Onze minutos. A rede balança. Não de todo inesperado, pelo andar da carruagem, mas nada que prenunciasse a catástrofe por vir. Sentado no sofá, considerava morbidamente o prospecto previsto antes mesmo do jogo começar, mas sem qualquer preocupação ou tensão. Até gostaria de torcer pelo seu país, mas o time simplesmente não o havia cativado ou emocionado, apenas apanhado e jogado mal.
Estranho, pensou, que sequer parasse para assistir a um jogo de futebol inteiro, coisa inimaginável em qualquer outra ocasião. Não gostava de futebol. Não que odiasse, mas simplesmente não conseguia entender o fanatismo e a paixão com que as pessoas comentavam sobre o jogo da última quarta-feira, e as brincadeiras e chacotas, intermináveis e irritantes, que invariavelmente se seguiam.
Além do mais não tinha paciência para ficar uma hora e meia vendo vinte e dois marmanjos correndo atrás de uma bola, não quando tinha tantos livros, HQs, seriados e filmes para ler e ver. Com tanta coisa melhor para consumir, parecia-lhe uma perda de tempo injustificável. Mas não tinha sido assim desde sempre.
Sabia que, quando criança, torcia para algum time, apesar de não conseguir se lembrar com clareza qual era e quando perdera o interesse. Sequer se recordava de ter visto algum jogo na infância. Sua memória daqueles tempos não era das melhores, uma densa bruma se fechara sobre ela, através da qual enxergava apenas alguns vislumbres. A única certeza que possuía é que seu interesse se diluiu até sumir completamente, chegando ao ponto de se definir como afutebolístico sempre que alguém lhe perguntava para qual time torcia. Se divertia com o olhar de confusão do eventual interlocutor frente a essa resposta inusitada, e se justificava o melhor que podia ante a insistência quase indignada do porquê não gostar de futebol.
Mas as Copas do Mundo sempre lhe despertaram interesse, ainda que moderado. Talvez fosse a comoção que tomava conta da nação, o verde e o amarelo espalhados por todos os lados, camisetas, cornetas, bandeiras enfeitando casas e ruas pintadas com motivos patrióticos. Inevitavelmente via uma partida ou outra, e torcia pelo Brasil. Mas essa copa havia sido diferente, no sentido de que despertara um interesse muito maior, provavelmente devido aos horários, que proporcionavam maior facilidade para acompanhar os embates.
Gol! Retirado de seu devaneio bruscamente, via na tela da TV o replay da infiltração alemã na área e seu segundo gol, narrado sem empolgação e com audível preocupação pelo Galvão. Dois a zero. A situação piorava, mas ainda estavam em apenas vinte e três minutos do primeiro tempo. Muita água rolaria. Em um partida das oitavas que acompanhara no fretado, o jogo seguia aos treze minutos do segundo tempo de prorrogação quando chegou a seu ponto e desembarcou. Ao entrar em casa viu que cada time havia marcado mais um gol. Tempo tinha, faltava futebol.
E faltava empolgação. Nos últimos dias a torcida parecia mais animada e engajada na competição, mas ainda assim sua percepção lhe dizia que havia menos interesse por parte da população do que em copas anteriores, nas quais se lembrava de mais gente vestindo as cores da bandeira, de mais ruas enfeitadas, de muito mais carros com bandeirinhas. Dessa vez, a despeito do evento ser no Brasil, via menos decorações, no trânsito um carro em cada cem exibia capô e retrovisores embandeirados, e as críticas surgiam com grande frequência, tanto ao governo quanto à FIFA. Seria um reflexo dos protestos que fizeram tremer o país no ano anterior, haveriam tais acontecimentos despertado algum nível de consciência popular que se recusava a relevar tudo incondicionalmente e apenas curtir os jogos? Tinha suas dúvidas, mas talvez o gigante não houvesse adormecido completamente.
E mais um gol. Mal houvera tempo para qualquer tipo de recuperação, e aproveitando-se da confusão da zaga, lá vieram os alemães novamente, eles próprios desacreditando do que acontecia. De fato, ninguém acreditava no que se passava naquele tapete verde mineiro, todos desnorteados com o rumo inesperado da partida. Ele mesmo esperava uma derrota, mas uma disputada, com gols de ambos os lados, talvez até prorrogação. Está certo, ainda havia tempo, mas as coisas estavam claramente indo muito mal. Faltava algo, os jogadores esqueceram de amarrar o amor nas chuteiras. A Fernanda Takai tinha pedido tanto para fazerem isso. E os pequenos, que nunca viram o Brasil ser campeão? Não estavam jogando para eles. Muita sacanagem.
