[Conto] A relíquia

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Século XIII, o mundo vivia o que ficou conhecido como Idade Média, um período de transição na história da humanidade e também de muitas incertezas.

A Igreja dos homens que gozava de bastante poder e influência social, passava por mudanças. O Papa Honório IV, seu líder, havia morrido e um novo Pontífice chegaria ao trono de Pedro, Nicolau IV. Isso amenizaria os ânimos porque a fé dos homens era direcionada pelos rumos que a Igreja haveria de impor, influenciando diretamente a sociedade e o seu comportamento.

A Igreja passava por grandes dilemas neste período, e um deles estava relacionado às relíquias e o seu culto. Tal adoração ajudou a Igreja e difundir o cristianismo e os contornos do império da fé. Elas eram muito cobiçadas pelos homens. Alimentavam a religiosidade das pessoas e também os cofres daqueles que sabiam explorar sua viabilidade comercial. O portador de uma relíquia sabia que tinha em mãos uma peça de valor inestimável. As cidades que as portavam eram mais visitadas e consequentemente, tinham um comércio pujante, atraindo olhares e fazendo parte das rotas de peregrinação. O comércio da fé valia muito.

A Igreja começou a perder o controle sobre as novas relíquias.  O surgimento de novos objetos sagrados começava a ganhar proporções exageradas e tudo que Roma temia era perder poder e influência. Perder o controle da fé não era interessante. Para o sucessor de Pedro, apenas a Igreja deveria ser um canal que ligaria o homem a Deus.

O Concílio de Lion foi formado para analisar e tomar uma posição a respeito da veracidade das novas relíquias, mas nada foi conclusivo. Uma atitude deveria ser tomada para frear esse comércio. Em 1287 o Bispo Quivil de Exeter proibiu o culto às novas relíquias. A Igreja perdera o controle sobre os novos objetos sagrados. A cada dia surgiam mais e mais relíquias e atestar a veracidade de tais peças se tornou impossível. Antes que o “sagrado” se tornasse comum, a proibição foi a melhor opção.

A proibição por parte da Igreja gerou insatisfação, mas o improvável aconteceu. Relatos a respeito de milagres foram difundidos por toda a região. As pessoas, carentes por mudanças logo se apegaram aos boatos e as histórias contatadas pelos bardos. Uma nova relíquia havia surgido e todos ansiavam por vê-la e serem agraciados pelas suas maravilhas.

Desde os tempos em que Jesus de Nazaré esteve entre os homens que milagres não eram divulgados com tamanha euforia. As relíquias, de uma forma geral eram objetos sagrados, portadores de uma energia preciosa para nós. Para isso fomos enviados, estávamos em uma missão. Anjos e demônios sempre visitavam o plano físico. Em alguns casos apenas para observar e relatar e em casos mais específicos tínhamos autorização para intervir.

As intervenções, em alguns casos, eram tão decisivas que chegávamos a participar de contendas políticas e até mesmo das guerras dos homens.

Há três dias caminhávamos no plano físico e a fome começava a nos incomodar. Como viemos a este mundo, estávamos camuflados em nossos avatares, que necessitavam de alimento para ficarem mais fortes e aptos as longas caminhadas. Moratus liderava nossa diligência. Além dele e de mim, juntou-se a nós mais três condenados, Razus, Balaoth e Rogazul.

O dia chegou ao fim e a pequena fogueira amenizou o frio que chegou com toda força naquela noite. Nossas provisões haviam acabado e precisávamos encontrar o que comer.

Moratus delegou a mim e a Rogazul a tarefa de encontrarmos algo para o nosso jantar. Deixamos o acampamento, adentrando o bosque. A cada passo, a sensação de isolamento aumentava mais. Os galhos retorcidos davam um aspecto mais soturno àquele cenário, principalmente pelas sombras formadas pela tímida e pálida luz do luar. Rogazul estava à frente, munido de seu arco. Sua aljava estava repleta de flechas. Era um bom arqueiro e no menor sinal de perigo, certamente estaria pronto para o disparo. Estava a poucos metros dele, protegendo sua retaguarda. Possuía uma espada curta, para ser mais exato, um gládio. Não era bom com o arco, mas me considerava um bom espadachim.

