[Coluna] Se Harry Potter não é literatura o que é literatura então?

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A revista Veja certa vez entrevistou Paulo Coelho que na época, se bem me lembro, concorria para a Academiapaulo-coelho_feRUT Brasileira de Letras e já gerava um tremendo bafafá só com a sua possível vitória. Em determinado momento, quando perguntado se gostava de ler Joyce, o atual dono da cadeira 21º da ABL, foi categórico ao afirmar não ter apreciado a leitura de Ulisses. O resultado não poderia ser outro: pessoas com foices e tochas brandavam que este era um motivo mais que justificado para anular a sua possível candidatura.

Em 2013, escrevi um texto aqui no Leitor Cabuloso após a polêmica declaração de Raphael Draccon dizendo que Rubem Fonseca hoje em dia não seria publicado. Enquanto ouvia ao longe, martelos e serrotes preparando a forca, resolvi defender Draccon, da mesma forma que defendi a opinião de Paulo Coelho após ser questionado por amigos. Por que em ambos os casos percebi que os escritores não estava dizendo para não lermos Joyce ou Fonseca. Eles expressavam a sua opinião pessoal a respeito daquele autor. No caso de Draccon, ao afirmar que diante das demandas atuais do mercado Rubem Fonseca teria dificuldade de encontrar uma editora; enquanto Coelho disse que não gostou de ler um livro do James Joyce.

Como falei, nos dois casos, só vejo escritores dando uma opinião e não conclamando leitores para queimarem exemplares numa grande fogueira em praça pública. Gostar ou não de uma obra, seja um clássico ou um bestseller é um direito do leitor. Você pode reconhecer o valor literário da produção de Guimarães Rosa, mas pode afirmar que não gostou de Sagarana.

raphael-dracconE é neste ponto que a declaração de Ruth Rocha me incomoda. E muito! Para quem desconhece o fato, na última segunda-feira (27), a autora que comemora 50 anos dedicados à literatura concedeu uma entrevista ao portal IG e lá afirmou que Harry Potter

(…) não é literatura, isto é uma bobagem. É moda, vai passar.

Na verdade, a declaração é bem contraditória. Ela diz que “a criança pode ler tudo” e que “gosta de Harry Potter por que as crianças leem”, mas que “não gosta de ler Harry Potter”?! Em outro passagem comenta:

Esta literatura com bruxas é artificial, para seguir o modismo. Acho que o Harry Potter fez sucesso e está todo mundo indo atrás.

Para em seguida dizer:

Não acho errado os livros fazerem sucesso.

Contudo, gostaria de desenvolver este texto com base no argumento mais polêmico, na minha opinião, que é considerar Harry Potter como não literatura. Peguemos o que falei sobre Coelho e Draccon mais acima. Eles expressaram as suas opiniões, porém não impossibilitaram que novos leitores chegassem as obras referidas. A maneira – até confusa – que Ruth Rocha se coloca diante da obra de Rowling não soa como mera opinião pessoal. Levando em consideração que ela própria seja autora de literatura infanto-juvenil e tacha outra obra infanto-juvenil de não-literária ao fazê-lo cria uma barreira para que os leitores do gênero não se aproximem de Harry Potter.

Ela não disse que simplesmente não gostou de Harry Potter. Ela afirmou que os livros do bruxinho mais famoso do mundo não pertenciam a categoria literária.

E eis que surge a questão: o que vem a ser literatura? Ruth Rocha coloca na entrevista a sua própria definição:

O que eu acho que é literatura é uma expressão do autor, da sua alma, das suas crenças, e cria uma coisa nova.

Em suma:

“Literatura é expressão do autor.”

“Literatura é a expressão da alma do autor.”

“Literatura é expressão das crenças do autor.”

“Literatura é criar algo novo.”

Se seguíssemos ipsis litteris as definições criadas, não apenas Harry Potter, como também toda e qualquer obra já produzida de forma escrita passaria a ser considerada literatura, ou seja, em vez de definir, reduzir o alcance, Rocha expande o modo a contemplar obras, como por exemplo, um dicionário. Como dizer que não existe, naquelas páginas a “alma do autor”?

