Meu primeiro contato com As Brumas de Avalon, obra de Marion Zimmer Bradley, não foi com os livros, mas com o filme: um conjunto de dois VHS (na época em que filmes grandes precisavam dessa divisão XD) que minha tia alugou para assistirmos. Minha primeira impressão sobre Morgana, “A Fada”, foi de que ela era uma personagem fraca e ambígua. Bom, foi a opinião de uma adolescente que, vendo um filme com mulheres tão poderosas, sentiu alguma irritação por notar a história tão focada na paixão de Morgana por Lancelot. Hoje, como uma apaixonada pela quadrilogia – e por Morgana – posso dizer que ela é sim ambígua – multifacetada até – mas nunca, jamais, fraca.
As Brumas de Avalon contam as lendas arturianas sob um ponto de vista diferente: o de Morgana, irmã mais velha do rei Arthur, normalmente pinta nas lendas como uma feiticeira cruel. Filha do primeiro casamento de sua mãe, Igraine, Morgana não recebeu bem a chegada do irmãozinho. Até o momento em que percebeu que em meio à paixão pelo segundo marido, a mãe os abandonara à própria sorte.
Ele berrava, e eu, pegando-o no colo, limpei-lhe o queixo com meu véu. Cortara o lábio nos dentes – creio que tinha, então, uns oito ou dez – e continuou gritando e chamando minha mãe,que não veio. Sentei-me no degrau, aninhandoo, e Artur, envolvendo-me o pescoço com os bracinhos, enterrou a cabeça em meu peito e soluçou até dormir. Ele me pesava no colo, seu cabelo era macio e úmido, estava úmido também em outro lugar, mas não me importei muito.Pela maneira como se agarrava a mim compreendi que, em seu sonho, havia esquecido que não estava nos braços da mãe. Pensei: “Igraine esqueceu-se de nós dois, abandonando-o como me abandanou. Agora, creio que tenho de ser sua mãe.”
Quando Morgana está alcançando a adolescência é visitada por sua tia Viviane, Grã Sacerdotisa de Avalon. Percebendo que a sobrinha tinha o dom da Visão e que era rechaçada por sua “estranheza”, Viviane decide levá-la para a ilha de Avalon, para se tornar uma sacerdotisa da Deusa. Apesar do choque de realidade, Morgana enxerga naquela ilha o verdadeiro mundo ao qual pertence.
(…) ah, Morgana, que bom se você fosse minha filha, mas mesmo assim, eu não poderia poupá-la, terei de usá-la com as finalidades para as quais eu mesma fui usada… – Inclinou a cabeça, pousando-a por um momento no ombro da menina. – Morgana, eu a quero muito, mas haverá um momento em que você me terá tanto ódio quanto me tem amor, agora.
Morgana caiu impulsivamente de joelhos:
– Jamais – murmurou. – Estou nas mãos da Deusa… e nas suas.
Permita ela que você nunca se arrependa dessas palavras…
Durante boa parte de sua vida, Morgana terá dois poderosos pesos em suas decisões: de um lado a tia Viviane, que deseja acima de qualquer coisa perpetuar o modo de vida de Avalon e garantir sua continuidade, vendo nos sobrinhos essa possibilidade; e do outro o irmão Arthur, pressionado de um lado pelo povo de Avalon para lutar sob a bandeira do dragão pagão e, do outro, pelos reis aliados, para lutar sob a benção do Cristo. O crescimento de Morgana nesse mundo dividido é incrível. Pequena e séria, Morgana vai aprendendo a conduzir suas emoções com a mesma perícia com que conduz seus encantamentos. Mesmo não concordando com os métodos de sua tia, Morgana também deseja proteger Avalon. Como todas as mulheres da ilha, ela se percebe livre e senhora de si. Ao mesmo tempo, se questiona até que ponto vai a sua liberdade, até que ponto suas escolhas são realmente suas ou foram influencias por outras pessoas. Vemos uma Morgana que experimenta as consequências de suas decisões, que deseja jamais tê-las tomado mas, dos muitos personagens que percorrem a história, ela é – de longe – uma das mais fieis às próprias crenças.
Morgana nos lembra do peso de nossas decisões não apenas em nosso futuro, mas para nós enquanto pessoas. Ela traz à tona questões como o poder e a sabedoria femininas, a fé na intuição e nos próprios propósitos. Nem heroína nem vilã, ao longo da vida ela se vê tomando ações que considerou jamais ser capaz. Sua capacidade de rever os próprios conceitos e se adaptar, sem perder a sua essência é invejável. Morgana nos relembra a roda da vida: as coisas vão e vem em épocas distintas e, em épocas distintas, caberá a nós saber de que forma iremos enfrentá-las. Vista como fada e feiticeira, Morgana é – acima de tudo – uma mulher. E como tal, nos ensina sobre o amor e o tempo.
– Mas é você realmente, é você, Morgana… Voltou para mim. . e está tão jovem e bela…sempre verei a Deusa em seu rosto… Morgana, você não me deixará de novo, não é?
– Nunca mais o deixarei, meu irmão, meu bebê, meu amor…