O bosque se fechou completamente e as brumas dominavam o local. Após uma breve olhadela sobre os ombros não conseguia ver muita coisa. Rogazul parou de repente.

– Acho que ouvi algo!

– O que poderia ser? Completei.

Mais ao longe vimos o movimento dos arbustos. O som emitido pela dança dos galhos aumentava e o que quer que seja, vinha em nossa direção rapidamente. Rogazul preparou o arco, se posicionando de maneira que pudesse disparar suas flechas assim que este algo ou alguém cruzasse nosso caminho. Desembainhei o gládio também me colocando em prontidão. A tensão tomou conta de nós, principalmente por estarmos isolados, cercados pelas brumas e pelas árvores com seus galhos retorcidos.

Sua chegada era iminente. Rogazul ajustou a tensão do arco, preparando o que seria um disparo certeiro. Apertei o cabo da espada, me preparando para o confronto. Os arbustos se abriram e diversos roedores de pequeno porte saíram em disparada, passando por nós e se perdendo em meio à névoa. Na verdade, nem se incomodaram com a nossa presença.

Entreolhamos-nos, com certo ar de alívio. Esboçamos um pequeno sorriso, relaxando momentaneamente, até que Rogazul questionou:

– A impressão era que os pequenos roedores estavam em fuga. Mas do quê?

Antes que eu pudesse responder uma grande criatura surgiu entre os arbustos. Em fúria, arremessou Rogazul para o alto, sendo jogado a vários metros. O impacto fez com que soltasse o seu arco. Sua aljava se desprendeu fazendo com que muitas flechas quebrassem e outras se perdessem em meio à escuridão daquela noite incomum.

Estávamos sendo atacados por um grande javali. Pelo porte do animal, se tratava de um macho e pesava uns 250 quilos. Sua pelagem era cinza escura, facilitando sua camuflagem em meio à noite. Suas presas eram descomunais, dando a ele um aspecto assustador. Ele prosseguiu sua corrida, dando meia volta, investindo mais uma vez sobre nós. Percebi que não éramos os únicos a procurar o que comer naquele bosque sinistro. O porco selvagem se aproximava bufando. O frio intenso fez com que sua respiração se tornasse visível, expirando vapores que saíam de sua boca e narinas, deixando-o mais apavorante. Olhei rapidamente para Rogazul, este ainda se recuperava do encontrão. Conseguiu recuperar seu arco, mas um arco sem flechas não teria muita utilidade.

Como iríamos parar o grande animal sem flechas?

Enquanto Rogazul procurava suas flechas, restou a mim a tarefa árdua de frear o porco. Lembrei-me dos roedores fujões, que já deviam estar seguros e bem longe daqui. Ocorreu-me que apesar de sermos seres sobrenaturais, munidos de habilidades incomuns, presos em corpos humanos, essa vantagem não fazia a menor diferença.

Rogazul havia achado sua aljava. Encontrá-la não lhe valeu de nada, pois estava vazia. As poucas flechas que encontrou, estavam comprometidas. Quando retomei a atenção ao grande animal, já se encontrava muito perto. Não havia tempo para desviar e acabei fazendo a pior das escolhas. Pulei sobre ele. O javali continuou sua corrida. Tentei me equilibrar a todo o custo. Segurava fortemente sua grossa pelagem o que me garantia momentaneamente uma pequena estabilidade, mas não sei por quanto tempo aguentaria sobre o lombo daquele animal.

Com a espada tentei sangrar o bicho, em vão. Sua força era descomunal e com um movimento súbito fui arremessado ao chão. Fiquei prostrado por alguns instantes, o suficiente para o javali fazer mais um retorno e correr em minha direção. Aquela perspectiva me proporcionou ver as flechas de Rogazul presas em alguns galhos superiores. Elas estavam em bom estado e poderiam ser usadas.

