Autor: Moacyr Scliar
Edição: 1ª
Editora: Companhia das Letras
ISBN: 9788535904598
Ano: 2004
Páginas: 233
Sinopse:
No interior do Rio Grande do Sul, na pacata família Tratskovsky, nasce um centauro: um ser metade homem, metade cavalo. Seu nome é Guedali, quarto filho de um casal de imigrantes judeus russos. A partir desse evento fantástico, Moacyr Scliar constrói um romance que se situa entre a fábula e o realismo, evidenciando a dualidade da vida em sociedade, em que é preciso harmonizar individualismo e coletividade. A figura do centauro também ilustra a divisão étnica e religiosa dos judeus, um povo perseguido por sua singularidade.
Guedali cresce solitário, excluído da sociedade, e o isolamento o leva a cultivar o hábito da leitura. Inteligente e culto, é ele quem conduz a narrativa, feita a partir do dia de seu 38° aniversário, comemorado entre amigos num restaurante de São Paulo.
O centauro rememora sua vida desde o nascimento em Quatro Irmãos, passando pela juventude em Porto Alegre, onde se casa com Tita – também centaura -, até chegar ao Marrocos, onde o casal vai tentar um cirurgia que os transforme em pessoas normais.
Depois de inúmeros percalços, Guedali acaba voltando para São Paulo e o desenlace desconcertante de suas lembranças completa com profundidade essa narrativa provocadora.
Análise:
Meio cavalo e meio humano. Nem de um mundo, nem de outro. Um animal ou um homem? É nesse dilema e suscitando perguntas como essa, que “O Centauro no Jardim” inicia. Assim nasce o misterioso Guedali, um centauro – criatura metade cavalo e metade homem.
…Os gritos cessam. Há um momento de silêncio — meu pai levanta a cabeça — e logo um choro de criança. O rosto dele se ilumina:
— É homem! Aposto que é homem! Pelo choro, só pode ser homem!
Novo grito. Desta vez um berro selvagem, de horror. Meu pai se põe de pé, num salto. Fica um instante imóvel, aturdido. E corre para o quarto.
A parteira vem-lhe ao encontro, o rosto salpicado de sangue, os olhos arregalados: ah, seu Leão, não sei o que aconteceu, nunca vi uma coisa dessas, a culpa não é minha, lhe garanto, fiz tudo direitinho.
Meu pai olha ao redor, sem compreender. As filhas estão encolhidas num canto, apavoradas, soluçando. Minha mãe jaz sobre a cama, estuporada. Mas o que está acontecendo aqui, grita meu pai, e é então que me vê.
Estou deitado sobre a mesa. Um bebê robusto, corado; choramingando, agitando as mãozinhas — uma criança normal, da cintura para cima. Da cintura para baixo: o pelo de cavalo. As patas de cavalo. A cauda, ainda ensopada de líquido amniótico, de cavalo. Da cintura para baixo, sou um cavalo. Sou — meu pai nem sabe da existência desta entidade — um centauro. Centauro. (Pág. 12)
Originalmente publicado em 1980, “O Centauro no Jardim” começa com Guedali (protagonista) no restaurante tunisiano Jardim das Delícias, comemorando seu 38º aniversário, onde o próprio narra sua história.
Guedali Tratskovsky conta que nasceu no seio de uma família judia de imigrantes russos; e devido sua condição, era mantido escondido, como um segredo sujo.
A narrativa corre bem, o suficiente para instigar o leitor a virar cada vez mais as páginas, uma vez que a leitura é dinâmica e divertida. Scliar mistura realidade e fantasia, sem abusar, de forma magistral, dando um ar de que aquilo realmente poderia acontecer (ou ter acontecido). Os personagens são incríveis, muito bem construídos dentro do que a narrativa propõe; destaque para Tita e para o próprio Guedali. Os diálogos são adequados e igualmente verossímeis.
Moacyr Scliar usa a metáfora do centauro de forma para melhor se discutir o preconceito e todos os conflitos internos e externos, leia-se, psicológicos e sociais, que este, carrega para a vida em sociedade. Tendo Moacyr Scliar abordado em diversas de suas obras a imigração judaica e coisas relacionadas ao tema, não é de mal tom imaginar que o simbolismo usado nessa obra seja um pano de fundo para tratar da questão do homem judaico imerso numa sociedade intolerante (seja consciente disso ou não).
Ademais, o drama vivido pelo protagonista, nada mais é que o drama vivido por todo ser humano: a busca do ser humano por sua essência, por sua verdadeira faceta.
Considerações finais…
“O Centauro no Jardim” é uma obra-prima da literatura brasileira O livro reflete diversos assuntos, passando por seus pormenores, de forma simplista e discreta, sem maiores alardes e apelações. Aos poucos o leitor entra em Guedali, assim como Guedali entra no leitor. No fim do livro, não há mais Guedali, nem leitor, há uma coisa só, que sofre junto e se alegra junto. É um livro reflexivo e pesado pela sua conotação social, mas ao mesmo tempo aventureiro, para quem preferir. Um livro que tanto exerce papel de catalisador, como de entretenimento.
Nota: O título “O Centauro no Jardim”, provavelmente veio como homenagem a um conto do autor e humorista James Thurber, chamado “O Unicórnio no Jardim”.