A Fernanda Montenegro não tem direito de fazer apologia do afeto homossexual. Grandes fãs dela estão estarrecidos com isso. E mesmo que ela estivesse pensando em ajudar as mães dos homossexuais… Mas qual é a porcentagem de mães de homossexuais?
E mal saímos da polêmica erguida pela senhorita Ruth Rocha e outra figura ilustre da literatura infanto-juvenil lança mão de um discurso preconceituoso (para ler a entrevista do autor clique aqui).
Essa declaração do Ziraldo me lembrou duas coisas: 1) Mussum, em várias esquetes dos Trapalhões, zombava de sua própria cor. “Pretis é teu passadis“, era uma daquelas frases que provocava risos em muitos que acompanhavam a trupe; 2) Existem diversas pessoas que afirmam que o politicamente correto acabou com o humor. Hoje mulheres e gays se ofendem com qualquer “coisinha”. Será que realmente ninguém se ofendia antigamente? Será que negros, mulheres e gays não se sentiam doidos, incomodados, injustiçados com piadas do tipo que eram feitas em programas como Os Trapalhões? Nas duas memórias uma coisa fica clara: há um calar de vozes.
Durante muito tempo o Brasil ostentou a alcunha de país sem preconceitos. Afinal, moramos em uma terra abençoada por Deus e bonita por natureza. Em nossas novelas, negros, nordestinos e pobres faziam (e ainda fazem) parte do elenco secundário, responsável pelo alívio cômico. “Apesar do sufoco, sabe levar a vida com bom-humor“, era frase tarimbada de apresentação desse tipo de personagem nas novas novelas. O que mudou então? A resposta não é fácil, não é clara, mas posso especular usando o respaldo de uma nomenclatura muito conhecida na minha área, a análise do discurso: a polifonia.
Como disse mais acima, a discussão sobre a forma de fazer humor ontem e hoje se diferencia, para mim, nas formas do silêncio de ontem e hoje. Quem calava antes, hoje tem voz. E talvez seja nas formas do silenciar que poderemos compreender o que escrevi no título deste post, ou seja, que o discurso de Ziraldo que aparentemente implica uma não mudança na postura da atriz Fernanda Montenegro acaba apenas reforçando o fato de que a mudança já existe. Está confuso(a)? Vamos antes definir o que vem a ser polifonia.
No Dicionário de Análise do Discurso de Charaudeau e Maingueneau, temos o seguinte conceito: polifonia seria quando
[…] o autor pode fazer falar várias vozes através de seu texto. (pág. 384)
Mais a frente, temos a apresentação da teoria da polifonia segundo Ducrot. Ducrot estruturou a análise do seu texto através do estudo da negação. Retomando o humor, quando contávamos uma piada machista, por exemplo, esperava-se o silêncio, o não-discurso, apenas o riso. Socialmente qualquer voz que se manifestasse contra a piada era abafada, silenciada. Ao mesmo tempo que a mulher era calada, o que acabava por reforça o discurso machista que era encabeçado por frases como: “Lugar de mulher é na cozinha e cuidando dos filhos”. O mesmo se aplica a gays, negros, nordestinos…, quando o silêncio é imposto como necessário para manter o humor, nega-se o preconceito. Pois, quem cala consente.
Perceba um exemplo do discurso do silêncio nesta frase retirada da citação do começo do texto:
Mas qual é a porcentagem de mães de homossexuais?
Ao quantificar as mães homossexuais, como uma fração minúscula da audiência da novela, Ziraldo impõe o silêncio. A reação não poderia ser outra. O autor apenas abre caminho para o discurso daqueles que ele procurou excluir do seu. Mais abaixo explico como a negação implica uma afirmação.
Hoje, ocorre exatamente o oposto, contar uma piada de cunho racista, por exemplo, evoca várias vozes. Vamos partir da declaração de Ziraldo para poder explicar a teoria da negação de Ducrot.
Quando ele diz que A Fernanda Montenegro NÃO tem direito de fazer apologia do afeto homossexual, nasce uma segunda voz que diz A Fernanda Montenegro TEM direito de fazer apologia do afeto homossexual, porque
Se o emissor se utilizou da negação, é realmente porque alguém pensa […] o que é contrário à opinião do emissor. (pág. 386)
Ou seja, a declaração do pai do Menino Maluquinho, atesta a existência de outras vozes. Isso ocorre hoje de modo
mais forte pelas mudança que a sociedade brasileira vem passando e pela disseminação das redes sociais que de certa forma democratizaram os discursos que antes eram restritos a guetos.
Para mim, vivemos um momento de ruptura. O país tropical abençoado por Deus e bonito por natureza não é tão bonito assim, possui muita poeira debaixo do tapete e precisamos começar a puxá-la para fora. Observar com atenção para não jogarmos fora sem debater, sem dar voz a quem ficou todo esse tempo escondido ali. Alguns dirão que vivemos tempos sombrios com bolsanaros e pedidos de intervenção militar. Discordo. Estamos vivendo um momento precioso do qual não podemos simplesmente virar o rosto em busca do passado que não volta mais.
O Brasil está mudando. Os debates ocorrem acirrados e isso é bom, já que estamos discutindo e procurando compreender nosso hoje. Não é fácil, mas quem disse que seria? Os Ziraldos e as Ruths da vida aparecerão o tempo todo para dizer o que não devemos falar, pois é feio, é ilegal, é imoral, faz mal e engorda… Estamos longe disso. Contestamos, retrucamos, escrevemos posts…
Pertence a Voltaire a frase: Discordo de tudo que dizeis, mas defenderei até a morte o teu direito de dizê-las. E ele estava certíssimo. Discordo de Ziraldo, mas defendo o direito dele de dizer o que disse, pois só assim pude refletir e escrever este texto. Se o escritor e cartunista esperava que as pessoas ratificassem seu preconceito com o silêncio, este se enganou. Hoje não criamos verdades, fomentamos debates. O mundo mudou e a fala de Ziraldo prova isso. Toda a repercussão, todos os retwettes, compartilhamentos, posts, podcasts, vlogs que aquela declaração gerou comprova que vivemos tempos de múltiplas vozes.


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