Muito já foi dito sobre 50 Tons de Cinza e sua distorção grotesca de uma relação BDSM, além da romantização do abuso, então não vou nem comentar sobre isso. O livro ergue outro ponto ainda mais perigoso e muito menos reconhecido, um cliché quase universal e que raramente é percebido como um problema. Embrenhado no storytelling ocidental existe a tendência de que expressar sua sexualidade abertamente e com frequência é uma característica do personagem desviado: o vilão, o doente, o incomum, o perverso.

50 Tons deixa sinais em sua trama de que a natureza perversa e os desejos não normativos do infame Mr. Gray são resultado de uma criação abusiva. Eu tenho vontade de dar um soco na autora só por causa disso, mas dificilmente posso culpá-la. Está por todos os lados. O Destino de Júpiter, que tive o desprazer de ver essa semana no cinema, tem uma cena de orgia muito ligeira, bonita e sobrenatural, protagonizada pelo vilão dandy e afeminado cujo único objetivo é apontar a natureza hedonista do personagem como um sinal de seu caráter duvidoso.
Mesmo nessas eras de peitinhos gratuitos e cenas de sexo da HBO, vivemos num puritanismo quase debilóide em relação à sexualidade dos personagens que deveriam nos representar na tela e nas páginas. Os protagonistas, os mocinhos, são seres de desejo infantil: tem de ser construído aos poucos, realizado depois de muito esforço e diálogo, de preferência como recompensa após o clímax e arcos de história atribulada.
Ainda é tendência um protagonista tímido, um que hesita em namorar, beijar, se envolver, enquanto o vilão está sempre retratado cercado dos prazeres mundanos com uma menina bonita nos braços. Como se a maturidade e a sensualidade brotasse espontaneamente da personalidade maléfica.

O conservadorismo dos gêneros de ficção e fantasia reforça justamente as pequenas bobagens venenosas da nossa criação puritana que constroem nossas neuras e inseguranças. Quase sempre ele passa desapercebido quando estamos ocupados demais absorvendo a mitologia da trama e sua gravidade fica dissolvida na desculpa de que o mundo é inventado então “não tem problema”. Mas tem. Os mundos fantásticos é onde nós vivemos nosso escapismo, onde encaramos os problemas difíceis da vida real num formato mais simples de se resolver. O que diz sobre nós quando nosso mundo fantástico envolve vencer ou destruir o personagem flamboyant, sedutor, maduro, de expressão de gênero confusa e muitas vezes de pele escura e ancestralidade não europeia?
Hmmm…
Bruno Bettelhein, em A Psicanálise dos Contos de Fadas (editora Paz e Terra), aponta a que os vilões em  fábulas tendem a representar papéis que as crianças desejam para elas mesmas, por isso são reis, rainhas, magos – figuras de autoridade e poder. Vendo sobre esse ponto, a sexualidade madura do vilão é um desejo de nós mesmos de alcançar esse conforto e paz com nossos próprios desejos, mas o protagonista moderno parece nunca realmente chegar nesse ponto. A sexualidade dele é discreta, quieta, romântica, heteronormativa. Baunilha. Direcionada à mesma etnia e cultura. Pontos extras se ele for de classe social superior.
fábulas tendem a representar papéis que as crianças desejam para elas mesmas, por isso são reis, rainhas, magos – figuras de autoridade e poder. Vendo sobre esse ponto, a sexualidade madura do vilão é um desejo de nós mesmos de alcançar esse conforto e paz com nossos próprios desejos, mas o protagonista moderno parece nunca realmente chegar nesse ponto. A sexualidade dele é discreta, quieta, romântica, heteronormativa. Baunilha. Direcionada à mesma etnia e cultura. Pontos extras se ele for de classe social superior.
E nem vamos falar sobre os romances Young Adult. Até agora só vi tramas defendendo o time abstinência, com ou sem bons motivos como guerras e namorados monstruosos. Estou esperando o time sexualidade saudável aparecer em histórias fora do nicho de adolescentes homossexuais.

Claro que há exceções e eu recomendo todas a vocês. Tyrion Lannister é, com certeza, o personagem mais humano, maduro e sábio da Guerra dos Tronos, e em paz com sua sexualidade, sendo bastante ativo e expressivo sobre ela. Em Lost Girl (Showcase, no Brasil Sony Spin) a protagonista bissexual é uma succubus. Agir de acordo com seus desejos é o que ela faz a série inteira, romanticamente dividida entre o policial lobisomem delícia e a médica humana mais delícia ainda. Em momento nenhum a história a pune por isso e a sexualidade dos vilões é o que menos nos interessa. Compartilhe nos comentários os exemplos bons e ruins que você se lembra.
Uma coisa a se considerar quando você estiver escrevendo ou consumindo sua próxima série, filme, livro ou quadrinho: Os valores que o protagonista reflete e obedece são do mundo da ficção ou do lado de cá?
 

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