O café sem açúcar, com angústia e frustração, para tirar da boca o gosto de álcool da noite anterior. Engole junto um comprimido que nem sabe mais para que serve. Na mesa, pastas espalhadas, uma injustiça em cada uma delas.Para garantir o mau humor, uma noite mal dormida. Só se lembra de alguns flashes de um pesadelo, tem a vaga lembrança de um homem, que ao mesmo tempo parece estranho e familiar.
Se alguém perguntar se comeu alguma coisa, terá uma resposta. Coloca a 45 no coldre, pendura o distintivo como um colar, o terno barato esconde a camisa amarrotada. Na cintura um velho revolver, o legado e a lembrança do seu pai.
A mão incomoda. Filho de policial, desde de pequeno aprendeu a dar porrada. Não é dor, apenas incômodo, uma coceira. Tenta se lembrar da noite passada: a vodka arquivou tudo.
Entra apressado pelo corredor da delegacia, sem se preocupar em responder a qualquer bom dia. Ao que parece, surge mais uma vítima, de um caso que está tentando resolver. As costas doem. Idade? Estresse?
A caminho da diligência, no carro, se olha no espelho retrovisor, para ter a certeza que estará minimamente apresentável para falar com uma testemunha.
Tenta revisar o caso, lembra-se das recomendações do seu pai. A ressaca dificulta qualquer pensamento. Não se lembra da última vez que esteve tão ruim assim. Os conhecidos da delegacia até brincam “Cara, quando você bebe se transforma em outra pessoa”. O que pode ter feito na noite anterior? Vasculha as páginas em branco da sua cabeça e no fundo de suas lembranças escuta o eco de um tiro.
Leva a mão até a arma, como um mantra repete as palavras do pai. “Vidas dependem de você.”
Farol vermelho. Três assassinatos. A primeira vítima foi jogada de um prédio, a segunda levou umas dez pauladas na cabeça, enquanto estava de bobeira em uma esquina, só sendo identificado pela arcada dentária. A terceira levou uns bons socos, tentou fugir e acabou sendo atropelada. Os policiais nem investigaram: acidente. Sem antecedentes, a ponta dos dedos era uma evidência de que fumavam um de vez em quando, mas nada que se compare a um viciado em pedra. Nesses, o policial dá uns tapas e deixa ir embora.
Em comum: Só o fato dos três garotos terem a mesma idade, 17 anos. Não se importa que digam que está perdendo o seu tempo. O que o preocupa e o perturba é esse pesadelo. Será esse pesadelo algum indicio da loucura? Que sempre mandava um cartão postal, de um local distantes e hoje vem bater na sua porta.
Buzina. Sinal Verde.
Em cinco minutos, conseguirá chegar à cena de crime: uma suposta quarta vítima. Abre o vidro e vê um senhor saindo alegre de um mercadinho.
– Que bosta, será que um dia eu vou superar isso?
Tira a arma da cintura, olha cada detalhe. É antiga, simples, dura e confiável. Nunca vai esquecer o dia em que a recebeu.
Seu pai era o típico policial da tv. Sorriso perfeito, uma dona de casa como esposa, tinha resposta para tudo e a confiança de todos. No jantar, contava orgulhoso como tinha sido o seu dia. Era como um seriado, aonde o mocinho prendia o bandido e fazia com que sentíssemos seguros, tendo a certeza de que o mundo é perfeito. Nunca ouviu uma história em que seu pai matou alguém. Não sabia como ele fazia, mas parecia que tinha controle de tudo.
E assim cresceu, fica até fácil descobrir o porquê se tornou policial. No primeiro dia em que foram trabalhar, só disse uma frase ao seu filho: “Vidas dependem de você”.
Trabalharam pouco juntos e ele logo se aposentou. Até brincou: “Deixo a cidade pra você cuidar, meu filho”. E entregou a sua arma. Engraçado, até hoje o filho não sabe se o pai usou aquela arma, só sabia que tinha um pedaço da alma dele nela.
Fazia o seu trabalho da melhor maneira possível, pensando que estava contribuindo para o bem da sociedade.
Em um dia, pois é, aquele foi o dia. Em um mercadinho. Parecia ser uma chamada como outra qualquer “Idoso, alvejado por projétil de fogo, em um mercado na Frei Fidelis esquina com a Bonifácio Pessoa”. Chegou lá, estava tudo resolvido. Resolvido até demais. Não teve nem a chance de se despedir do seu pai. A última cena que viu, foi o seu rosto sem vida, caído no chão, com os olhos abertos e estáticos. Branco, um branco apavorante, como se a vida nunca o tivesse o tocado. Naquele momento percebeu que seu pai era uma pessoa comum.