– Alí! Gritei fazendo movimentos desesperados.

Rogazul saiu em disparada ao encontro de suas flechas. Deitado, tornei-me uma presa fácil para o javali que se aproximava como um touro enfurecido. Fui arrastado pela relva. Daquele ângulo o grande javali era mais assustador. Com sua respiração ofegante os vapores exalados encobriam parcialmente a cabeça do animal, o deixando mais apavorante, lembrando as feras ancestrais que habitavam os mais profundos recantos dos abismos do Sheol. Naquela situação o grunhido do jovali se tornara aos meus ouvidos uma melodia fúnebre. Pensei que o fim se aproximava.

Fui mais uma vez arremessado e percebi que havia um ferimento na base da costela. O animal investiu. Não havia mais forças em mim. O gládio estava longe, impossível de ser alcançado. Estava vencido, o grande animal se aproximava para reclamar o seu prêmio. Subitamente o javali em plena corrida emitiu um som mais forte, e uma sucessão de grunhidos reverberou pelo bosque até que a criatura tombou bem perto de mim. Uma saraivada de flechas havia derrubado o animal.  Rogazul se aproximou lentamente, ainda com o arco armado. Uma sexta flecha estava pronta para o caso do porco ainda tentar um novo confronto.

O grande javali foi vencido. Tive certa dificuldade para ficar de pé. O ferimento doía bastante e estava muito debilitado. Recuperei minha espada e agora teríamos que retornar ao acampamento. Olhamos para aquela carcaça cravada de flechas e tivemos o mesmo pensamento:

Bem que Balaoth poderia estar por aqui…

Algum tempo depois conseguimos chegar ao nosso acampamento. Rogazul acabou tendo que trazer o suíno sozinho, devido ao meu estado. Ele estava exausto. Caminhei cambaleante e assim que fizemos contato visual com nossos companheiros, desfaleci, vencido pelo cansaço e pela perda de sangue devido ao ferimento. Prontamente Balaoth e Razus vieram nos ajudar. Coube a Moratus conduzir o grande Javali ao local onde seria esquartejado, a fim de virar um delicioso assado.

Ao abrir os olhos notei que o meu ferimento doía menos, estava limpo e com ataduras. Havia dormido algumas horas. Balaoth estava ao meu lado, foi ele que me velou. Tive uma febre intensa que certamente foi causada pelo contato da saliva do javali com o ferimento causado pelas suas presas. Felizmente a enfermidade se foi e já estava bem melhor. Razus havia preparado o assado e pelo cheiro, parecia muito bom. O grande Javali não me parecia mais tão ameaçador agora.

Comemos ao redor da fogueira. A pequena pira crepitava, formando desenhos no ar. Naqueles instantes, nos esquecemos de quem éramos e da missão que nos foi dada. Comíamos, bebíamos e conversávamos sobre a caçada ao grande porco selvagem. Demos boas risadas. Ficamos ali, conversando como homens comuns, brincando uns com os outros, sem nos preocuparmos com tudo que estava em jogo.

O fogo foi se extinguindo, até que sobrassem apenas cinzas. As pequenas brasas ainda brilhavam. Pequenas linhas de fumaça subiam sem destino pelo ar, desaparecendo logo depois. Estávamos satisfeitos com o jantar, tínhamos provisões para os próximos dias.

– Acordem! Vociferou Moratus

Ainda era muito cedo. O Astro Rei iniciava o seu movimento ascendente, vencendo mais uma vez as trevas. A pequena fogueira, não crepitava mais e a brisa matinal levava o que restou das cinzas pelo ar. O frio ainda se fazia presente e os tímidos raios do sol começavam a elevar a temperatura. A névoa que se formou durante a noite ainda podia ser vista, e em contato com a luz do dia, formavam um cenário agradável.

A calmaria foi sendo interrompida com os resmungos de Balaoth que ainda arrotava. Consequência de sua gula na noite passada.

