“Nenhuma realidade é absoluta, tudo é permitido”
Vladimir Bartol, Alamut
Poucos sabem, mas uma das franquias mais famosas atualmente no mundo dos games foi fortemente influenciada por um livro pouco conhecido, que por si só apresenta uma história inspirada em fatos reais. Vai uma dica? O game no caso é anual e não, não é Call of Duty. Vamos falar da gigantesca série Assassin’s Creed e suas principais raízes e fatos históricos que são espantosamente semelhantes ao jogo.
O Imortal Velho da Montanha?
Tudo começa com Hassan ibn al-Sabbah Homairi, um Ismaelita poderoso que viveu no território conhecido hoje como Irã, durante o século XI. Auto intitulado como a sétima encarnação de Imam Ismael, o chamado “sétimo profeta” segundo a crença Islâmica. Mas o que acontecia naquela região para que esse personagem histórico ganhasse tanto poder?
Após a morte de Maomé em 632, o Islã ficou divido entre os que acreditavam que o profeta deveria ser sucedido pelo seu genro, Ali ibn Abu Talib, e os que desejavam que o Califado, título do governante de estado e líder islâmico, deveria ser decidido por voto. Esses dois grupos se dividiram no que hoje conhecemos respectivamente como xiitas e sunitas. Deste conflito, nasceu uma guerra civil entre os dois grupos e mais um terceiro grupo dissidente dos xiitas, chamados carijitas, entrou na briga. Uma série de assassinatos ocorreu aos novos califas que assumiam o cargo, vários golpes de estado se sucederam e a capital do estado foi movida de Damasco para Bagdá em 750. Foi apenas no século XII que o sultão do Egito, o famoso Saladino, conseguiu reestruturar o Califado.
Neste cenário de guerra religiosa, Hassan Bin Sabbah viajou para o Egito e estudou diferentes religiões e crenças, entrando em contato com o cristianismo e os textos Vedas. Sua importância começou aí, quando idealizou uma junção das religiões citadas com o zoroastrismo e um pouco de neoplatonismo. Na época, a dinastia fatímida governava o califado, pregadores da vertente xiita, Nizar era o próximo sucessor. Após uma manobra, Nizar foi afastado da sucessão, deixando Hassan, seu amigo próximo, furioso, o fazendo se revoltar e com isso começar a reunir seguidores – os nizaritas.
Textos da própria biblioteca de Hassan em Alamut contam que após uma visão de Zaratustra, ele foi guiado de encontro aos seus iniciadores, membros de uma seita que o levariam para o “senhor da montanha” realizar o rito de passagem. Com sua missão de vida definida, “liberar a raça ariana e fundar um novo império”, Hassan construiu e foi responsável por uma das facções ismaelitas mais famosas da história, a Ordem dos Assassinos.
A Ordem dos Haxixe?
A importância dessa seita é evidente até hoje na palavra “assassino” e a conotação que carrega, mas ao estudar sua etimologia, muitas versões aparecem e conflitam. Uma delas vem do duvidoso Marco Polo, que em seus relatos disse ter visitado a Fortaleza de Alamut, sede da Ordem dos Assassinos, onde testemunhou diversas vezes o ato de fumar haxixe por parte dos membros da ordem. “haschichiyun” significaria “fumador de haxixe” e seria um ritual padrão adotado antes de cada assassinato, entretanto uma teoria mais coerente aponta que o próprio Hassan, segundo seus próprios textos, chamava seus discípulos de Asasiyun, ou seja, quem é fiel à Asas, a “fundação” da fé que seguem.
O primeiro jogo da série Assassin’s Creed representa de forma muito fiel como era a vida dos membros desta ordem. Todos usavam trajes brancos com um cordão vermelho na cintura, porém quando partiam em missões, se camuflavam entre a multidão, misturando-se principalmente com mendigos nas cidades da Síria, Mesopotâmia, Egito e Palestina. Costumavam viver nas cidades esperando ordens, ao recebê-las, partiam em grupos de três com punhais e lâminas escondidas para realizar o trabalho em diversos locais como mercados, becos, mesquitas, seja infiltrando-se em palácios ou no meio da multidão. Até mesmo Saladino foi ameaçado de morte, quando um punhal foi deixado pelos assassinos em um dos seus quartos.
Parte da doutrinação dos assassinos consistia em serem levados para jardins, ainda jovens, para serem entorpecidos e ficarem diante de virgens, fazendo-os assim acreditar que aquilo os aguardava na pós vida. A ordem liderada por Hassan ganhou uma enorme fama em pouco tempo e se tornou temida pela maior parte das figuras importantes na época. Em 1090 eles já haviam capturado a fortaleza de Alamut que se tornou o centro de operações dos Assassinos. Seus métodos e fidelidade ao mestre eram assustadoras, possuindo pouco mais de 60 mil membros, Hassan, durante uma visita, chegou ao ponto de demonstrar a devoção dos seus seguidores ordenando que um deles cometesse suicídio, sendo assim feito.
