“As adolescentes são minhas novas heroínas”, afirma a escritora Aline Valek em seu recente artigo para a revista Carta Capital. Em seu discurso, ela enaltece as virtudes de uma nova geração de jovens mulheres cientes de seus direitos e do poder de suas vozes. Em certo ponto ela cita a protagonista da trilogia Jogos Vorazes – Katniss Everdeen – e quão representativo é termos uma adolescente – uma mulher – como a cara de uma revolução contra um governo ditatorial e cruel.
Comecei a leitura de Jogos Vorazes a pedido do Lucien (afinal ele é o chefe da bagaça toda e aí de mim se falar “ain, naum quero, mim dêxa”!). Não, nunca havia me interessado pelos livros, apesar do sucesso dos filmes – para os quais só dei uma olhada despretensiosa. Explico: eu já carregava um histórico de decepções com trilogias e séries. Por isso, me desviei com uma habilidade digna de Matrix da maior parte das discussões, comentários e spoilers sobre os livros. Pois bem… Devorei a trilogia em cerca de duas semanas, entre várias xícaras de café e pequenas pausas para recuperar o fôlego.
Escrito por Suzanne Collins, a trilogia “Jogos Vorazes” conta a história de Katniss Everdeen, uma adolescente taciturna que mora no miserável Distrito 12. Anualmente, dois tributos de cada Distrito são escolhidos para participar dos Jogos Vorazes, uma competição em que essas crianças e adolescentes lutam até a morte. Os Jogos existem para punir os Distritos pela rebelião ocorrida anos antes contra a Capital e lembrá-los de sua impotência diante disso. Minha ideia inicial para esse artigo era falar sobre a Katniss e o quanto ela quebrou minhas péssimas expectativas, fugindo do estereótipo da “personagem feminina forte”.
Acontece que o livro é recheado por mulheres igualmente incríveis que, em certa medida, contribuíram na construção do mosaico que é Katniss. Então, por favor, me permita falar sobre essas mulheres que, de alguma forma, também são o Tordo.
Katniss Everdeen
O que falar sobre essa personagem que mal conheci e já considero pacas? De verdade, quando me deparei com a “mocinha durona” ladeada por dois admiradores logo pensei: “Lá vem merda”. Você deve conhecer a tal da personagem feminina forte – aquela mulher que jamais perde a chama vital da luta, ignora seus próprios sentimentos e parte para a porrada a cada duas páginas enquanto se debate em um estranho triângulo amoroso. Pois é… Katniss não é nada disso. Ela nunca quis lutar. Ela desejava viver “em paz” no Distrito 12 pelo resto dos seus dias, sem jamais questionar a Capital. Ao mesmo tempo, ela é uma sobrevivente de guerra – de várias guerras! – e como acontece aos sobreviventes, cicatrizes vão se acumulando de tal forma que, em determinado ponto, você não é mais a pessoa que via antes diante do espelho, mas alguma coisa mal costurada, nunca perfeitamente encaixada.
Desde que comecei a ler os livros já ouvi comentários do tipo “Ela fica tão chata, sempre chorando pelos cantos!” (Se você é uma dessa pessoas, eu super te recomendo a leitura do artigo “O mundo contra as mulheres neuroatípicas” da Alissa Moe). Para tudo! Depois de sobreviver a duas (eu disse DUAS!) edições dos Jogos Vorazes, ter matado pessoas e visto outras serem assassinadas de maneiras horrendas, ser jogado em uma rebelião da qual você sequer sabia, ser eleito símbolo de uma guerra não exatamente por vontade própria, ver seu Distrito se transformar em cinzas e viver coagido por um velho louco, duvido que você não vivesse vestindo as calças pelo avesso e saísse gritando que é a reencarnação de George, o Rei da Floresta. O declínio emocional de Katniss me soa muito verdadeiro. Ela é a “garota em chamas”. E quanto mais ela luta, quanto mais suas mãos ficam sujas de sangue, mais o seu fogo vai se apagando. Os pesadelos nunca irão abandoná-la. A dor nunca vai abandoná-la. Mas, como a fênix, Katniss é consumida pelo fogo e dele renasce.
