Conto inspirado pela obra “O Rei de Amarelo” de Robert W. Chambers
Diziam que aquele disco continha uma maldição e que todos que o ouviam perturbavam-se e jamais voltavam à normalidade. Em alguns causava imensa letargia, em outros, uma profunda depressão que culminava até mesmo em suicídio. Dentre os demais efeitos citados figuravam agitação, alucinações, e até mesmo assassinato.
Mas Jack sabia muito bem que diziam aquilo apenas para aumentar o preço do antigo vinil francês, ainda mais em tempos de turbulência econômica. Em sua caminhada de volta para casa, fez um desvio para passar pelo Central Park. O verde do local lhe transmitia uma paz muito grande, a sensação de ligação com a natureza era para ele uma experiência quase espiritual. Por isso gostava tanto de montar seu cavalete e pintar as belas paisagens contidas nos limites do parque. Seu apartamento, que ficava há uns dez minutos, guardava dezenas de telas, cenas do local ao amanhecer, à tarde e ao anoitecer. Pinturas com pessoas e animais se divertindo ou apenas com a natureza enchendo a tela, com diversas matizes de verde na primavera ou do marrom farfalhante das folhas secas no outono.
Hoje o parque se encontrava vazio, e ao caminhar retirou da sacola o disco amarelo que O’Malley lhe vendera a preço de ouro, mas que podia se dar ao luxo de comprar pois seu pai falecera há alguns meses e a herança já lhe pertencia. O pai, um exímio homem de negócios, administrara a empresa da família magistralmente durante a crise, pela qual passaram quase inatingidos. Com a morte do velho, recaiu sobre ele a responsabilidade de cuidar de tudo, algo que fazia a contragosto enquanto procurava alguém competente e confiável a quem designaria o cargo de diretor geral. Não possuía tino para os negócios mas não desejava ser o responsável por afundar o que o pai, e o avô antes dele, construíram com tanto esforço durante décadas.
O disco, com a capa de um amarelo vivo porém desbotado, trazia como única ilustração um estranho símbolo que apenas de se admirar causava um certo desconforto, como se algo lhe observasse ou como se prenunciasse, de maneira estranha e difícil de descrever, o conteúdo daquele vinil alvo de tantas histórias de loucura.
Histórias, nada além disso! Pensou Jack. Com certeza rumores criados sob medida para colocar o preço da rara obra nas alturas. O que o tornava ainda mais misterioso era o fato de que não havia qualquer nome do músico que o compôs ou gravou. Não havia, aliás, nenhum texto de qualquer teor, e o rústico vinil não possuía nenhum selo. Jack, como amante de música, via em seu formato e matéria-prima um produto de fabricação artesanal. Se existissem mais cópias, algo que ninguém sabia, deveriam ser pouquíssimas.
Chegou em seu apartamento ainda absorto pelo disco, colocou a pesada mochila que levava às costas sobre a mesa da cozinha e se dirigiu à sala de estar, onde encontrava-se sua amada vitrola. Havia saído da casa dos pais dois anos antes, quando o pai ainda vivia, após inúmeras discussões com ele a respeito de seu futuro, pois queria ser pintor enquanto o pai desejava que assumisse a empresa.
Deixou-os para provar a si próprio, e com as parcas economias, fruto da venda de algumas de suas pinturas, alugou aquele apartamento. Manteve-se com grandes dificuldades por alguns meses, vendendo poucos quadros, mas sem se deixar abater pelo desânimo. Foi quando conseguiu expor em uma famosa galeria e a partir dai suas vendas deslancharam. Hoje trabalhava dia e noite para atender a demanda crescente. Teve uma chance, para sua imensa alegria, de provar ao pai que podia viver de sua arte e para sua surpresa, o velho, cheio de orgulho, lhe deu comovidos parabéns.
Desde então reatou a relação com os pais, mas continuou no apartamento e vivendo do próprio dinheiro. Até hoje, apesar de ter a herança em mãos, não esbanjava. Antes mantinha o dinheiro num fundo de investimento de baixo risco e tocava sua vida, com simplicidade e fazendo o que amava, de vez em quando se permitindo pequenos luxos, como o disco amarelo.
Não acendeu a luz da sala. Gostava de apreciar um novo exemplar na penumbra, aguçando assim a audição e maximizando a experiência do primeiro contato com a obra. Fizera isso com todos os discos que possuía, coleção considerável que consistia de jazz, blues e música clássica. Nesse vinil não sabia o que encontraria, mas em breve saberia em que local das prateleiras deveria colocá-lo após a primeira degustação.
Posicionou o disco no aparelho e ajustava a agulha quando notou o forte cheio acre e adocicado que permeava o apartamento. Por certo vinha daquele terreno baldio ao lado, onde de tempos em tempos algum animal morto fedia daquele modo repugnante. Decidiu que na manhã seguinte iria dar uma olhada e acionar a prefeitura. O dono do terreno precisava dar um jeito naquilo, a sujeira e o mato alto resultavam nesse tipo de coisa. Na falta de produto mais apropriado, pegou um frasco de perfume e borrifou na sala para que o ambiente ficasse mais agradável.
