[Coluna] Quando a literatura salva: uma reflexão sobre o bullying

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Pensei em várias formas de começar  esse texto. Já tentei outras vezes no meu próprio blog que mantenho há 8 anos e também pensei em não escrevê-lo. Abandonei a ideia e cá estou, pois nos últimos tempos venho remoendo certas lembranças, e me perguntando… por quê?

Sei que não é sábio tocar nas feridas que o tempo deixa marcado na nossa história, mas existem aquelas que não cicatrizam, mesmo que a gente as tenha esquecido momentaneamente, uma doce ilusão. Cada um tem um fardo a carregar, uma dificuldade que nunca superou. Parece uma maldição que nos persegue…

Hoje, acho muito difícil encontrar alguém que não tenha ouvido falar do termo bullying, uma palavra inglesa cujo prefixo bully significa “valentão”,  esse termo hoje nos chega para identificar um tipo de comportamento agressivo e repetitivo muito percebido nas escolas e até em ambientes de trabalho. Sofrer bullying é uma experiência desagradável, geralmente a vítima, a pessoa “mais fraca ou diferente” do grupo social em que está inserida é alvo de escárnios, xingamentos, quando não é agredida fisicamente.

bullying-teensDos meus anos de ensino fundamental até o ensino médio, nove deles passei sendo vítima do bullying. Não foram nove dias, nem nove semanas, foram nove anos desde quando tudo começou. Lembro-me muito bem quando eu estava na segunda série do fundamental e recebia provocações de um menino de outra turma. A coisa ficou mais sinistra na terceira série, quando outro garoto achou que eu era o melhor alvo para descontar o seu ódio (certa vez eu estava na casa dele, era amiga da sua irmã, e o menino soltou o cachorro dobermann para me atacar, corremos para o quarto ou banheiro). Fora que ele adorava me atazanar por onde me via e isso durou anos, até adolescência.

A adolescência, para mim, não foi uma fase tranquila, não que eu tenha dado trabalho aos meus pais, me refiro a um sentimento de revolta que eu guardava dentro de mim. Meu ciclo de amizade se limitava em uma ou duas amigas. Hoje eu entendo que eu evitava as pessoas para me proteger. Lá fora eu era bombardeada, dentro ou fora do colégio, as pessoas, principalmente os garotos, me viam como um alvo frágil e aberto para seus xingamentos, questionavam principalmente minha sexualidade, abertamente, na frente de outros colegas, me levando ao constrangimento, fosse o que fosse, eu sabia que não devia nada a essas pessoas, mas tudo aquilo me abalava emocionalmente, me levou a ser uma adolescente muito insegura, entrei em depressão. Tive 6 ou 7 anos de insônia.

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O bullying pode destruir a vida da vítima, essa agressividade descabida, irresponsável e gratuita acaba com muitos sonhos e vidas no mundo inteiro. Eu várias vezes pensei que eu não deveria estar ali, ouvindo impropérios, enquanto os algozes se divertiam diante do meu sofrimento e lágrimas, sim, eu chorava, porque estava cansada, porque a culpa sempre era a minha por não aceitar a agressão calada. Certa vez ouvi da coordenadora do colégio “Não posso fazer nada, é a opinião deles” ou “Eles falam porque você responde.” Fiquei sem reação e percebi que estava sozinha, numa guerra silenciosa. Tive medo, muito medo nos anos que se seguiram enquanto eu frequentava o colégio. Rezava para me tornar invisível ao entrar na sala de aula, mas “eles” sempre me notavam e tinham um comentário desdenhoso a fazer. A diversão deles era me ver constrangida e a perseguição ultrapassou a sala de aula, se topasse com eles na rua, eu já tinha um calafrio. Infelizmente, eu não tinha como mudar de colégio ou de cidade, então tive de aguentar até aonde desse.

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Foi assim que aos 20 anos cai numa depressão agressiva, depois de ter terminado o ensino médio. Uma somatórias de coisas me acertou em cheio no estômago e eu cai, de lá, do fundo do precipício achei que nunca mais iria sair, até minha sanidade mental ficou abalada. Minha única esperança era a literatura, de algum modo, eu havia me apegado muito a um projeto que havia começado dois anos antes, mas eu tinha perdido o gosto pela leitura e a história sobre a pequena Rheita tinha ficado adormecida. Nesse meio tempo, eu procurei ajuda, e ela foi essencial para eu voltasse a escrever, talvez ela tivesse mais certeza do que eu que a literatura me salvaria. No meu blog pessoal, tenho uma citação de Ignácio Loyola Brandão, um trecho diz o seguinte: “A literatura é uma bóia de salva-vidas. Um escaler.”  Hoje acredito que a literatura me salvou, foi aquela mão bendita que se estendeu para mim no escuro, seja quando eu estivesse descobrindo as palavras virgens no papel em branco, seja aquelas sopradas em histórias por outras mentes criadoras, inconstantes e incansáveis.

