Por Jefferson Pessoa
Sabe o cara do sinal? Lembra-se do rapaz que cata lixo? Eles um dia também estudaram numa escola como a sua. Tá bom; talvez não tão parecida com a sua. Naquele tempo o lanche não era tão gostoso quanto o seu e a farda tampouco tão boa quanto a que você usa hoje. Mas com certeza naquele tempo já tinham bons professores, assim como você tem. Bom, e por que eles estão fazendo o que fazem? Com certeza catar lixo ou pedir esmola não era o sonho deles. Isso talvez nem sequer passasse pelas suas cabeças! Você com certeza tem sonhos, planeja, prepara, se prepara e pensa no seu futuro. Talvez queira vestir-se de branco e ser chamado de doutor.
Talvez queira proteger as pessoas em nome da lei, ou quiçá ser um engenheiro, um psicólogo ou astronauta. Lembra-se do cara do sinal? E do rapaz que cata lixo, ainda lembra-se dele? Eles também tinham sonhos. Talvez o moço do sinal fosse bom em física durante o colegial e sonhasse em ser professor. Talvez o catador de lixo fosse um dos melhores em matemática em sua classe, e quisesse ser engenheiro. Mas talvez, como você, ambos tivessem muitos amigos e gostassem de sair pra se divertir. Talvez o moço do sinal tivesse potencial, mas conversasse demais durante as aulas e preferisse deixar pra estudar em casa, com mais calma, mas talvez nunca estudasse.
Talvez a mãe do moço do sinal sempre lhe dissesse: “Você é muito bom meu filho, mas se, se esforçasse mais, poderia ser melhor”, e ele simplesmente risse e deixasse para lá. Talvez iam mal nas provas por conta de pouco estudo ou talvez da ausência completa dele. Sempre adiando o dia de estudar, por pura preguiça, talvez nunca estudassem de verdade. Talvez o rapaz do sinal sempre fosse bem nas provas de física mas fosse mal em gramática e literatura por que talvez detestasse ter que estudar sobre as escolas literárias e regência verbal. Talvez o cara que cata lixo só fosse bem nas provas de matemática por sempre deixar pra estudar para as outras provas apenas de última hora e talvez ainda assim não estudasse. Talvez preferissem jogar bola a estudar e talvez achassem que iriam ser jovens para sempre, e poderiam curtir a vontade e no momento certo teriam tempo para estudar e se preparar para o futuro.
Mas agora não era o momento para isso. Talvez se achassem tão bons que não passaram no vestibular por não estudarem o suficiente, se confiando que com certeza passariam. Mas não passaram. Talvez os pais do cara do sinal tenham falecido e ele tenha sido forçado a deixar de estudar para o próximo ano de vestibular e ir trabalhar pra não morrer de fome. Um amigo descolou uma vaguinha de garçom num barzinho de esquina e ele topou. Foi lá que ele começou a beber até que foi expulso e por consequência perdeu o dinheiro do aluguel e foi despejado. Viciado em álcool, caiu nas drogas e foi parar no sinal para pedir esmolas.
Talvez o moço que cata lixo tenha engravidado a namorada durante a adolescência e entrado em depressão por não ter trabalho pra sustentar o filho, por não ter passado no vestibular e por ser jovem demais para arcar com o peso de ser pai. E foi assim que conheceu o álcool e começou a fumar. Foi expulso de casa, fazia um bico ou outro pra mandar algum trocado para o filho que morava com a mãe, bem longe dele. A namorada o tinha deixado após ele entrar no mundo das drogas. Foi de bico em bico que ele conseguiu o trabalho como catador de lixo com um conhecido.
Hoje ele não pensa mais em ser engenheiro, talvez nem se lembre mais das equações que ele tanto adorava durante a sua adolescência. Faz tanto tempo. Hoje ele só pensa em deixar o vício do álcool pra poder economizar dinheiro e mandar um pouco mais pro seu filho que hoje mesmo está completando 12 anos e nunca viu o pai. Talvez tivesse sido diferente. Olhando agora para o rosto do cara do sinal, você acha mesmo que ele tem cara de professor de física. Se o destino dele tivesse sido diferente, talvez ele fosse seu professor hoje. Talvez tivesse sido diferente. Talvez eles pudessem ter feito muita diferença no rumo da humanidade, talvez tivessem feito descobertas que outros físicos e matemáticos nunca tiveram feito.
Quem poderia saber? Sim. Talvez tivesse sido diferente. Eu queria que tivesse sido diferente. Você também queria? Mas não foi. Um dia como outro qualquer na sua coleta de lixo, ele separou do meio de todo aquele lixo diário, um item especial. E com ele em mãos, pela primeira vez em muitos anos, ele se permitiu sorrir olhando pro objeto em suas mãos. Era um livro de matemática.