Levantamos o nosso acampamento, ainda preguiçosos e jogamos terra sobre o que restou da fogueira, apagando quase que por completo nossa presença por lá.

Moratus me deu um cutucão na perna, para que eu me adiantasse. O ferimento da noite passada ainda incomodava um pouco. Lembrei-me ligeiramente da caçada e como escapei. Graças a Rogazul e suas flechas. Enquanto guardava os meus últimos pertences, notei que a carcaça do grande javali estava sendo disputada por alguns lobos famintos. Um bom desjejum.

Reiniciamos nossa jornada em busca da relíquia. Precisávamos absorver sua energia e levá-la ao Tártaro. As relíquias canalizam a fé e o desejo das pessoas, acumulando energia. Depois de algumas horas caminhando a intensidade dos raios solares nos castigava. Como ainda estava me recuperando meu ritmo não poderia se comparar aos demais, e acabei ficando um pouco atrás. Com o tempo passamos a ver pessoas seguindo o mesmo curso que nós. Caravanas também podiam ser vistas. Percebemos que estávamos no caminho certo aproximando-nos do nosso objetivo.

Já podíamos avistar a vila ao longe e com a proximidade, a quantidade de peregrinos mais que dobrou. Razus se aproximou de um deles, um velhinho que andava com dificuldade.

– O senhor já viu a relíquia?

– Ainda não, mas dizem que ele emite uma luz intensa e basta um olhar para que fiquemos curados! Falou o velhinho, cheio de entusiasmo e esperança.

Razus parou. Moratus se aproximou para saber o que o velhinho havia dito que o deixou tão espantado.

– A relíquia é uma pessoa… concluiu Razus, ainda incrédulo.

Moratus recebeu a informação com bastante surpresa. Não esperávamos nos deparar com isso. Moratus deduziu que os celestiais também deveriam ter interesse pela relíquia, ou melhor, pelo humano.

Começamos a caminhar com mais afinco, a fim de chegarmos logo à pequena vila. Ainda sentia dores e isso comprometia de certa forma o meu ritmo. Com passos mais lentos, tive a chance de ver as pessoas se aglomerando, cantando e orando.

Aquele envolvimento coletivo me fez pensar naqueles que são menos favorecidos, e como um fio de esperança pode mudar a forma com que as pessoas veem o seu próprio destino.

Esperança…

A mim não resta mais esperança, apenas uma eternidade fadada ao exílio e a desgraça. Os pensamentos se foram e notei que todos pararam e se aglomeraram. Com a multidão, mal dava para ver o topo das humildes casas daquele pequeno vilarejo. Vi ao longe os meus companheiros e arrisquei um aceno em vão. Àquela distância não dava para ser notado em meio a tanta gente.

Todos estavam ali para ver a relíquia viva e nas maravilhas que poderia fazer. Subitamente algo mudou. Comecei a sentir presenças. Pela energia emanada, se tratavam dos celestiais. A princípio não os encontrei. Olhei para todos os lados até que avistei um deles. Os celestiais estavam aqui, infiltrados no meio das pessoas. Pouco depois de ter descoberto que os celestiais também estavam por perto a multidão começou a se agitar. A exaltação foi contagiante e um pequeno tumulto iniciou-se. O que parecia perder o controle logo se acalmou. Uma criança saiu sobre uma pedra cerimonial, sustentada por quatro sacerdotes. Iniciou-se uma espécie de procissão. A relíquia passava em meio ao povo que tentava tocar em seu corpo. Alguns tentavam afastar os mais exaltados, e pela energia que captei, eram os celestiais protegendo a criança. Todos diziam que se tratava de um novo messias e por isso, tocar poderia ajudar a obter curas.

Notei que a criança olhava fixamente, sem piscar, como se estivesse em transe, ignorando todos ao seu redor. Minha atenção estava voltada para ele e meu olhar acompanhava o seu percurso até que os olhos da criança encontraram os meus. O seu olhar penetrou minha alma. Não consegui desviar a minha atenção, estava preso à relíquia. A multidão seguiu o cortejo e acabei sumindo em meio a tanta gente, até que não consegui mais manter o foco na criança e neste momento despertei. Fiquei lá, parado, voltando à razão apenas quando Rogazul veio me levar ao encontro da nossa comitiva.