Primrose Everdeen (Prim)
O querido patinho de Katniss, Prim é o estopim da história. No momento em que é selecionada como tributo – aliás, em sua primeira participação nas seleções, porque desgraça pouca é bobagem – Katniss se prontifica a substituí-la, em um raro caso de tributo voluntário. Se existe alguém por quem Katniss verdadeiramente luta é por sua irmã. No intuito de manter Prim segura, ela segue em frente, para além de suas forças. Mas, se no primeiro livro Prim é uma garotinha assustada e acuada, as reviravoltas na vida de sua irmã e a posterior revolução dos Distritos contra a Capital fazem o patinho se tornar um leão. Prim não é uma lutadora – suas mãos são feitas para curar, algo que ela faz com uma paciência e habilidade únicas. Ela é doce, compreensiva e sábia. Primrose faz parte daquele seleto grupo de pessoas que melhor escuta que fala, e isso lhe dá a vantagem da observação. Conseguindo se afastar para observar melhor o todo, a garota tem verdadeiros insights sobre o que realmente acontece – sobre quem, de fato, é o inimigo e qual o tipo de fogo que anima as pessoas ao seu redor. Gostaria de ter lido mais páginas sobre a Prim – como foi a guerra aos olhos dela, os seus sentimentos, o que a fazia seguir em frente. É uma personagem pela qual desenvolvi imenso carinho.
Rue
A pequena Rue, tributo do Distrito 11, teve enorme influência sobre as decisões que Katniss tomou após sua primeira participação nos Jogos Vorazes. Foi ela quem apresentou à Katniss a canção do Tordo, usada no Distrito 11 para anunciar o fim de um dia de trabalho. Rue é a paz. Rue é a esperança. Rue é a canção dos tordos ecoando pela floresta, indicando que sim, o dia foi longo e cansativo, mas acabou, e agora podemos nos reunir e conversar e sonhar um pouco com dias melhores. Como você encara uma criança que é atirada na cova dos leões para morrer, tudo na intenção de entreter uma plateia fútil e vazia? Apenas para manter girando as engrenagens de um sistema opressivo e violento? É essa a questão que a presença de Rue nos Jogos Vorazes levanta. Quem protege essas crianças contra o “pão e circo” diário? Que mecanismos nós temos para permitir que elas vivam uma infância sem medos e traumas? Durante os três livros, a sorridente e plácida imagem de Rue reaparece para Katniss, lembrando que violência pune, em primeira instância, os bons e os inocentes.
Cressida
Em primeiro lugar, eu preciso confessar algo: eu shippo Katniss e Cressida. Sou dessas. E shippo ainda mais depois da cena que elas protagonizaram por esses dias.
Ok! Parei! Voltando à Cressida, à princípio eu fiquei bastante em dúvida sobre o potencial da personagem. Cressida é uma rebelde que até pouco tempo vivia no conforto e no luxo da Capital – nada mais que uma mera expectadora dos Jogos Vorazes. A primeira impressão que ela me passa é de uma mera assistente um tanto geniosa, que não está lá muito acostumada a ser rechaçada. Tudo muda quando Cressida vai a campo. Ela é aquele tipo de mulher capaz de extrair o melhor dos outros, pois consegue dar às pessoas o espaço e o incentivo de que elas precisam. Cressida desvenda quem é a Katniss verdadeira e se deixa inflamar por suas crenças. Acima de tudo, sabe qual o seu dever: nenhuma palavra, nenhum close e nenhuma sequência de luta escapa das mãos de Cressida. Ela é capaz de ir ao inferno e contrariar todas as ordens para mostrar ao mundo quem é o Tordo, pelo que e como ele luta.
A Metáfora do Tordo
Quando pensamos no Tordo, nos Jogos Vorazes e na Rebelião dos Distritos, não é sem sentido pensarmos, por consequência, em Katniss. Mas quem é Katniss? Quem é o Tordo senão a soma de todas as pessoas que direta ou indiretamente lhe deixaram marcas? O Tordo é um símbolo – é tudo de melhor que sobrevive ao caos, contra qualquer expectativa. A coragem. A pureza. A esperança. Katniss é um indivíduo único e, ao mesmo tempo, a soma de todos os indivíduos que lhe cercam. A soma dessas mulheres maravilhosas, suas grandes aliadas.
Daqui a pouco uma legião de pessoas vai lotar os cinemas para assistir ao último filme da sequência. Eu não sei o quanto vão suavizar para a Katniss, mas eu quero que você lembre que a guerra e as catástrofes marcam as pessoas. Não necessariamente para torná-las mais fortes e capazes. Na verdade, na maioria dos casos, para torná-las mais sensíveis, fragéis e, quiçá, mais empáticas. Isso não é uma vergonha. Isso não é fraqueza. Porque, acima de tudo, o Tordo sobrevive!