O que temos quando a loucura resultante da violência e da guerra, tão explorada nos livros e filmes, é abordada no mundo dos jogos, que tanto a exaltam e a glamourizam, em um enredo sério e crítico? Por pouco não rompendo a dobradinha de jogos mais livros, dessa vez o tema será sobre um das obras mais importantes da literatura inglesa, que criticou a escravidão e o colonialismo, tendo sido adaptado mais tarde para o cinema pelo respeitável diretor Francis Ford Coppola no filme Apocalypse Now. O clássico enredo está de volta, agora nos vídeo games com o jogo Spec Ops: The Line.
Coração das Trevas
Coração das trevas (Herat of Darkness) é um romance de Joseph Conrad escrito em 1899, lançado em três partes na Blackwood’s Magazine e publicado logo depois em formato de livro em 1902. A obra é altamente respeitada pela sua abordagem precisa do psicológico humano e na crítica feita sobre o sistema imperialista, ainda vigente na época, que dominava os países da África e Ásia.
Muitos afirmam que a fagulha da ideia para o livro veio da própria experiência do escritor, o qual passou por uma situação parecida à do protagonista. O autor foi capitão de um navio no Estado Livre do Congo, na época, uma colônia e reino pessoal de Leopoldo II da Bélgica. Após ver uma doença atacar o capitão da embarcação, Conrad assumiu o comando e navegou em busca de Georges-Antonie Klein que ao ser encontrado se juntou ao navio, mas acabou morrendo na viagem de volta. Não obstante, até mesmo Conrad adquiriu a doença e antes do contrato com a empresa terminar ele voltou para casa.
Pontos familiares nessa história se ligam com o enredo do livro, que vai falar sobre Charles Marlow, um experiente tripulante que aproveitando a falta de vento decide contar para seus colegas a história de como ele conheceu o famosos Sr. Kurtz, um chefe de posto famoso e respeitado, sendo muitas vezes até venerado.
A literatura de Joseph Conrad não ganhou reconhecimento durante sua vida, entretanto, foi aos poucos invadindo universidades e colégios. A narrativa simbólica e cheia de metáforas por um lado é curta, mas por outro exige muita atenção do leitor devido ao texto denso e sintético. Ainda que respeitado, Coração das Trevas é uma obra que depreende muito debate entre os críticos, mas que críticas negativas podem ser empregadas neste livro?
Chamado de “local de fala”, é uma condição inerente à pessoa, que vai moldar sua moral e visão de mundo. Chinua Achebe, uma das mais respeitadas figuras da literatura africana, criou extensos debates sobre o livro ao argumentar que a visão do escritor sobre o povo africano é, em suas palavras, ofensivo e deplorável, justamente por mostrar uma visão eurocêntrica da cultura do povo Fang, que vivia na bacia do rio Congo. De qualquer maneira, ambas críticas são válidas, Joseph Conrad não tinha um contexto adequado para falar sobre aquela cultura, no entanto sua obra tem grande influência na literatura ocidental pelos seus debates incomuns para a época. O livro é um marco em nossa sociedade e gerou várias adaptações, como o já citado filme Apocalypse Now, peças de teatro, radionovelas e agora entrou também no mundo dos vídeos games.
A Linha? O Limite?
Spec Ops: The Line é um jogo de tiro em terceira pessoa, lançado em 2012 pela 2K Games e desenvolvido pela iniciante produtora alemã Yager Development. Saiu para Windows, Xbox 360 e PlayStation 3, sendo mais tarde portado para Mac OS X. Embora tenha ganhado certa notoriedade, o jogo é de uma franquia antiga que começou em 1998 com Spec Ops: Rangers Lead The Way, porém nunca se tornou famosa e infelizmente o mais recente lançamento também não mudou isso. Com uma boa recepção da crítica, sua temática e abordagem da violência nos games foi elogiada e considerada inovadora, entretanto, seu gameplay sofreu negativas considerações por falta de fluidez e consistência. No pesar da balança, o jogo ficou com uma média de 08 de 10 entre os especialistas e se tornou uma boa recomendação para os amantes de enredos elaborados.
Para os mais atentos, fica claro o grande número de referências e trocadilhos que o jogo faz com o nome de seus personagens. Situado em Dubai, o mote para a trama vem do evento apocalíptico que torna a cidade em um deserto e força a fuga da maioria dos cidadãos. Neste caos o Coronel John Konrad (união de Joseph Conrad e o personagem Kurtz) e seu batalhão de infantaria dos EUA, de nome Damned 33rd, partem voluntariados até a cidade para ajudar, entrementes o governo Americano suspende o suporte e o grupo é obrigado a voltar, porém não voltam. É nessa preleção que surge a necessidade de que um grupo de elite, o Delta Force, seja enviado até a cidade desertificada em busca dos corpos dos soldados teoricamente mortos.
Sob o comando do protagonista e Veterano Martin Walker (Martin Sheen?), o Delta Force integra também o Tenente Alphanso Adams e o Sargento John Lugo. O jogo começa com o grupo em um helicóptero sobrevoando Dubai quando um segundo helicóptero surge em perseguição deles e após tentarem se manter no ar, sofrem um acidente devido a uma tempestade de areia que engole ambas as aeronaves.
Os desavisados podem pensar que este é um jogo de guerra comum, mas seu destaque se vale pela súbita troca de temática que envereda por uma ideologia muito mais crítica e realista sobre a guerra. Diferindo das tramas repetidas à exaustão, vemos Walker ter de lidar com uma culpa crescente e traumática motivada por mortes desnecessárias, assassinatos, abusos, estupros, crimes de guerra e torturas aplicadas tanto aos inimigos quanto em civis. A sociedade paralela que se forma na locação do enredo é desorganizada e regida pelo mais forte que tem o controle sobre a água, o item mais importante para sobrevivência, e embora ditatorial, consegue adeptos e seguidores. Quem assistiu Apocalypse Now sabe para onde isso vai seguir.
Não sendo todo o conflito externo suficiente, o jogo faz com primazia a construção psicológica dos personagens e toca em pontos concernentes à loucura decorrente de experiências traumáticas sofrida por soldados, explorando a violência de forma brutal, crua e sem floreios, criando o tom adulto e responsável que tanto falta nos jogos atuais que abordam tais assuntos com superficialidade e glamourização. Vemos Walker ter de tratar com um grupo cada vez mais desnorteado com a situação, desesperados e incrédulos com o que foram capazes de fazer, vemos Walker lutar contra a mente e contra o inimigo, ou seria sua mente seu inimigo?
De enredo trágico e cínico, com pitadas de Chuck Palahniuk e seu Clube da Luta, Spec Ops: The Line consegue extrair o melhor da obra de Joseph Conrad e mesclar tudo com o filme de Coppola para produzir uma obra de estilo narrativo escasso no mundo dos games e infelizmente ignorado pelas produtoras que realizam trabalhos cada vez mais populares e genéricos que angariem o maior número de vendas do mercado.
Seja um leitor ávido, um cinéfilo ou um gamer seletivo, não faz diferença, com essa trindade que contempla diferentes mídias, não existe desculpa para deixar de aproveitar uma história marcante e que redefiniu a Literatura, marcou o Cinema e agora figura como uma das mais importares produções do mundo dos jogos.
“Cavalheiros, bem vindos a Dubai”
Capitão Martin Walker, Spec Ops: The Line