Desci a mão até o ferimento e para a minha surpresa, a enfermidade havia sumido. Estava curado!

Moratus se aproximou e exclamou:

– Precisamos capturar aquela criança!

– Como faremos isso sem chamar a atenção dos celestiais? Perguntou Razus.

– Vamos nos afastar e esperar o crepúsculo. Concluiu Moratus

Deixamos os limites geográficos da pequena vila esperando a noite cair.

Aquela noite não era como as demais, o céu estava sem nuvens e a lua não se fazia presente. Retornamos furtivamente à pequena vila e como Moratus deduziu, os celestiais estavam por lá. Um grupo de anjos estava reunido perto da casa da relíquia. Seria impossível nos aproximar sem sermos notados, e como poderíamos derrotá-los estando em desvantagem numérica?

Ficamos em posições distintas e Razus havia chegado mais perto dos celestiais conseguindo decifrar o que fora dito por eles. Os celestiais também pretendiam levar a criança. Razus completou dizendo que parte deles voltaria ao plano celeste e que em breve retornariam. Não entendemos porque o grupo se dividiu, mas para Moratus era chegado o momento.

Acontecendo exatamente como Razus nos alertou, acima dos anjos foi aberta uma fenda no firmamento e parte dos celestiais subiu, desaparecendo.

Rogazul disparou sua flecha acertando o seu alvo, não dando chances para o celestial. Ele caiu, inerte, sem vida. O corpo alvejado foi o estopim para que os demais anjos se dissipassem. Não havia alternativa a não ser investir contra aquele pequeno grupo de angelicais. Moratus se expos, prontamente dois celestiais avançaram contra ele. Antes de ser atacado, Moratus se libertou de seu avatar, revelando sua verdadeira aparência. Suas asas negras o davam um aspecto mais imponente e austero.

Executando um movimento ascendente, golpeou o primeiro anjo que ousou se aproximar. Com sua notável habilidade, o golpe foi certeiro, fazendo o anjo perder sua estabilidade de voo e cair. Com sua queda, Balaoth não teve muita dificuldade em terminar o serviço iniciado por Moratus. Sem defesa o anjo foi alvo de um golpe perfurante, o deixando fora de combate. O segundo anjo, se valendo dos segundos de distração de Moratus, o golpeou, fazendo o anjo caído ser projetado para trás. Cravando suas unhas no solo para estabilizar o seu balanço, Moratus impulsionou o seu corpo para frente, a fim de revidar o ataque. Sua corrida foi seguida com o arremesso de sua maça. O celestial conseguiu uma esquiva, com certa facilidade. Moratus sabia que aquele golpe não seria bem sucedido, apenas serviria como uma mera distração para sua progressão. Se valendo dos ínfimos instantes em que o celestial perdera o seu foco, se aproximou usando sua velocidade sobrenatural, se projetando sobre o anjo. Com as duas mãos apoiadas em sua cabeça, uma em cada lada, com um movimento rápido descolou a cabeça do corpo. Planando no ar e segurando o seu troféu pelos cabelos exibiu para o restante da comitiva angelical. Um raio cortou o ar naquele momento, deixando aquela cena mais soturna.

Moratus lançou um olhar sobre mim, e com isso o momento de capturar a relíquia havia chegado. O tempo era curto, há esta hora o Shamayin já tomara conhecimento de nosso ataque. O restante de nosso grupo ficou segurando a atenção dos celestiais, abrindo espaço para eu agir. Precisava capturar a relíquia e conduzi-la para o portal que nos levaria ao Sheol.

