[Coluna] O “Hércules” de Brett Ratner: Gato Por Lebre ou a Construção do Herói?

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A maioria das pessoas que conheço torceu o nariz para “Hércules”, filme de 2014 dirigido por Brett Ratner e com Dwayne “The Rock” Johnson no papel principal. Muitas de suas críticas, porém, não se referiram à atuação de Johnson – pelo contrário, houve quem afirmasse que ele estava bem na pele do herói –, ao roteiro, baseado numa história em quadrinhos (1), ou mesmo aos efeitos especiais, mas sim ao fato de terem frustradas suas expectativas de ver um filme em que se desenrolassem os famosos Doze Trabalhos.

Boa parte dessas expectativas veio do trailer (2), no qual aparecem monstros como Cérbero e o Leão de Nemeia. De fato eles estão no filme, porém apenas em sequências de dois ou três minutos, inseridas numa narrativa fantasiosa de Iolau, sobrinho do herói. O resto transcorre naquele estilo “sessão da tarde”, e ficou bem divertido, na minha opinião. Este artigo, porém, não se destina a comentar o filme, e sim o ponto que incomodou tanta gente e que para mim acabou sendo o melhor de “Hércules”: a ideia da construção do mito, tão presente para quem pesquisa e escreve no gênero fantástico.

11006093_10203810234324176_2073370074_nAntes de mais nada, deve-se ter em mente que o protagonista de Ratner não deixa de ser um herói. Sua força e destreza são muito maiores do que a da maioria dos guerreiros; ele age com nobreza e generosidade e acaba salvando o dia (embora precise de uma ajudinha dos amigos). No entanto, Hércules não é um semideus, e suas proezas, embora baseadas em feitos verdadeiros, são muito exageradas pelo sobrinho. Um paralelo que logo me veio à mente foi o emblemático “Peixe Grande e Suas Histórias Maravilhosas” (2004), dirigido por Tim Burton: as histórias de Ed Bloom sobre um gigante, gêmeas siamesas e cidades fantásticas pareciam não passar de invenção, até mesmo para seu filho, mas este acaba finalmente por perceber que o pai apenas “aumentou alguns pontos” ao narrar os episódios de sua juventude (3). É o que faz Iolau no filme de Hércules, embora com outras intenções: a de disseminar a fama do tio — com isso afastando possíveis inimigos e conseguindo trabalho para seu grupo de mercenários –, mas também, com certeza, a de entreter as pessoas que encontra, seja em troca de dinheiro, comida, abrigo ou pelo puro prazer de contar histórias.

No mundo real, isso acontece desde a Antiguidade, que nos legou centenas de contos cuja origem desconhecemos e que foram narrados durante séculos, em versões que muitas vezes se confundiram, antes que houvesse qualquer forma de registro. Dizendo assim pode parecer óbvio, mas a maioria das pessoas não sabe disso, talvez por nunca ter se dado conta de que as lendas, os mitos e os contos populares são diferentes dos trabalhos autorais: seus enredos e personagens não foram imaginados por um único autor, mas sim construídos ao longo do tempo, com isso deixando variações pelo caminho e subsidiando criações posteriores.

Sucesso da Disney, o filme "Hércules" de 1997 traz magia, música e enredo relacionado ao mito estudado.
Sucesso da Disney, o filme “Hércules” de 1997 traz magia, música e enredo relacionado ao mito estudado.

Um exercício que costumo propor em minhas palestras e oficinas é a “desconstrução” de um mito, usando como exemplo um personagem bem conhecido: o deus escandinavo Thor.  Juntos imaginamos uma possível origem para ele: um homem forte, quem sabe um grande caçador numa tribo da Pré-História, que carregava uma arma ou ferramenta – pois talvez de início não fosse um martelo – e que a usou para derrotar um inimigo ou animal feroz no exato momento em que se ouvia o estrondo de um trovão. A história foi contada à tribo por alguém que a presenciou, o caçador foi elogiado, passou-se a olhar para ele com mais respeito e a recordar aquele fato mesmo bem depois de ter acontecido. De geração em geração, a narrativa oral foi sofrendo modificações, até que esse “proto-Thor” deixasse de ser conhecido como um homem comum, adquirisse qualidades divinas e fosse associado a outras histórias, algumas delas baseadas em fatos reais. Essa é a origem mais provável de todos os deuses, de todos os heróis e de todas as mitologias, presentes desde sempre nas raízes da literatura. E, só para constar, não apenas da fantástica.

O seriado "Hercules: The Legendary Journeys" fez grande sucesso na década de 1990.
O seriado “Hercules: The Legendary Journeys” fez grande sucesso na década de 1990.

Mostrar ao grande público, ainda que de forma superficial, esse processo de construção do herói foi para mim a boa surpresa de “Hércules”. Um filme do mesmo nível técnico, que apresentasse a história canônica – um filho de Zeus, realizando os Doze Trabalhos – possivelmente me agradaria menos, pois o personagem já teve sua lenda tantas vezes contada que precisaria haver um ótimo diferencial, fosse no roteiro, nas atuações e/ou nos efeitos especiais, para fazer com que essa versão se destacasse das anteriores.

Claro que com isso não quero dizer que o filme de Ratner é uma obra-prima, nem que foi sua intenção levar os espectadores a refletir. O que o diretor e os produtores queriam era fazer um bom “filme-pipoca” com The Rock, e na minha opinião conseguiram, embora, com o trailer, tenham feito muita gente comprar gato por lebre. Fica o desejo de que a ideia seja retomada, com mais profundidade, em filmes que explorem a possível origem de outros mitos, seja num contexto de fantasia histórica, como “Hércules”, ou mais realista. Este se poderia conseguir, por exemplo, mostrando a história dos tributos pagos a Creta e os dançarinos do touro por trás da lenda de Teseu(4). Enfim, muitas possibilidades — sem nunca perder de vista o fato de que os filmes teriam de funcionar, antes de tudo, como bom entretenimento, no sentido de envolver o espectador e prender sua atenção do primeiro ao último minuto.

Pois a verdade é que, se histórias tão antigas quanto a de Hércules sobreviveram até hoje, foi exatamente porque seus narradores souberam encantar o público ao contá-las.

Referências: