Com quase meio milênio de existência e abordando um importante pilar da cultura chinesa que tem mais de mil e quinhentos anos, o clássico Jornada ao Oeste é uma das obras mais antigas e famosas da Literatura Chinesa. Com influências em várias áreas humanas, consegue exercer poder até hoje em franquias como Dragon Ball e em jogos como o subestimado Enslaved: Odyssey to the West.
Contexto e Possível Autoria
Entre as muitas dinastias que governaram as terras que o Ocidente chama de China, Jornada ao Oeste foi escrita e publicada durante uma das mais famosas eras, considerada por alguns como o ápice da estabilidade social, a Dinastia Ming. Este império durou 276 anos, num período de 1368 até 1644 e realizou notáveis mudanças como um novo sistema tributário, incentivo às comunidades rurais, evoluindo para um sistema autossuficiente que gerou uma produção excedente fortalecendo o comércio exterior com Portugueses, Espanhóis e Holandeses. Além disso, o exército Ming era constituído pelo total de um milhão de soldados, a Cidade Proibida foi construída e houveram grandes mudanças na filosofia social e política.
No meio desse grande período histórico surgiu a obra Journey To The West em 1592, de autoria debatida até hoje. Mais comumente apontada como obra do escritor e poeta Wu Cheng’en, muitos historiadores contestam a justificativa que foi defendida pelo filósofo e diplomata Hu Shih no século XX, tendo dito que o povo da cidade de Wu Cheng’n lhe atribuirá a autoria. Além disso, historicamente o livro é considerado como obra dele, fato culturalmente aceito e repassado desde então.
E quem foi Wu Cheng’en? Nascido entre 1500 e 1505 na província de Jiangsu, Wu puxou seu pai Wu Riu no gosto pela literatura e gostava dos textos clássicos, histórias populares e anedotas. Ele fez os Exames Imperiais para trabalhar no serviço civil como Mandarim, uma espécie de servidor público, mas não passou em todas as vezes que tentou. Também não conseguiu entrar facilmente na Universidade Imperial em Nanjing, tendo sucesso apenas quando chegou na meia idade. Eventualmente ele abandonou seu trabalho como Oficial Imperial e se isolou, provavelmente passando o resto da vida escrevendo. Sem posses ou herdeiro, Wu Cheng’en viveu desapontado com a corrupção do mundo e a situação política do Império, passando o resto da vida como um eremita.
Um Livro, Um Fato, Uma Lenda
Jornada ao Oeste possui profundas características da cultura chinesa, abrangendo conceitos religiosos, mitologias, budismo e taoísmo. Sua importância lhe coloca como um dos Quatro Grandes Romances Clássicos, as obras mais relevantes da era pré-moderna chinesa, estando entre as mais longas e antigas histórias do mundo. Sua história conta a jornada de um personagem real chamado Xuanzang, um monge budista que nasceu em 602 e protagonizou a famosa Jornada ao Oeste.
Xuanzang viveu no período da Dinastia Tang e além de monge era tradutor, acumulando cerca de 1330 adaptações de textos provenientes da Índia. Com apoio do imperador ele fundou um departamento de tradução em Xi’na que recebia colaboradores e estudantes de toda Ásia Oriental. Mas seu grande feito foi quando iniciou sua peregrinação para Índia, em 629, ao perceber que os textos Budistas que a China possuía estavam incompletos e com erros de tradução. Sua jornada acabou em abril de 645, quase 16 anos depois, com seu retorno para China em poder de inúmeros textos em sânscrito que renovaram e aumentaram o acervo de literatura Budista no país. Esta jornada se tornou um marco de grande importância histórica, sendo contada de geração em geração, ganhando aos poucos traços míticos com inserções aqui e ali, até se tornar a lenda que é hoje. Quando supostamente Wu Gheng’em escreveu o livro, Xuanzang não era mais aquele monge histórico, mas um personagem heroico que completou uma missão dada pelo próprio Buda.