Adentrei a pequena casa onde se encontrava a relíquia. Dois sacerdotes que zelavam pela criança sagrada investiram contra mim. Percebi que aqueles sacerdotes dariam a vida para proteger o notável. O primeiro se aproximou desferindo golpes com uma pequena faca, sem sucesso. Dava para perceber que não possuíam habilidade com armas. Não poderia hesitar e desferi um corte horizontal. O sacerdote caiu agonizando. O segundo não se abalou com o destino de seu irmão na fé e se projetou em minha direção. Este me parecia ter um pouco mais de noção do que estava fazendo, me obrigando a recuar alguns passos. Sem desistir da missão que foi dada continuou seu ataque, até que não me sobrou mais espaço para retroceder. Desferindo um golpe frontal pude desviar o corpo lateralmente, fazendo com que o sacerdote se chocasse contra a parede. Desnorteado em sua tentativa de ficar frente a frente comigo não tive dificuldades em perfurar seu peito. Um golpe certeiro. Sua expressão de dor deu lugar ao olhar vazio. Suas pupilas dilataram e percebi que o seu espírito havia feito a travessia.

Com a morte dos sacerdotes, voltei minha atenção para a criança que se encontrava atrás de um véu. Ele estava passivo a tudo que acabara de acontecer naquele pequeno casebre. Aproximei-me lentamente e com um movimento delicado, rasguei o tecido, revelando aos meus olhos, com mais nitidez, uma criança com expressões tímidas. O seu olhar estava fixo em mim e a recordação do cortejo veio à mente. Retirei do bolso uma corda, para amordaçá-lo. A criança fitou a corda e voltou a me encarar, tudo isso no mais absoluto silêncio. Mesmo sabendo que lá fora meus companheiros estavam em luta contra os celestiais, aqui dentro o mundo exterior não tinha relevância. Não tive forças para concluir minha missão. Soltei minha espada, que ainda estava embebida em sangue. A lâmina ao tocar o chão emitiu o seu som característico, mas que naquele instante parecia não se propagar.

O notável começou a se mover, deixando o seu santuário e caminhando em minha direção. Não tive outra reação, a não ser recuar. Um recuo tímido, mas o suficiente para deixarmos o casebre. O combate estava em seu ápice, Moratus, Rogazul, Razus e Balaoth continham o ímpeto dos celestiais. A comitiva celeste estava perdendo suas forças. Olhando timidamente para o lado, pude ver alguns corpos no chão, outros sobre os telhados. O que parecia caminhar para mais uma missão bem sucedida teve um desfecho inesperado.

A relíquia estendeu o braço, tocando o meu rosto. O seu toque era quente, senti um calor incomum na pele. De seus olhos surgiram lágrimas e para a minha surpresa ele falou:

– Estou ouvindo o clamor de seu coração. Sua dor um dia chegará ao fim, mas antes do dia derradeiro, escudos quebrarão, espadas tilintarão e a morte caminhará entre vós.

Aquelas palavras penetraram minha carne. Prontamente caí de joelhos, sem forças e entregue a própria sorte. Moratus vendo tudo aquilo não acreditou em seus olhos. Mais acima o firmamento voltou a se abrir e raios cortaram o céu. Celestiais desceram e nos cercaram. Uma tentativa de fuga foi iniciada, mas não havia como fugir. Eram muitos anjos, todos armados e preparados para coibir qualquer investida. Continuei ali, imóvel e passivo. Não me importava com o que poderia acontecer.

Um grande ribombar ecoou e um clarão transformou o que era noite em dia. Miguel estava entre nós, com toda a sua autoridade e desprezo pelos condenados. Caminhou entre os seus comandados e viu que muitos de seus irmãos estavam mortos. Imediatamente o seu olhar se voltou para Moratus, líder de nossa comitiva.

Alguns anjos conduziram a relíquia para longe, em breve ela seria levada para o Shamayim. Miguel acompanhou com o olhar todo o movimento, certificando-se que nada aconteceria aos seus, durante a trajetória.