Vou em busca de uma definição. No livro Para Entender o Texto de Platão e Fiorin, no capítulo 38 intitulado Texto literário e texto não-literário, os autores procuram definir o que vem a ser literatura e o que não vem a ser literatura. Sei que existem diversas outras definições e discussões mil sobre o assunto, porém, aqui, desejo apenas contrapor Rocha.

Gosto deste texto, pois como professor, sempre procurei armar meus alunos-leitores para combater o discurso de outros colegas de profissão que tentavam ridicularizar as suas obras não-clássicas com o rótulo: “Isto não é literatura”.

O texto se inicia com Platão e Fiorin procurando eliminar dois critérios que julgam já terem sidos utilizados para diferenciar o que é um texto literário de um não-literário e estes seriam o conteúdo e o caráter ficcional.

O conteúdo NÃO poderia constituir um fator determinante dá literatura, pois

(…) não há conteúdos exclusivos dos textos literários (…). A única coisa que se pode afirmar é que, em certas épocas, os textos literários privilegiam certos temas. (pág. 349)

O caráter ficcional e não-ficcional também NÃO poderia ser usado para dizer se um texto é ou não é literatura, porque apesar de podermos afirmar que um romance como O Senhor dos Anéis é uma ficção e mesmo que Vidas Secas de Graciliano Ramos, ao retratar a dura realidade do povo sertanejo, precisou criar (inventar) um personagem chamado Fabiano e uma personagem chamada Sinhá Vitória, para poder expressar aquela realidade mesmo assim esse conceito

(…) esbarra num problema muito sério: a dificuldade em discernir o real do fictício em certas situações concretas. Como classificar um texto religioso? Seria ficção ou realidade? Certos religiosos achariam pecaminosa até mesmo essa hesitação; um homem não-religioso considerá-lo-ia mero objeto da fantasia humana. (pág. 349)

E qual seria então o critério correto? A resposta, segundo eles, seria O CARÁTER ESTÉTICO. E assim afirmam:

(…) No texto literário, o escritor não apenas procura dizer o mundo, mas recriá-lo nas palavras, de modo que, nele, importa não apenas o que se diz, mas o modo como se diz. (pág. 351)

Vejamos esse trecho de Harry Potter e a Pedra Filosofal que descreve Hagrid:

Um homem gigantesco estava parado ao portal. Tinha o rosto completamente oculto por uma juba muito peluda e uma barba selvagem e desgrenhada, mas dava para se ver seus olhos, luzindo como besouros negros debaixo de todo aquele cabelo. (pág. 41)

Essa descrição não quer meramente transmitir uma simples informação física do personagem, mas deseja mostrar para o leitor como ele era assustador. Observe o trecho “luzindo como besouros negros”, perceba a seleção deHagridpedras palavras, recriando o sentido. Se Rowling dissesse que ele possuía olhos pretos teríamos o mesmo impacto? Onde ficaria o aspecto de desconhecimento e estranheza que a aparência de Hagrid causava? E para Platão e Fiorin, isto mostra outra faceta do aspecto estético que é o uso de linguagem plurissignificativa.

No dicionário, exemplo citado acima, há linguagem plurissignificativa? Não. É um texto expositivo que visa traduzir através de tópicos o significado das palavras, não é à toa que os vários significados sejam separados por numeração, classe gramatical, exemplos contextualizados…

Outro argumento usando para confirmar isso é que no texto literário quando se faz um resumo se perde o essencial, no texto não-literário, quando se resume se apreende o essencial.

Para ilustrar basta imaginarmos os resumos de uma notícia e de um romance. Resumir a notícia implica guardar a informação mais importante; enquanto, no romance, a sinopse compromete a compreensão da mensagem e, em muitos casos, pode nem mesmo contemplar a ideia central.

Como foi dito anteriormente, não quero com essas definições coloquem um ponto-final na discussão do que vem a ser literatura. Era meu desejo mostrar uma definição que além de superar a equivocada definição de Ruth Rocha, consegue fixar Harry Potter como literatura.