Nenhuma Realidade é Absoluta, Tudo é Permitido
Vladimir Bartol foi um escritor esloveno que tinha interesses em psicologia, biologia e pintura. Seus estudos contemplavam as obras de Nietzsche e Freud, ele também estudou em Paris e fez parte do Sloven Partisans, um dos maiores grupos que lutavam contra o avanço nazista durante a Segunda Guerra Mundial. Bartol iniciou a concepção de seu mais famoso livro em Paris, quando conheceu o crítico de literatura esloveno Josip Vidmar que lhe apresentou a história de Hassan ibn al-Sabbah. Outra fonte de inspiração foi a morte de Alexandre I da Iugoslávia durante um atentado realizado pelo grupo antifascista TIGR.
Seu livro, Alamut, foi publicado em 1938 na Eslovênia e apenas em 2004 recebeu uma tradução para o inglês. Infelizmente não existem versões em português. A obra de Bartol apresenta o histórico personagem Hassan em sua guerra pela destruição do Império Seljúcida, que seguia a parte sunita da crença islã, um inimigo natural da Ordem dos Assassinos, que eram xiitas. A história acompanha a vida do jovem ibn Tahir, que foi enviado pela sua família para servir Al mualim (O Mentor, nesse caso, Hassan). Diversas características da vida de um haschichiyun são abordadas, partindo da lobotomia feita nos jardins até a crença cega de que a morte o levará ao paraíso para encontrar os Houris, seres desprovidos de vontade e em tenra idade que faram companhia durante a vida eterna, essas entidades também podem ser interpretadas como as 72 virgens que aguardam os shahids (mártires).
Críticos apontam que Vladimir Bartol escreveu sua história como uma alegoria da TIGR, o grupo lutava contra o avanço do Fascismo Italiano sobre o território Iugoslavo e Áustria-Húngaro e era cotado como um dos mais fortes e influentes movimentos na época. Bartol também declarou sarcasticamente que seu livro era uma homenagem à Benito Mussolini. Embora tenha tido pouco impacto na América, o livro foi importante na Europa e foi uma das grandes contribuições que o autor teve em sua vida, conseguindo mais tarde ser aceito na Academia de Artes e Ciências Eslovena.
Nada é Verdade, Tudo é Permitido
Assassin’s Creed é um jogo de ação e aventura de ficção histórica e mundo aberto, produzido pela Ubisoft Montreal e foi lançado em 2007 para Windows, PlayStation 3 e Xbox 360. Produzido por Jade Raymond e escrito por Corey May, o jogo surgiu quando a diretora criativa Patrice Désilets estava trabalhando em um novo Prince of Persia, porém o jogo estava tão diferente além de não possuir o protagonista de sempre que a Ubisoft resolveu fazer desse projeto uma nova IP (Intellectual Property).
O jogo se passa durante a Terceira Cruzada na Terra Santa em 1191 na qual a Ordem dos Assassinos, liderada pelo Al mualim Rashid ad-Din Sinan, é o foco central do enredo. São dois protagonistas, durante a Cruzada o jogador controlará o Sírio Altair-Ibn-La’Ahad em sua jornada pelo assassinato dos Templários, já nos tempos atuais o controle fica sobre Desmond Miles, um barman que foi sequestrado pela Indústrias Abstergo para que sua memória genética fosse explorada através de uma máquina chamada Animus. Assassin’s Creed apresenta vários personagens históricos conforme Altair avança em sua missão de assassinar nove Templários, não obstante as cidades históricas de Jerusalém, Acre, Damasco e a Fortaleza de Masyaf são reconstruídas com fidelidade e beleza.
Este primeiro game da série foi a porta de entrada da Ubisoft para ser tornar uma das maiores empresas de jogos atualmente, a pesquisa envolvida no processo de recriação das locações e dos personagens históricos é impecável e permanece incrível até os últimos jogos, sendo um exemplo de construção de mundo. Assassin’s Creed também é considerado por muitos o que possui melhor enredo e desenvolvimento, apesar de ter a jogabilidade mais fraca. A crítica especializada foi em sua maioria positiva, elogiando o sistema de parkour inovador e a inteligência artificial dos NPC’s, mas apontou muitos erros no controle de câmera e combate. O jogo tem uma média de 81 de 100 no Metacritic e conseguiu vários prêmios de melhor jogo de ação e aventura durante a E3, toda essa boa recepção garantiu uma sequência (várias) e alçou a Ubisoft no mercado, fazendo dela atualmente uma das empresas mais importantes e ricas do segmento.
Mais Assassin’s Creed?
A franquia já está gigantesca, acumulando nove títulos principais e doze jogos menores, além de ter adaptações para livros e um filme em produção e parece que a Ubisoft não sabe a hora de parar. Por outro lado, seu produto de maior sucesso é responsável por grandes mudanças na mídia e ofereceu a oportunidade de ensinar história e levar os jogadores para locais desconhecidos e importantes da evolução humana, criando a chance de ensinar e divertir ao mesmo tempo tantas pessoas. Seria esse o legado de Vladimir Bartol? Mal sabe ele, mas sua obra é responsável por uma franquia cada vez maior que continua crescendo e nos fazendo vivenciar fatos históricos incríveis.