Ao refletir sobre o tema desse texto, pensei em histórias que tratam o tema bulliyng dentro de seu universo. J. K. Rowling fez isso em Harry Potter, o odioso Draco Malfoy é o retrato do valentão (bem covarde, diga-se de passagem). Logo no primeiro livro da série ele solta um “Cabelo ruivo e vestes de segunda mão, só pode ser um Weasley.” Já é uma deixa do seu ar desdenhoso.  Quem leu O Nome do Vento e O Temor do Sábio de Patrick Rothfuss, sabe que o protagonista da aventura, nosso querido Kvothe, tem sérios problemas por conta de Ambrose, um lordezinho mimado que resolve dificultar sua estada na Universidade.

Autores nacionais, como Nanuka Andrade também aborda o tema no seu infanto-juvenil O Ladrão de Destino (você pode ver um comentário que eu fiz sobre o livro aqui, que será relançado pela editora Novo Conceito). Quando eu o interpelei sobre a escolha do assunto, ele respondeu o seguinte:

Acho que porque é um tema muito recorrente. E comum na fase escolar. Talvez porque também vi colegas passarem por isso., e ainda deu uma palavra de apoio para quem sofre com o bullying: Para aqueles que sofrem com o Bullying, entendam que ser diferente ou agir de maneira incomum à maioria, não significa ser menor ou pior. Isso mostra o quão especiais são por fazer exatamente o que todos estão acostumados a ser ou a fazer. Somos plurais. Ninguém é igual a ninguém. E tenha certeza de que se isso incomoda é porque muitos daqueles que os agridem gostariam de ser como vocês ou ter a coragem de agir como vocês.

No romance de Nanuka, a protagonista Mayumi sofre agressões físicas e verbais, ao ponto de algo mais complicadoporque-indiana-joão acontecer (leiam o livro). Outro autor muito conhecido por suas video-resenhas no canal Cabine Literária,  é o Danilo Leonardi, ano passado ele publicou seu primeiro livro pela Giz Editorial  intitulado Por que Indiana, João?. Ele me falou um pouco sobre o motivo que o levou a escrever sobre o tema no seu primeiro livro:

Escrevi sobre bullying em “Por que Indiana, João?” porque acredito ser um tema importantíssimo de ser tratado pela perspectiva de um brasileiro. O bullying que é cometido em outros países tem outra cara e não gera empatia com quem tem problemas por aqui. Eu mesmo sofri bullying na escola e percebo o quanto é importante discutir esse assunto quando dou palestras para o ensino médio. E também pedi para que deixasse um recado para quem passou ou passa por situações constrangedoras: Encontre um adulto que você confie para contar seus problemas. É importante resolver essa questão rapidamente pra evitar traumas futuros. A escola é só a pontinha do iceberg de uma vida cheia de experiências, então não vale a pena sofrer calado pra tentar ficar bem com pessoas mal intencionadas e que na vida real não importam pra você.

Eu bem teria gostado de ouvir essas palavras no meu tempo de colégio, de saber que há pessoas que poderiam se compadecer e entender o sofrimento. Mas no meu tempo o bullying, configurado como uma agressão, era uma novidade para os profissional da educação no início dos anos 2000. Então não havia nenhuma metodologia que prevenisse esse tipo de comportamento nas escolas. Hoje vemos até notícias nos jornais de casos que foram levados a justiça, mas segundo a psicóloga Ângela Maria de Almeida é a prevenção e aceitação das diferenças que vão atenuar o excesso de processos jurídicos. Percebo que há uma movimentação no que se refere a prevenção do bullying no ambiente escolar, mas estamos ainda muito aquém de zerar as estatísticas desastrosas desse mal que gera o suicídio, a depressão e a evasão escolar. Meses atrás houve um caso nos E.U.A. onde um jovem tirou a própria vida após receber um SMS, claro esse foi um último golpe de misericórdia do agressor, e que a vítima já estava muito debilitada psicologicamente.

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Creio que vivemos numa sociedade doente, que se diverte com o dor alheia, e que o bullying é um resultado disso, apenas mais uma raiz da capacidade violenta do ser humano. Falta amor e tolerância. Há ódio por toda parte, inclusive nas redes socais, onde cada um defende sua opinião como se estivesse numa selva disputando pelo único pedaço de carne que sobrou, somente para alimentar o ego.

Pode parecer absurdo, mas se pode tirar aprendizado de tudo isso. Através da dor podemos crescer e nos tornar maiores do que aqueles que vivem apenas para atrapalhar a vida do outro. Hoje, perto dos meu 28 anos sei que minha personalidade foi moldada principalmente pelas dificuldades, não tolero qualquer tipo de preconceito seja homofóbico, racista ou machista. Entendo que todo ser humano tem seus direitos e deveres, e que não se deve depreciar a dor alheia, porque só quem está sentido, entende.

P.S.: Se você leu esse texto agora, é porque resolvi não apagá-lo da caixa de rascunho…rs