Esperava um jogo melhor. Aliás, esperava uma campanha melhor. Nenhum jogo havia sido bom. Ganharam dois jogos, mas não necessariamente jogaram bem. O México foi salvo por defesas espetaculares de São Ochoa, novo herói do país, e o Chile, ah, esse foi complicado. Quase eliminou o Brasil com uma bola no travessão que tirou o fôlego de toda nação. Um centímetro para a glória. Contra a Colômbia viu-se um brilho diferente, jogadas melhores, um time mais ágil e que fez o serviço. Até que um joelho encontrou uma vértebra. O grande craque saiu de maca, gritando em visível agonia, fora da Copa. Mas nem isso justificava a surra que a seleção levava nesse momento.
E gol. Ok, agora estava começando a ficar ridículo. Os três últimos gols foram marcados em quatro minutos. Quatro minutos! Três gols! Levantou-se do sofá, estupefato, e riu. Riu alto. O que mais restava fazer? A Alemanha ganhava por quatro gols de vantagem, a seleção jazia totalmente desestabilizada, o jogo estava perdido, sem dúvidas. Previa que alguns culpariam a ausência de Neymar, o que seria um impropério sem igual. Um time não se faz só com um atacante, e se fosse esse o caso nem merecia sem campeão. De qualquer modo os dois gols da partida anterior saíram dos pés de zagueiros.
Enquanto isso, o Twitter estava em polvorosa. Era olhar um lance na TV e checar os comentários na rede social. E comentar. O clima geral, ao menos de suas conexões, era de piadas e descontração, afinal, a exibição que todos assistiam só poderia incitar esse tipo de reação. Montagens surgiam com velocidade incrível, e piadas e trocadilhos, alguns medianos, outros geniais, arrancavam boas risadas. Mas nem deu tempo de navegar muito, ou de fazer sua própria corruptela de algum jingle dentre as dezenas que todos já sabiam de cor aquela altura, de tanto os ver tocar nos intervalos comerciais.
A Alemanha fechou o primeiro tempo com o quinto gol. O estarrecimento e incredulidade eram gerais. O Brasil perdendo de goleada, e em casa! Apenas recentemente compreendera a importância de se jogar em casa. Em sua ignorância e falta de interesse no esporte, nunca vira sentido naquele expressão. Que diferença faz o campo que um time está jogando afinal, que peso isso tem? Fazia até piada disso, com certa arrogância. Mas era algo que possuía um efeito psicológico nos jogadores, e grande. No intervalo, parte da torcida deixava o estádio. Na Vila Madalena, bairro boêmio da capital paulista, onde centenas vararam madrugadas na esbórnia em ocasião dos demais jogos da seleção, muitos já iam embora, e outros queimavam bandeiras.
Os mesmos que, quarenta e tantos minutos antes cantaram, a plenos pulmões, o hino nacional e ostentaram suas cores, agora punham fogo em sua flâmula, deixando claro que seu patriotismo não passava de hipocrisia, ou que haviam, em suas mentes, amalgamado de maneira indistinguível pátria e esporte, de modo que a derrota de um significava a destruição do outro. Algo triste de se ver. Mas o que esperar do povo que vaiara o hino de outra nação?
O jogo voltou, e agora, novamente no sofá, sua torcida pertencia a Alemanha, apesar do time nem precisar dela. Assistia com sorriso jocoso, rindo dos erros da seleção. Não mereciam menos, depois de tão patética atuação. Tivessem perdido com menor diferença, fazendo gols, disputando o jogo com vontade, e talvez até lamentasse a desclassificação, mas da forma como prosseguia o jogo, o desfecho era óbvio. E, ainda assim, não esperava tal conclusão para a partida.
Mais dois gols. Riu e aplaudiu. Por um momento quis estar no estádio junto à torcida brasileira, que, em uníssono, bradava o emblemático ‘olé’ a cada passe certo e drible alemão. Convenhamos, esse time merece, pensou, enquanto o massacre prosseguia. No final, o pequeno Oscar marcou melancolicamente o único gol do Brasil. Mas nem me venham falar em gol de honra, postava no Twitter ao fim da derrota canarinha. Honra é algo que esse time já perdeu irremediavelmente.