[Conto] Betha em: O de sempre, como sempre

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Esta obra é baseada em fatos reais, traduzida e simplificada para que seres com poder de compreensão limitado possam interpretá-la. Para tanto, utilizamos o método de paridade entre os acontecimentos reais e o escasso repertório de experiências culturais, sociais e sensoriais de sua raça inferior. Bom divertimento.

 

Betha foi servida pelo bartender antes mesmo de fazer o pedido. O de sempre, como sempre. Camuflou-se num canto mal iluminado, próximo ao balcão. Engatilhou a arma sob a vestimenta leve e pacata que, não sem intenção, ocultava seu caráter e profissão.

Ao redor, a costumeira podridão espalhada pelo Saloon. Vândalos, delinquentes, infratores; ratos de esgoto que sequer conseguem andar com as próprias pernas. Betha gostava de conviver com peixes graúdos, bandidagem séria e organizada, porém o sacrifício se fazia necessário, já que sua presa também se disfarçava e caminhava entre o lixo para não chamar a atenção.

Concentração total. Betha sorvia a bebida forte sem pestanejar. Ele chegou; pediu uma bebida qualquer ao bartender. Em pé, em frente ao balcão, aguardou o negociante, o qual surgiu em seguida. Comunicavam-se em silêncio; uns poucos neurotransmissores ativados para concluir a negociata. Betha não precisava de provas, flagrantes ou mandatos; burocracias exclusivas ao Estado. Caçadores de recompensa requerem apenas uma imagem, alguns traços básicos de DNA e o valor de troca. Um bom negócio para ela, um ótimo negócio para o Estado, que oficializava a ilegalidade sem grandes obstáculos. O de sempre, como sempre.

Regulou a arma para absorção reversível de energia, nível 90%. Presas vivas valem mais. Acariciava o gatilho aguardando o momento certo. Um disparo. Uma chamada. Muito, mas muito dinheiro. Executaria uma revisão completa em sua casa-nave, além de abastecê-la de provisões sem as habituais restrições orçamentárias. Seus oito maridos não teriam do que reclamar por séculos!

– Não dispersa, menina! Não dispersa! – falou para si.

Focou o cenário. Para sua surpresa, Bob bradava com o dedo em riste, grudado no focinho de sua presa. Betha sentiu um frio subir por suas espinhas. Bob era o violento líder de um grupo de pequenos infratores desprezíveis que se envolviam em confusão por esporte. A presa não demonstrou reação. Betha sacou sua arma; ninguém percebeu, pois a discussão unilateral era o centro das atenções. A caçadora de recompensas não sabia o que fazer. A arma regulada para armazenar energia vital não poderia ser reutilizada tão cedo. Se disparasse contra Bob, sua presa teria tempo de sobra para fugir.

Além disso, e até pior, seu disfarce seria inutilizado. Começaria do zero, provavelmente com outra presa. Seus três semicorações batiam a mil. Procurou pelo bartender, não o encontrou. O que fazer? Talvez disparar contra a presa, mas neste caso Bob o mataria; uma vítima fraca e indefesa é o tipo de coisa que pequenos infratores não deixam passar. E entregar uma carcaça para o Estado não é bem o final de plano perfeito que Betha tem em mente.

Mais um lapso. Assim fica difícil. Betha concentrou-se em Bob. Conhecia aquele olhar maldoso. Não restava muito tempo de vida à presa. Buscou o bartender novamente, sem sucesso. Sacudiu a cabeça para colocar os pensamentos em ordem, pelo jeito não se livrara da dislexia da primeira idade por completo. Fitou Bob e seus olhos maléficos que… saltaram da face! A presa enrolara um de seus tentáculos pelo pescoço forte e curto de Bob, e apertou-o como uma serpente, destroçando cada osso. Alguns pequenos infratores aproximaram-se, mas a presa suspendeu Bob a uma altura que todos pudessem ver, intimidando-os. Betha baixou a arma.

O corpo de Bob voou sobre uma dezena de mesas de jogo, chocou-se contra a parede e caiu num canto escuro do Saloon. Membros de sua gangue seguiram o cadáver para resgatá-lo, porém os Beggars, uma raça desgraçada que já tentamos exterminar de diversas maneiras, devoraram seu corpo em questão de segundos. Como vingança, os pequenos infratores quebraram uns dois ou três Beggars ao meio, mas ninguém notou esse pequeno atrito. Voltando ao que importa, a presa sentou-se, visivelmente cansado, e pediu algo para beber.

Enquanto os demais evitavam encarar o assassino, o bartender esforçava-se para retornar o Saloon à rotina. Serviu a presa, aproximou-se de Betha e entregou-lhe outra bebida. Betha sorriu. Não havia momento mais oportuno. Apontou a arma discretamente para a presa e… Seu comunicador ressoou dentro de sua cabeça.