Dando-se por satisfeito, abaixou a agulha no vinil e sentou-se na confortável poltrona em frente a vitrola. Sentia a típica excitação de não saber o que ouviria, magnificada pela natureza enigmática do disco. Após alguns segundos do agradável chiado, o som de um violino encheu o espaço, bastante harmonioso e belo apesar de notar algo de peculiar; algumas pequenas notas dissonantes aqui e ali e, ao fundo, pensou ouvir palavras sussurradas. Apurou os ouvidos e não lhe restaram dúvidas de que ouvia palavras. Era como se alguém lesse uma poesia ou texto ao fundo, enquanto que o som do violino, dominante, se apresentava mais a frente. Conseguiu entender pouca coisa, pois era difícil discernir a pronúncia e seu francês era bastante básico, mas o que ouviu parecia um tanto quanto estranho. Nomes de lugares que nunca ouvira antes e algo sobre estrelas negras e sóis gêmeos. Sua atenção foi presa inexoravelmente e o final do primeiro lado culminou num alto acorde dissonante e agudo que o pegou de surpresa, quase o derrubando da poltrona. Nisso uma sensação irracional se insinuou em sua mente, e ele teve vontade de guardar o disco e não terminar a audição, mas acabou desconsiderando aquilo como bobagem e virou o vinil. Jamais havia começado a ouvir uma obra e parado na metade, o ato de consumir música nova sempre lhe fora sagrado, algo para ser feito do começo ao fim sem interrupções.
Foi isso que mais o irritou quando, antes que pudesse iniciar o segundo lado, ouviu batidas em sua porta. Estranhou que alguém o procura-se, os amigos que o visitavam não apareciam sem se anunciarem com antecedência, e nunca teve contato com ninguém do prédio. Um tanto impaciente, abriu a porta para dar de cara com o senhor que morava em frente, que conhecia de vista e com quem trocara apenas cumprimentos rápidos. O homem, já idoso, por volta de 80 anos, sempre aparentou ser muito forte e vigoroso, mas essa noite estava encurvado, com o cabelo desarrumado e grandes bolsas sob os olhos.
“Em que posso lhe ajudar?” – Disse Jack, desconfortável com a figura em sua soleira.
“De novo, de novo esse disco maldito! Tire isso meu filho, estou ficando maluco! Já não durmo, já não como, só vejo ele, só ele a me perseguir!” – Falava o velho apressado, respirando rápido, com desespero nos olhos.
Jack se assustou com essa demonstração clara de senilidade. O senhor que parecia tão viçoso e lúcido, a despeito da idade, fora pego pelas garras imperdoáveis do tempo, que apesar até o momento ter lhe poupado o corpo havia enfim clamado sua mente.
“Se acalme senhor, esse disco é novo, estou ouvindo pela primeira vez. Por favor volte para casa.”
“Novo nada! É antigo, já o ouvi muito, mais do que posso suportar! Chega, chega!” – Gritou o senhor, sendo tomado pela ira e erguendo a bengala para atingi-lo.
Pego de surpresa, Jack aparou o golpe, prometeu em falso que não escutaria mais música naquela noite e escoltou o senhor até seu apartamento.
Retornou então à sua sala e aguardou por vinte minutos enquanto comia um lanche preparado de forma rápida. Terminaria a primeira audição interrompida e no dia seguinte ouviria novamente por completo. Resolveu esperar, pois talvez o vizinho dormisse e não mais o importunasse.
Voltou então a se sentar e colocou o disco para tocar de novo, sendo absorvido por completo. Sua expressão, antes de curiosidade, logo nos primeiros acordes mudou para outra de espanto, que seguiu se alterando no decorrer da música para outra de horror e por fim por um olhar perdido e vazio, mirando a parede da sala mas sem nada ver, abraçando os próprios joelhos e balançando devagar.
Pouco depois do final, levantou-se com expressão alterada de decidida calma. Com muito cuidado e carinho, guardou o disco em sua capa e colocou-o sob a mesa de centro. Pegou a mochila que havia abandonado ao chegar e levou-a até o próprio quarto. Abrindo o zíper do compartimento principal ergueu pelos cabelos a cabeça de um mendigo de meia idade, e escancarando a porta direita do guarda roupa colocou-a junto às demais que erguiam-se numa pilha disforme de carne putrefata.
Despiu-se devagar e de outra porta retirou um manto amarelo imaculado e perfumado, que vestiu cerimoniosamente e, ignorando as batidas insistentes do velho inconveniente que havia retornado a sua porta, continuou com seus afazeres. Foi ao seu quarto e acendeu a luz, iluminando diversos quadros pendurados e apoiados nas quatro paredes, todos eles pintados em diversos tons de amarelo e preto, mostrando o mesmo emblema da capa do disco misterioso. Exibiam ainda cenários tenebrosos de mundos estranhos, com grande lagos, luas esquisitas e estrelas que brilhavam negras no firmamento. Em local de destaque apresentava-se a pintura de um ser macabro, com uma mascara branca disforme, um manto amarelo aos retalhos e uma coroa.
Dirigiu-se à uma cômoda próxima e pegou um pingente de ouro puro no formato do emblema amarelo, pendurando-o no pescoço com reverência.
Virando-se para o quadro do rei, gritou a plenos pulmões:
“Salve o rei de amarelo!”
Preparava-se para gritar outra vez quando um grande estrondo veio de sua porta da frente. Saiu correndo e se viu cara a cara com dois policiais a postos, invadindo seu lar. Outros moradores do prédio, alarmados pelo barulho do velho e também incomodados e com suspeitas a respeito do fedor fortíssimo, que durava muito tempo para vir do terreno ao lado como muitos suspeitavam, acionaram a polícia.
Os policiais, estupefatos pelas vestimentas do homem, apontaram as armas para ele que com destreza levou a mão direita ao pescoço e cortou a garganta com uma pequena adaga, num movimento rápido e forte, o qual transformou suas últimas palavras num terrível som indecifrável:
“Parto para Carcosa, para servir na corte do Rei de Amarelo!”
Fonte da imagem: La muerte toca el violin