Olá, pessoas cabulosas!
Acabei de terminar a leitura do primeiro livro da trilogia Coração de Tinta de Cornelia Funke (leitura pendente desde 2013), e não, não vim trazer uma resenha para vocês, mas uma reflexão. Algo que vinha matutando durante a leitura. Para quem já leu ou assistiu o filme baseado na obra, sabe que a história trata de vidas que não estão no “eixo”, personagens que estão presos em histórias que não são suas. Fiquei pensando como é aterrorizador não se sentir parte de um mundo, não pertencer a um espaço, ser um eterno marginal da própria vida. Não estou querendo explorar o conceito de fuga da realidade, quero falar quando as situações obrigam alguém a viver num mundo que não é seu, quando o tempo nesse mundo já passou, e ele é obrigado a ficar lá e sempre será lembrado por isso.
Uma imagem pode durar milênios, séculos e contar uma história. A arte na pré-história é prova real, lá estavam as primeiras impressões do homem sobre o mundo, as primeiras formas de se contar uma história, deixar registrado um evento, uma cena que passou por seus olhos e ficou gravada na memória. Naquele momento, dentro de cavernas e sobre as pedras, o homem passou a registrar o mundo, começou a contar suas versão dos fatos.
Que papo doido é esse, você, caro leitor cabuloso, deve está se perguntando! Comecei a falar de uma coisa e depois parei em outra?
As histórias e as memórias acabam se cruzando.
A memória sempre vai se prender a determinado momento, e esse momento conta uma história. Você pode pegar uma fotografia e fazer essa relação, nada melhor que as imagens! Ou então, um objeto. Há mães que guardam as primeiras mechas dos cabelos virgens dos seus rebentos para lembrá-las de como eram pequenos e frágeis. Casais de outrora guardavam as primeiras cartas de amor (hoje o povo troca WhatsApp). Um personagem de um livro também pode mostrar essa relação especial entre memória e história. Não são objetos palpáveis, mas lhes são atribuídos uma série de imagens e significados que o tornam quase uma memória real.
Vou um pouco mais a fundo.
E na ficção?
Talvez fosse uma espécie de maldição se a memória de alguém estivesse amarrada na ficção, se aquele momento, aquela determinada fase nunca pudesse ser superada, porque aos olhos dos outros parece muito mais importante o que aconteceu antes, do que o que aconteceu agora ou depois. Acho que as pessoas gostam mais de retratos velhos e desbotados, mexer nas feridas ou contar as cicatrizes (Dedo Empoeirado, um personagem de Coração de Tinta tinha muitas delas). Para quê? Para lembrar…
Peter Pan é um personagem que ficou preso na infância, nunca chegou a superá-la, para ele era doce e amargo viver aquele instante eterno. Peter tinha uma sombra na realidade, um dos afilhados de J.M. Barrie, e essa sombra não aguentou viver numa história que não era sua, que tinha ficado para traz. O Peter real não pertencia àquele mundo. Mas o único Peter que nos lembramos e conhecemos é o menino eterno, não o que se atirou na frente de um trem em movimento e colocou um ponto final da própria história.
Viver para sempre no País das Maravilhas teria sido o desejo mais profundo de Alice Lidell? Alice, seu reflexo se encontrou com um Coelho atrasado e caiu num buraco, muito, muito fundo. A menina no lado de lá tomou chá com um Chapeleiro excêntrico e maluco, emendou uma prosa com um gato cujo sorriso invadia até seus pensamentos mais secretos. Alice Lidell teria gostado da história quando lhe foi contada pela primeira vez numa manhã ensolarada por um amigo de seu pai, Charles Dodgson, conhecido por Lewis Carroll mais tarde, um homem de vida pacata e compleição tranquila. Mas e depois? Alice cresceu, não era mais a menina a quem Dogson contou uma história sobre o País das Maravilhas e seus habitantes. Cresceu e não estaria mais a espera de suas histórias, mas viveria com a sombras delas no seu encalço, seu nome seria contato e recontado várias vezes na mesma trema, num looping insano.
Quem foi Alice Lidell? Quais aventuras teria vivido?
Ninguém sabe.
Mas todos sabem dizer quem foi a menina que seguiu o Coelho para a eterna armadilha da ficção.