A recriação de personagens de Mauricio de Sousa por outros artistas, na série Graphic MSP da Panini, teve para mim seu ponto alto na publicação de Piteco: Ingá. Assinado pelo paraibano Shiko, o álbum de 2013 uniu brilhantemente a fantasia de inspiração livre de Mauricio a personagens do folclore do Brasil e à mística que envolve uma das mais belas localidades do Nordeste: o agreste paraibano, onde se ergue a Pedra do Ingá, marcada por inúmeras inscrições rupestres (1).
Na sua versão do Piteco, Shiko faz da pedra um mural que desvenda a história dos povos criados por Mauricio e que ele transplanta para aquela região. Uma antiga tribo se teria desmembrado em três grupos: os homens-tigre, que vivem na selva, o povo de Ur, cujo habitat são as árvores e os alagados, e a gente de Lem, que vive nas cavernas, da qual fazem parte o herói Piteco, seus amigos Ogra e Beleléu (fica um pouco estranho esse nome numa HQ de pegada adulta, séria e às vezes sombria, mas não mais do que “Cebola”, a evolução do Cebolinha, como galã da Mônica Jovem) e sua eterna namorada, Thuga, que na versão de Shiko é uma espécie de “magic woman”, dotada de vidência e de habilidades para a cura. Nas primeiras páginas aparece num papel que se aproxima do de uma mestra de sagas, razão pela qual, é claro, eu adorei o personagem. 😉
Com a seca a ameaçá-los, o povo de Lem se prepara para uma migração, a fim de chegar a um rio distante. No entanto, um equívoco faz com que Thuga seja raptada pelos homens-tigre, e isso leva Piteco e seus amigos a uma jornada de resgate, na qual se encontram com seres fantásticos (a leitura de Shiko do Curupira ficou incrível) e com as criaturas pré-históricas que passeiam livremente nos quadrinhos de Mauricio de Sousa. Aliás, não só os dele: alguns escritores e, principalmente, diretores de filmes mais antigos fizeram os “homens das cavernas” contracenarem numa boa não apenas com dentes-de-sabre e mamutes, mas também com brontossauros, pterodontes e, principalmente, os temíveis tiranossauros (2). A história segue em frente, muito bem amarrada e com arte primorosa, e nas páginas finais o leitor é brindado com extras que informam sobre a Pedra do Ingá, mostram flashes do trabalho de Shiko e ainda o nascimento do protagonista, Pitecanthropus Erectus da Silva, o Piteco, que fez sua estreia nos quadrinhos em 1963.
A pretexto do álbum, recomendado pela crítica sem moderação (3), venho falar sobre um tema ao qual tenho retornado várias vezes: a ficção pré-histórica. O termo já deixa óbvio do que se trata: a literatura ficcional em que a ação é ambientada na Pré-História, inteiramente ou em parte. Em alguns casos inclui elementos de fantasia ou ficção científica, mas mesmo a obra mais realista dificilmente deixa de ter alguns traços de especulação, ou pelo menos suposição. Isso porque, por melhor que seja o embasamento histórico e científico do autor, este precisa recorrer à sua imaginação para preencher algumas lacunas, especialmente quando se trata da psicologia, da forma de pensamento e das relações existentes entre as pessoas e as sociedades tradicionais.
Apesar das recentes descobertas arqueológicas, ainda não sabemos muito acerca dos povos que não deixaram registro escrito: nem sequer se determinou a função de inscrições rupestres, como as da Pedra do Ingá ou da Gruta de Lascaux. Imaginem então no final do século XIX, época de que datam as primeiras histórias do gênero – as quais, ainda assim, conseguem ser trabalhos interessantes de ficção.
Como de hábito, Jules Verne saiu na frente, e já em 1864 vemos o prof. Lidenbrock, seu sobrinho Axel e o guia Hans Bjelke encontrarem um homem e um mundo pré-históricos no centro da Terra. A ficção inteiramente ambientada naqueles tempos, contudo, só surgiu com Bandelier, que publicou Os Fazedores de Delícias em 1890. Depois disso, Stanley Waterloo publicou A História de Ab, em 1897, e acusou Jack London de plágio quando, em 1907, este escreveu Antes de Adão, na verdade uma história completamente diferente, que trata dos conflitos de um homem moderno em contato com sua memória ancestral.
O tema foi consolidado com os irmãos belgas Joseph-Henri e Séraphin-Justin Boëx , que escreveram vários livros sob o pseudônimo conjunto de J.-H. Rosny. O mais conhecido – A Guerra do Fogo, de 1912 – foi o primeiro a narrar a aventura sob o ponto de vista dos próprios homens pré-históricos. Jean-Jacques Annaud levou o livro às telas, produzindo um filme quase épico, realista e impressionante, que vem a ser meu preferido de todos os tempos junto com A Companhia dos Lobos. Também em 1912, Arthur Conan Doyle publicaria O Mundo Perdido, um exemplo clássico de ficção especulativa. Outro autor conhecido a se aventurar na Pré-História foi E. R. Burroughs, em uma série de romances menos conhecidos que os de seu herói Tarzan.
