareceu alarmada. “Fique comigo. Fique”.
O Duque olhou para trás, para a brancura vazia. “O que existe lá fora?” ele perguntou. “O que existe além da névoa?”.
“Você vai fugir?” ela perguntou. “Você vai me deixar?”.
“Eu vou”, disse ele “E eu não vou fugir. Mas vou em frente. Eu queria um coração. O que existe do outro lado da névoa?”
Ela balançou a cabeça. “Além da névoa existe Malkuth: O Reino. Mas ele não existe a menos que você o faça. Para que ele exista, você tem que criá-lo. Se você se atrever a andar em meio à névoa, então você vai criar um mundo ou você vai deixar de existir completamente. E você pode fazer isso. Eu não sei o que vai acontecer, exceto pelo seguinte: se você se afastar de mim, você nunca poderá voltar”.
Ele ouviu uma pancada continua, mas já não estava certo se eram os pés de um gigante. Parecia mais como a batida, batida, batida do seu coração.
Ele se virou para a névoa, antes que pudesse mudar de ideia, e caminhou para dentro do nada, frio e úmido contra sua pele. A cada passo sentia-se se tornando menos. Seus plugues neurais morreram, e não lhe deram nenhuma informação nova, até mesmo o seu nome e o seu status foram perdidos.
Ele não tinha certeza se ele estava procurando um lugar ou fazendo um. Mas ele lembrou da pele escura e seus olhos cor de âmbar dela. Lembrou-se das estrelas – deveriam haver estrelas onde ele estava indo, ele decidiu. Deveriam haver estrelas.
Ele pressionou. Ele suspeitava que uma vez havia vestindo armadura, mas sentia a névoa úmida no rosto e no pescoço, e estremeceu em seu casaco fino contra o ar frio da noite.
Ele tropeçou, seu pé batendo contra o meio-fio.
Então ele se pôs de pé, e olhou para as luzes da rua borradas através da névoa. Um carro passou perto – muito perto – e passou por ele, as luzes traseiras vermelhas manchando a névoa de carmesim.
“Minha velha mansão”, ele pensou, com carinho, e isso foi seguido por um momento de pura perplexidade, com a ideia de Beckenham e suas velharias. Ele tinha acabado de se mudar. Ali era um lugar para usar como uma base. Um lugar para onde escapar. Certamente, essa era a ideia?
Mas a ideia, de um homem fugindo (um lorde, ou um duque, talvez, ele pensou, e gostou do jeito que sentiu em sua cabeça) pairou e se pendurou em sua mente, como o início de uma canção.
“Eu prefiro escrever uma música do que governar o mundo”, disse ele em voz alta, saboreando as palavras na sua boca. Ele descansou seu estojo da guitarra contra a parede, colocou a mão no bolso de seu casaco de lona, encontrou um coto de lápis e um caderno barato e escreveu. Ele encontraria uma boa palavra de duas sílabas em breve, ele esperava.
Então ele abriu caminho para o pub. O ambiente acolhedor com cheiro de cerveja o abraçou quando ele entrou. O barulho baixo e resmungar de conversas de pub. Alguém chamou o seu nome, e ele acenou com a mão pálida para eles, apontou para seu relógio de pulso e depois para as escadas. A fumaça do cigarro deu ao ar um brilho azul fraco. Ele tossiu uma vez, do fundo do peito, e pediu um cigarro.
Subindo as escadas com o carpete vermelho puído, segurando seu estojo de guitarra como uma arma, o que quer que estivesse em sua mente antes de virar a esquina para a High Street evaporava a cada passo. Ele parou no corredor escuro antes de abrir a porta para a sala de cima do pub. Pelo burburinho de conversa fiada e o tilintar de copos, ele sabia que já havia um punhado de pessoas à espera e trabalhando. Alguém estava afinando uma guitarra.
Monstro? Pensou o jovem. Essa tem duas sílabas.
Ele revirou a palavra em sua mente várias vezes antes de decidir que poderia encontrar outra melhor, outra maior, outra mais apropriado para o mundo que ele tinha a intenção de conquistar, e com apenas um arrependimento momentâneo, ele a deixou para sempre e entrou.
Tradução Altemar Gavião para o Leitor Cabuloso. Este post não possui fins lucrativos. Se você desejar ler o texto original basta clicar aqui. As ilustrações são de Yoshitaka Amano e podem ser vistas aqui.