[Devaneios] Aliança Traidora

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Por Lucas Rafael Ferraz
lost-wedding-ring_weDia gélido. Dia em que a respiração se condensava visivelmente fazendo parecer que todos fumavam sem parar. Dia em que o vento cortante colocava as golas das jaquetas daqueles sem cachecol em posição vampiresca. Mas o pior eram os pés. Seus pés, ainda que com grossas meias, pareciam congelados e não se aqueciam por nada. Como alpinistas mortos de hipotermia, para sempre duros de frio.Agradeceu aos céus pela chegada do fretado, que estaria quentinho e aconchegante. O motorista deixaria o ar condicionado no mínimo, apenas para circular o ambiente viciado, e ninguém abriria as ventoinhas sobre as cabeças. Entrou, se sentou, e dez minutos depois precisou tirar a grossa jaqueta que usava. Um pouco mais tarde mesmo a fina blusa de lã foi removida. O ambiente estava confortável e a temperatura agradável.Guardou a blusa de lã na mochila e colocou- a no porta bagagem acima do banco. Dormiu. Dormiu mais do que de costume. Aproveitando que o banco ao lado estava vago, se enrolou em posição fetal e desmaiou. Teve sonhos confusos dos quais depois pouco ou nada se lembraria, e ao despertar, já próximo de casa, pegou suas coisas e se dirigia para frente do ônibus quando deu por falta da aliança. Observou boquiaberto o dedo pelado, apenas com a leve marca onde deveria estar o anel.Sentiu o frio na barriga típico que vinha quando algo dava muito errado. Ou, mais precisamente, quando fazia alguma trapalhada épica. Desesperadamente se livrou de mochila e blusa, colocou tudo num canto e começou uma frenética busca. Procurou no banco e em todos os vãos do estofamento. Olhou no chão ao redor, e checou todos os bolsos. Nunca tirava a aliança, não havia porque estar num bolso, mas o fez assim mesmo. Sem resultado. Seguiu com o ônibus até a garagem onde ele, um amigo e o motorista fizeram uma varredura completa.

Deitaram no chão e percorreram todo assoalho com o olhar. Verificaram a geladeira de água ao fundo. Talvez tivesse caído lá dentro ao pegar um copo mais cedo. Reviraram o banco novamente, até terem certeza que nada se encontrava nos esconderijos de suas reentrâncias. Sem sinal. Também não estava no porta bagagens. Lembrou-se de ter usado o banheiro, mas lá não havia nada, nem mesmo no lixo.

Mas que porcaria! Tinha fugido, a danada da aliança. Escapara do seu dedo e se lançara ao mundo. Já havia lido isso em algum lugar, mas sabia que na verdade era tudo culpa do frio. Sempre que estava frio, seu dedo anelar se afinava ligeiramente, e a aliança escorregava com facilidade. Tinha caído dessa forma, sabe-se lá onde. Olhando o chão mais uma vez notou umas grades que davam no bagageiro abaixo.

E lá foram eles. Desceram do ônibus e, bagageiro aberto, se enfiou em seu interior e vasculhou o local. Nada. Já estava quase se conformando em chegar em casa e contar a mulher sobre a perda. Não seria legal. Jocosamente o amigo lhe ofereceu o quarto de hóspedes para aquela noite.  Não lhe pareceu uma ideia tão ruim.

Duvidava que ela fosse acreditar que perdera o anel enquanto dormia. Ia levar cara feia por semanas, e cinco anos depois, numa discussão não relacionada, ainda seria lembrado da perda. Certeza. E posteriormente teria que comprar outra. Mas não só a dele. Claro que não. Iam aproveitar para trocar o par, obviamente. Ô dureza.

Sem qualquer esperança, resolveu verificar na mochila, afinal tinha guardado uma blusa nela. Tirou tudo de seu interior, agasalho, guarda-chuva, carteira e caderno, e lá no fundo, escondidinha e brilhando sob a luz do celular estava ela, a safada! Foi invadido por um alívio gigantesco quando a recolocou no dedo, pensando se não seria mais seguro pendurá-la numa corrente em volta do pescoço. Mas não. A esposa não ia gostar.

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