O menor de 17 anos foi roubar o mercado e acabou se apavorando e a arma disparou. Pouco tempo depois foi cercado pela policia, não ofereceu resistência.
Olha agoniado e procura vingança pelo seu pai, leva a mão a sua arma. Vai deixar pra chorar depois. Encontra o garoto, ele está algemado, sentado no camburão. Nunca chegou a trocar uma palavra com ele, só olhou em seu rosto, por uns breves segundos. Viu uma criança perdida sem noção do que fez, que iria passar um poucos anos na prisão.
Até a raiva que tem por direito, iria ser negada? Aquele que tinha sido um modelo de vida, não iria te ensinar mais nada. Aquele que o fazia se sentir seguro, não existe mais. Manter o controle era possível?
Guarda a sua arma, vai na direção do garoto e dá um soco. A junta dos seus dedos ficaram inchadas por mais de uma semana. A corregedoria veio encher o saco, dizendo que a cartilagem do nariz foi completamente amassada, sendo necessário uma cirurgia, os ossos foram estilhaçados, alguns fragmentos foram parar na parte de trás do crânio. O uso de pinos na face foi inevitável.
De início pensou que tudo iria tomar o seu eixo e que continuaria o legado do seu pai. Com o passar do tempo pensou que o verdadeiro assassino fosse um traficante, que se esconde em vielas, ou casa, ou até mesmo em um luxuoso prédio. Descobriu que o verdadeiro assassino eram as vielas, as casas e até mesmo os luxuosos prédios. Eles são uma coisa só, são essa cidade. Essa cidade que suga a vida de todos, alimentada pelo crime e pela desigualdade e pela falta de oportunidade.
Agora sempre se pergunta “Recebi um legado ou uma maldição”?
Percebeu como sempre esteve vendado. Que tudo o que fez não valeu de nada e as coisas só pioram.
Coloca um ponto final em suas lembranças com o seguinte pensamento:
“Se soubesse que minha vida teria chegado a esse ponto. Se soubesse o que sei hoje sobre o crime e a cidade. Teria dado só um soco? Será que iria mais longe”?
Responde a si mesmo.
– As vidas dependem de mim. Que tipo de ser humano eu vou ser, se começar a colocar um fim nelas. Vamos lá, é só mais um assassino que tem que ser preso.
Chega a cena do crime, a área está totalmente isolada. Fala com os responsáveis do IML e pede uns minutos. Não tem mais nenhuma testemunha. Considera-se com sorte. Falar com as pessoas é a parte mais difícil do seu trabalho.
Precisa ter paciência, a cena do crime é como um livro. Ele pode contar tudo, ou não contar nada, basta você saber lê-lo. Segue o mesmo padrão, jovem de 17 anos, sem antecedentes criminais, praticava pequenos furtos. Desta vez o assassino utilizou uma arma de fogo, um tiro bem no meio da cabeça. A mancha de sangue seco fica ao redor do chão, onde o corpo está deitado. Abre o saco preto e olha para o rosto do garoto e logo tem uma dor de cabeça. Imagens invadem os seus pensamentos, ele fica tonto, precisa sentar e respirar.
Ele senta, as imagens ganham vida, tudo se encaixa como se fosse um quebra cabeça. Desconfia de algo. Tira a 45 do seu coldre, puxa o pente de balas:
– Graças a Deus não está faltando nenhuma .
Está cansado, não vai conseguir analisar nada hoje. Já está deixando a cena do crime e a arma na cintura o incomoda. Ele a tira, joga o canhão para o lado e o gira levemente. Descobre que tem uma bala faltando.
Saiba mais sobre o autor deste conto:
Wesley Nunes 25 anos, residente em São Paulo. Formado em Designer, atualmente cursando Pós Graduação em formação de escritores e critico literário.
Sempre fui um fã de historias, ainda mais quando elas nos são apresentadas em um universo fantástico. Peguei gosto pela leitura depois de velho. Hoje, só consigo dormir se tiver lido algo, uma pagina que seja.
Comprador compulsivo de quadrinhos, manga e livros.
Sonho em um dia que poderei exercer a escrita em tempo integral. No meu dia dia ela fica toda exprimida pelo trabalho, estudo e cansaço , mas mesmo assim ela persiste, e se mostra diante de uns contos ou crônicas
Autor do Livro Kriguerkan – O braço direito do rei o primeiro de uma saga.E dando os primeiro passos para escrever a minha segunda obra.