– Que foi? – atendeu a chamada sem delicadeza alguma.

– Oi, meu amor. É o Sherman.

– Sherman! Estou trabalhando, agora não!

– Rapidinho. O que deseja para o jantar? Carboidrato ou proteína?

– Sherman!

– É mais rápido me dizer do que resmungar, minha caçadorazinha ranzinza.

– Proteína, Sherman! Proteína! Maldição!

Betha voltou à presa. Não podia perder um segundo sequer… Não.

Betha - Ilustração

O corpo da presa esparramava-se pelo chão imundo. Um pequeno grupo de Beggars tentou se aproximar; o bartender espantou-os apenas com o olhar. Os clientes fingiam normalidade, porém um a um, ao terminarem suas bebidas, retiravam-se. Em poucos minutos o Saloon esvaziou-se. O bartender serviu mais uma dose para Betha.

– Era o Sherman?

– Sim. – Betha explodiu o copo em sua mão.

– Como você foi se casar com um panaca desses? – O bartender substituiu o drink destruído.

– Vivo pensando nisso, mas, vou te falar… Ninguém organiza uma casa, cuida da prole e prepara uma refeição como ele.

– E vale isso? – o bartender meneou a cabeça em direção à presa. Betha não respondeu antes de longa reflexão:

– Acho que sim. Os outros sete só servem para me dar dor de cabeça e prazer. Nada mais.

– Desculpe-me, Betha. Conheço o Sherman, é gente boa, só que é meio grudento… e nem estou falando das secreções viscosas, hein?

Riram. Betha secou o copo. O bartender trouxe outro imediatamente.

– Quanto será que vale essa carcaça?

– Nem vale à pena, Betha. Imagina o trabalho para recolher; e ainda vão te fazer mil perguntas… Olha o tamanho do buraco nas costas dele.

– Tem razão. Que arma foi essa? Aliás, quem foi que fez isso?

– Não sei. Vi que você estava no comunicador, pensei em distraí-lo. Comecei a preparar um Hot-Rocket daqueles, para deixá-lo atordoado por umas duas décadas…

Quando me virei, estava aí, morto.

– Podemos deixá-lo apodrecer lá no fundo. Meus concorrentes vão continuar atrás dele por um tempo. Posso tirar algum proveito dessa história afinal.

– Não creio, Betha. Vou ter que relatar. Não tem como esconder um ser desses. Em pouco tempo estará fedendo mais do que o lixão espacial.

– Como pode? É um erro de projeto. Todo ser que armazena gordura no próprio corpo merece a morte. Que nojo.

Betha tentou se levantar. Apoiou-se no balcão e avaliou o próprio estado de embriaguez.

– Vou indo. Até amanhã.

O bartender deteve-a, serviu-lhe uma caneca.

– Betha, você nem pensou na minha proposta, não é?

– Você está louco? Nunca vão me autorizar a ter mais um marido. Depois de perder essa presa então, sem chance.

– O que é isso, Betha? Pra tudo se dá um jeito. Onde comem oito, comem nove. – o bartender abriu um sorriso.

– Não vem, não. Vou ter que entrar em recessão lá em casa. Com certeza vou devorar pelo menos dois. As coisas andam muito ruins para o meu lado.

– Ah, Betha. Estou louco para largar esse trabalho e ficar a sua disposição. Você sabe que posso ajudar a te fazer feliz.

– Você não me ouviu? Vou chegar à minha casa-nave e devorar dois dos meus maridos para economizar!

– Você não faria isso comigo. Aconteça o que acontecer, sei que eu e o Sherman seríamos poupados.

– Tem razão. Mas não é hora para discutirmos. Estão me esperando em casa. O Sherman está preparando o jantar…

O bartender acariciou o braço de Betha, languidamente passou a língua áspera por sua mão.

– Você não quer ao menos dar um pulinho lá nos fundos? Vou te mostrar minhas planilhas da contabilidade…

Betha riu e corou. Tencionava responder a pergunta do amigo, porém sentia-se meio zonza. Bebida demais. Assistiu o bartender trancar o estabelecimento por dentro, atravessar o Saloon, pegá-la no colo, saltar o corpo da presa e adentrar o escritório.

Enfim, proferiu algo; o bartender não compreendeu um fonema sequer, no entanto, sabia perfeitamente do que se tratava: Betha queria o de sempre, como sempre.

 


Jonas Daggadol é analista de sistemas desde 1996. Atua como consultor, prestando serviço em diversas empresas Brasil afora. Esta atividade profissional o coloca em contato com os mais diversos tipos; observando-os, pode nutrir seu amor e ódio pela raça humana. Sempre que pode, desconta tudo num teclado ou folha de papel.

Site do autor: https://jonasdaggadol.wordpress.com