Sua atenção voltou-se para nós. Ao se aproximar de Moratus falou:

– Vocês são tolos! A presença de vocês neste plano foi percebida desde o exato instante em que colocaram os pés aqui. Aquela criança, aos olhos dos homens, pode parecer santa ou milagreira, mas para mim, se trata de um celestial.

– Miguel continuou:

– Desde que Lúcifer excitou a grande revolta, que muitos outros após a Grande Guerra do Paraíso decidiram abandonar o céu. Para o Criador, um erro gravíssimo, pois não podemos deixar a Sua presença sem que tenhamos permissão para isso. Aqueles que deixam o plano celestial por livre escolha são considerados renegados. Iniciamos uma busca incansável por eles. A presença deles neste plano sem um propósito específico corrompe a criação e altera o curso natural dos eventos. Não podemos interferir no destino dos homens, a não ser que Deus nos permita. Esta relíquia, como os humanos preferiram chamá-la, não passava de uma criança inocente que acabou dividindo o mesmo corpo com um celestial renegado. O anjo, na tentativa de camuflar sua presença se fundiu à criança. Sua consciência estava rivalizando com a dela. Caso não chegássemos a tempo, a criança seria apagada, e o celestial viveria uma vida terrena comum. Nunca mais seria encontrado. Só o achamos por que a criança de uma forma ou de outra resistiu bravamente. A levaremos para o Shamayim, faremos a separação. A criança retornará a este plano, mas em uma nova vida, em outro lugar e certamente com um novo destino.

Moratus, tentando se desvencilhar dos braços que o seguravam bradou:

– Por isso abandonamos a servidão! Optamos pelo livre arbítrio!

– Não… Vocês optaram pela morte!

Prontamente, Miguel desembainhou sua espada que começou a crepitar. A espada flamejante de Miguel cortou o ar em um movimento ágil. Sua trajetória deixou um rastro de luz selando o seu curso nas asas de Moratus. As duas asas foram ceifadas. Um grito de dor eccou pela Terra.

Moratus foi jogado ao chão, o que restou de suas asas, queimava, proporcionando uma agonia que fazia o grande guerreiro, agora vencido, se contorcer de dor.

Razus, sem se conter conseguiu se desvencilhar e investiu contra Miguel. Sua iniciativa desesperava foi em vão, pois a mesma espada que dilacerou as asas de Moratus separou a cabeça de Razus de seu corpo. Rogazul e Balaoth nada fizeram, aceitando a derrota. O que poderia ser também o destino do restante de nós, surpreendentemente não aconteceu.

Quando voltei à razão, a relíquia não se encontrava mais diante de mim e nossa missão havia falhado. Moratus estava vencido e humilhado, Razus estava morto e os demais, impotentes. O olhar de Moratus me fuzilava de longe. Para ele, fui o culpado pelo nosso fracasso e pelo seu destino infeliz. Os celestiais apagaram os vestígios de tudo que havia acontecido naquela noite.  Fomos conduzidos ao local onde ficava escondida a passagem que nos conduziu ao plano físico. Retornamos ao Sheol, humilhados e derrotados. A passagem foi lacrada pelos celestiais. Achei que a fúria de Miguel ceifaria nossa existência naquela noite, mas fomos reconduzidos ao calabouço.

Moratus perdeu suas asas e o seu orgulho. Elas nunca se regeneraram. O seu ódio por mim alimentou o seu ser, dando um novo objetivo a sua eternidade.

As palavras que foram ditas pela criança, nunca mais deixaram de reverberar em meu âmago. Nunca mais fui o mesmo, e o Sheol também não.


Fernando Raposo tem 40 anos é publicitário, ilustrador e escritor. Passou parte de sua vida no Rio de Janeiro e atualmente mora em Recife/PE.  Há mais de uma década trabalha como ilustrador. Em 2009, se tornou membro da SIB, Sociedade dos Ilustradores do Brasil. Recentemente terminou de escrever o seu primeiro livro de fantasia intitulado Hollen Anjo Caído. Além dos contos, pretende escrever uma sequência para o seu livro. A arte corre em suas veias!