[Coluna] O Cristal Encantado: a Luz e a Treva que vivem em todos nós

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Num momento da vida em que muitas recordações vêm à tona, hoje vou falar um pouco sobre um dos filmes que mais marcaram a minha adolescência: O Cristal Encantado (no original, The Dark Crystal), dirigido por dois mestres de bonecos, Jim Henson e Frank Oz. O conceito inicial dos personagens foi de Brian Froud, conhecido por livros como Faeries (que eu tinha, emprestei e não me devolveram!) e que, mais tarde, ajudaria Henson e Oz em outro filme emblemático, Labirinto, estrelado por David Bowie.

O Cristal é de 1982 (1) e eu assisti no cinema. Não sei se o lançamento aqui foi no mesmo ano, mas deve ter sido pelo menos próximo, portanto eu tinha alguma coisa como 13 ou 14. Na época escrevia (ou tentava escrever) romances históricos passados no Brasil, ainda não tinha lido O Senhor dos Anéis nem nada que se possa considerar fantasia épica, pelo menos que me lembre. Fui ao cinema com minha irmã, sem esperar muito do filme de animação — e o resultado é que voltei de lá com a cabeça cheia de imagens e sonhos.

O filme — quase todos devem ter visto — se passa, segundo o prólogo, num outro planeta, iluminado por três sóis. O lugar é habitado por duas raças chamadas Mystics e Skeksis, e a tradução brasileira enfatizou a dicotomia entre elas batizando-as de Místicos e Céticos. Os primeiros eram uma raça tranquila, que praticava a magia natural (tinham um xamã, um alquimista, um curandeiro, todo mundo vivendo na paz) e sua representação física era condizente: enormes e velhas tartarugas que entoavam o mantra Om. 11414492_10204492331536180_1879470307_nJá os Céticos eram uma detestável e assustadora sociedade de corte representada por abutres. O planeta contava ainda com uma raça de duendes camponeses, daquele tipo brincalhão e divertido, os Podlings, e com uma de — digamos — elfos, ou duendes aparentemente mais sofisticados, os Gelflings, dos quais restavam apenas um rapaz e uma moça. Isso por causa da perseguição dos Skeksis, já que uma profecia afirmava que os Gelflings iriam restaurar o Cristal há muito tempo quebrado e acabar com seu reino de terror.

Quando o filme começa, a profecia está prestes a se realizar, anunciada pelos três sóis que em breve entrarão em conjunção. O líder dos Místicos morre logo após ter revelado a Jen, o jovem Gelfling que é seu pupilo, que é seu destino “curar” o Cristal. Jen parte em busca do estilhaço que falta, daí 11291245_10204492332296199_1693996278_nse iniciando uma aventura que inclui seu encontro com a outra Gelfling, Kira (um dos momentos mais legais é quando ela revela o porquê de ter asas, ao contrário dele), um ataque à vila dos Podlings, uma visita às ruínas de uma cidade dos Gelflings e várias outras peripécias. O casal é também aliciado – e traído – por um Skeksi caído em desgraça, e cujas interjeições “hmmm! hmmm!” mexeram com meus nervos adolescentes.

E, no meio disso, acontece uma coisa interessante: toda vez que um Místico morre ou mesmo se fere, isso também acontece com um dos Skeksis. Cada qual tem no outro grupo seu correspondente. Espectadores de hoje, acostumados a esse tipo de filme e de aventura, teriam sacado o porquê de cara, mas eu só percebi no final, quando Jen consegue restaurar o Cristal e os Místicos se unem aos Skeksis, cada dupla se tornando um ser único e integral. Assim, eles conseguem transcender a outro plano de existência, deixando aos Gelflings (e aos Podlings sobreviventes) o conselho de viver sua vida sob a luz do Cristal.

É uma ideia simples? É. Funciona? Totalmente. Cinco anos após o lançamento do primeiro filme da série Star Wars, a ideia de Yin e Yang – Bem e Mal como o lado “negro” e “luminoso” da mesma Força (2) – era reforçada de forma ainda mais explícita, contribuindo para que a noção de Equilíbrio substituísse o maniqueísmo puro e simples. Com a partida dos Místicos e dos Skeksis, o planeta fica entregue a raças mais jovens, mais “terrenas”, que vão errar, ter sentimentos negativos e atitudes pouco nobres, mas, em contrapartida, saberão compensar tudo isso. E no fim a Luz prevalece, e o Bem vence o Mal — e espanta o temporal, como dizia uma cantiga num conhecido desenho animado da mesma época (3).

É difícil avaliar até que ponto meu trabalho posterior foi influenciado por esse ou qualquer outro filme. Sou escritora, e, além disso, uma pessoa que é mais de palavras do que de imagens, por isso é mais fácil identificar as obras literárias que me marcaram. Mas a ideia da necessidade de equilíbrio entre as forças, da alternância de Luz e Sombra — e da aceitação da existência de ambas em todas as pessoas –, essa eu creio que dá para perceber na maior parte dos meus textos. Sem falar nas imagens do filme, às quais eu volto de vez em quando para me emocionar e me inspirar para futuros trabalhos.

Enfim, O Cristal Encantado é um filme que recomendo a Místicos e Skeksis. Sabendo com certeza que, embora algumas pessoas se esforcem por provar o contrário, nenhum de nós é apenas um dos dois.

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Referências:

(1) Trailer do filme, de 1982

(2) Um duelo famoso

(3) Vocês lembram, né?