Em 1955, um ano após o sucesso literário de O Senhor das Moscas, William Golding publicou Os Herdeiros, no qual se fazia a primeira tentativa de mostrar o que seria, realmente, o pensamento primitivo. Sua história narra o encontro de um grupo de Homens de Neandertal com os primeiros homens da espécie Sapiens, tema que seria retomado no primeiro livro da série Os Filhos da Terra, de Jean Auel. O livro, O Clã da Caverna do Urso, foi publicado em 1980 e apresentou ao público a heroína Ayla, que também virou filme, com Daryl Hannah no papel principal.
Com Jean Auel pode-se ver uma tendência cada vez mais evidente nos livros de ficção pré-histórica que vieram depois, nos quais os autores fazem uma exaustiva pesquisa histórica, arqueológica e antropológica para dar cor e credibilidade às suas narrativas. Um nome muito importante, que poucos por aqui devem conhecer, é o de Bjorn Kurtén, cujo livro Dance of the Tiger, publicado em 1980, mostra as interações sociais entre os Neandertal e os Cro-Magnon, sugerindo que a extinção dos primeiros se deu não através da violência, mas sim da miscigenação. A hipótese é baseada em estudos de DNA e considerada plausível por estudiosos como Stephen Jay Gould, autor de vários livros sobre a evolução das espécies. (4)
Saindo da genética e passando à antropologia cultural, a estudiosa de sociedades tradicionais contemporâneas Elizabeth Marshall Thomas conseguiu excelentes resultados em A Lua da Rena, um dos meus livros favoritos desde a adolescência, que é ambientado na Sibéria de 35.000 antes de nossa era. Ali ela trabalha de forma séria, bem realista, com o pensamento mágico até hoje encontrado em povos que praticam o xamanismo; foi uma fonte literária e uma inspiração para mim, que também sou fascinada por isso. Em contrapartida, autores como Michael e Kathleen Gear, cujas séries retratam os primeiros habitantes do continente americano, recriam com maestria a cultura material, mas seus personagens agem quase da mesma forma como o fariam homens e mulheres contemporâneos. O mesmo talvez se possa dizer da série para jovens adultos “Crônicas das Trevas Antigas”, de Michelle Paver: ambientada na Europa de 6.000 antes da nossa era, é protagonizada por um casal de jovens que, descontada a diferença de cenário, se relaciona mais ou menos como Percy Jackson e Annabeth. Essa limitação, contudo, não impede que a autora crie uma história interessante, com uma fantástica pesquisa material e – o que é o mais importante – com uma criatividade e uma habilidade narrativa que prendem o leitor do início ao fim.
E agora vem a pergunta… Por que eu gosto tanto de “histórias pré-históricas”?
As razões são várias, algumas mais fáceis de explicar do que as outras. Em primeiro lugar, vem o gosto literário. A ficção pré-histórica trata muitas vezes de aventuras, de luta pela sobrevivência contra inimigos e contra um ambiente hostil, e quase sempre inclui algo de busca pessoal: é a jornada do herói em sua essência mais primordial. Além disso, figuras de xamãs e feiticeiros são comuns e eu sou fascinada por eles, como se pode notar em vários dos meus contos e livros (5).
Outra razão tem a ver com meu gosto por História e Arqueologia, por Antropologia e mitologias comparadas, que também encontra eco nesse tipo de ficção. É muito melhor ler sobre os artefatos encontrados em determinado sítio quando os visualizamos em seu ambiente; melhor ainda quando em seguida aparece alguém todo preparado para a Dança do Urso. Mesmo que a história desse “alguém” seja inventada pelo autor do livro, ele vai me ajudar a lembrar como eram o artefato e a sua indumentária. E eu posso imaginar por mim mesma a música e a dança.
Quanto à terceira razão… Esta continua a ser um mistério. Eu gosto de ficção pré-histórica, e da Pré-História em geral, porque aqueles tempos evocam alguma coisa dentro de mim. Algumas pessoas diriam que tem a ver com vidas passadas, outros com o inconsciente ou memórias atávicas, ou até mesmo com a posição do Sol no meu mapa astral. Talvez eu seja como o Buck de Jack London, e esse seja o meu Chamado Selvagem… Ou talvez simplesmente esses cenários imprecisos deem muito espaço para a minha imaginação trabalhar. Enfim, não tenho certeza. Tudo que sei é que essas histórias costumam exercer sobre mim uma espécie de fascínio, por isso quis compartilhar algumas com vocês.
Pois não é isso, justamente, que os contadores de histórias vêm fazendo desde aqueles tempos ancestrais?
- Ainda não pude visitar o lugar, mas comprei, há vários anos, um livro a seu respeito, “Os Astrônomos Pré-Históricos do Ingá”, cujo autor expõe a hipótese de que a pedra era um observatório astronômico. Este é um vídeo sobre ele. https://www.youtube.com/watch?v=h0x_aS_3WC4
- Artigo (em inglês) sobre a evolução da imagem do “homem das cavernas” no cinema: http://www.moviefanfare.com/evolution-of-movie-caveman/
- Resenha de “Piteco : Ingá” que a Priscilla fez https://leitorcabuloso.com.br/2014/01/resenha-piteco-inga-shiko-graphic-msp/
- Sobre o interessante “Dance of the Tiger” http://en.wikipedia.org/wiki/Dance_of_the_Tiger
- Leiam no Wattpad meu conto “A Mãe da Montanha das Águias” http://www.wattpad.com/myworks/27641024-a-m%C3%A3e-da-montanha-das-%C3%A1guias