A versão literária escrita quase mil anos depois conta a história de Tang Xuanzang em sua jornada para Índia, além de ter como ajudante o homem-macaco Sun Wukong (Son Goku em japonês, e é isso mesmo que você está pensando.), também chamado de Rei Macaco, um ser nascido de uma rocha mística formada pelas forças do caos, localizada na Montanha das Flores e Frutas. O Rei Macaco pode controlar os cinco elementos, possui 72 transformações além de diversos outros poderes como voar sobre uma nuvem (onde mais você viu isso?). O romance tem 100 capítulos divididos em quatro partes, sendo o primeiro uma apresentação da trama com foco no Rei Macaco, sendo apenas na segunda parte que Xuanzang aparece e a grande jornada começa. A terceira e maior parte, aborda a volta de Xuanzang para China, saindo do templo Leiyin, na Índia e passando por diversos desafios como encontros com demônios e outros monstros.
No Brasil, a Conrad Editora anunciou que o livro seria lançado em três partes, a primeira saiu em 2008 e a segunda em 2010, mas infelizmente a última parte foi cancelada pela editora. Jornada ao Oeste é uma importante obra para história do mundo e como a Ilíada de Homero moldou muitos aspectos de nossa cultura Ocidental, este livro fez o mesmo no Oriente. Sua marca está até hoje em filmes, livros, mangás e jogos e é leitura obrigatória para amantes dessa cultura tão rica e que influencia cada vez mais o lado de cá do mundo.
Enslaved: Odyssey to the West
Lançado em outubro de 2010 para PlayStation 3 e Xbox 360, com uma versão para Windows apenas em 2013, é um jogo de ação-aventura em plataforma e foi desenvolvido pela Ninja Theory, conhecida pela nova versão de Devil May Cry, chamada DMC e Heavely Sword. Foi produzido na famosa Unreal Engine 3 e lançado pela Bandai Namco.
Enslaved: Odyssey to the West é uma reimaginação do livro Jornada ao Oeste e foi escrita por Alex Garland, um famoso romancista e produtor de filmes como Ex Machina e Não Me Abandone Jamais. A história se passa 150 anos no futuro em um cenário pós-apocalíptico causado por uma grande guerra mundial, onde boa parte dos humanos desapareceu, restando apenas as máquinas, chamadas Mechs, para reinar. O personagem principal, Monkey, interpretado pelo conhecido Andy Serkis, acorda na cela de um navio que leva humanos escravos para algum lugar. Ao tentar fugir, ele causa um acidente e o navio bate, em meio ao caos ele encontra uma mulher chamada Trip que lhe nega ajuda e Monkey quase morre durante o naufrágio. Após recobrar a consciência, o protagonista descobre que Trip lhe colocou uma espécie de colar do escravo, um artefato tecnológico que o obriga a seguir suas ordens. O que ela quer? Que Monkey a proteja em sua jornada até a vila onde seu pai está.
Como um dos primeiros jogos que colocou a Ninja Theory nos holofotes, Enslaved conseguiu ótimas notas e muitos elogios da crítica especializada. Os cenários coloridos e vivos, cheios de natureza os invadindo cria uma visão diferente e renovadora do gênero que comumente se perde em características sombrias e melancólicas, resultando em um jogo lindo e vibrante. A atuação de Andy Serkis na captura de movimentos obviamente recebeu muitos elogios, assim como a captura de áudio e a interação entre os personagens. O roteiro e enredo foram apontados como um importante passo para a mídia, apresentando uma abordagem madura e muitas vezes ambígua dos personagens. O jogo recebeu 8 de 10 da IGN e GameSpot e possui um Metacritic de 82 de 100. Embora um sucesso de crítica, o jogo vendeu cerca de 460 mil cópias em 2010 contra os esperados 1 milhão da desenvolvedora, chegando a 730 mil em 2011, logo considerado um fracasso de vendas, a Bandai Namco cancelou sua sequência e o futuro da série ainda é incerto.
Um Legado Milenar
Sendo escrito ou não por Wu Gheng’en, Jornada ao Oeste ultrapassou a importância de sua origem para se tornar um aspecto de nossa sociedade, hoje indissociável de sua cultura, ultrapassando fronteiras e se aproximando cada vez mais do mundo Ocidental. Essa importância é notada nas várias vezes que é referenciada em diversas franquias e produtos comerciais, servindo como base para tantas histórias, logo o esforço de tentar conhece-las é importante e necessário. Enslaved: Odyssey to the West não é uma exceção, suas raízes na cultura chinesa são fortes e o enredo que reimagina a jornada traz a história por um viés mais relevante e instigante, aplicando conceitos importantes e atuais da nossa cultura.