por Paulo Carvalho
A voz de lazaro não ecoou em meio ao nada.
– Que horas são? Eu dormi demais? Já é de manhã, ou ainda é de madrugada?
Ele começou a pensar em tatear pela parede a procura do acendedor, mas antes que concluísse o pensamento tudo se tornou claro a sua volta.
Merda!
Foi á única coisa que passou por sua cabeça, quando se viu em uma sala de espera feita somente de luz, sem paredes ou qualquer indicio de que aquilo fosse qualquer coisa além de uma sala de luz sem paredes.
Não havia edições de revista com dois anos de atraso, empilhadas em uma mesa, estrategicamente posicionada além do alcance do braço. Não havia um aparelho de televisão pequeno demais para se enxergar. Provavelmente não havia nada disso porque não existia chão para se posicionar estrategicamente uma mesa, nem paredes para se dependurar um aparelho de televisão platônico.
A única coisa indicando que aquilo não era somente uma sala de luz sem paredes, mas também funcionava como sala de espera, era a sensação inconfundível de hora marcada.
Então é assim que encontramos Lazaro. Completamente perdido, ignorante sobre seu estado, sem esperança de ser encontrado. Sem esperança de que quem o perdeu de por sua falta ou que pelo menos sinta que esta carregando menos peso que o normal nos bolsos ou na pochete. Ele pensou que talvez tenham percebido sim, mas nesse caso a prioridade se tornou atualizar o guarda-roupa. O tipo de coisa que sentia não precisar mais se preocupar. Talvez porque ele já tivesse alcançado um nível em que as pessoas estão “sempre chiques”, ou talvez fosse algo mais complicado.
Sem essas questões de moda para se preocupar, decidiu se preocupar com questões geográficas. Olhou para cima e para baixo mesmo não conseguindo diferenciá-los. Olhou para traz e para frente; pareciam iguais. Andou e pareceu não sair do lugar. Correu e pareceu não sair do lugar. Fez o moonwalker e pareceu não sair do lugar. Então pensou em voar, mas pensou melhor e decidiu que seria uma decepção insuportável voar e parecer não sair do lugar.
Mostrando um ponto de vista diferente, uma figura veio voando em sua direção. Parecia ser um homem normal exceto pelas asas. Era um homem de meia idade, baixinho e forte, com barba e cabelos castanhos, usando um uniforme militar aberto no peito. O rosto parecia familiar de uma forma nada familiar. O homem pousou bem a sua frente, não dando a mínima para a aparente inexistência de chão. Ele ficou lá imóvel, em cima do chão que parecia não existir ou se incomodar com isto.
Neste instante de tensão silenciosa, algumas perguntas cruzaram sua mente.
“Eu estou sonhando isso? Será que ele está sonhando isso? Será que eu deveria pedir um autografo?”
A figura trajando uniforme militar quebrou o silencio.
-E ai meu irmão, o quê que tu manda?- perguntou o soldado alado.
– Oi?-Respondeu Lazaro, engolindo seco.
– O quê que tu manda?- insistiu o homem, que insistia em falar.
– Oi?
– Oi, o que meu irmão, Tô te fazendo uma pergunta, tá sabendo?
– Sa-be-bendo o que?
– É isso que eu tô te perguntando. Se você soubesse, essa conversa não tinha necessidade. Saca?
– Acho que não.
E como se tivesse dito sim para o noivo, um sorriso surgiu no rosto do Boina verde aerodinâmico (Ele vai dizer seu nome logo para que não seja mais necessário inventar esses apelidos). Não era um sorriso gentil e acolhedor como seria se ele fosse o Rob Williams aerodinâmico, mas foi o melhor possível.
– O cara tá por fora ai, Não tá sabendo mesmo!
O cara voar era uma coisa, aquela barba era outra. E outra bem mais irritante era ele falar como um marginal de um filme americano feito nos anos oitenta.
– Não, eu não estou sabendo de bosta nenhuma, então por que você não me diz. Me diz quem é você e que porra de lugar é esse – ele gritou escondendo o medo embaixo da língua.
– Tá me sacaneando? Eu sou o Chuck Norris o cara mais barra pesada da área.
– O que?
– Chuck Norris, quer que eu soletre? Você quer saber onde você está? Eu te falo. Eu tenho todos os contatos por aqui. Mas a parada não é onde você está é como você está.
– Como assim?
– Você tá morto. Morreu… tá sabendo?
Como se estivesse andando de olhos fechados por uma calçada, Lazaro pisou em faço em um buraco que já esperava, mas não tão cedo.
– Como assim morto?
– Bateu as botas, foi pro saco, já era – completou Chuck, em um tom mais serio que antes.
– a bom!
Lazaro tentou desviar sua atenção momentaneamente para qualquer coisa que não fosse o rosto cheio de cicatrizes a sua frente. Ele se recusava a pensar naquela aparição como Chuck Norris mesmo que agora tivesse que reconhecer que ele parecia mesmo o Bradock.
-Coloca sua mão em frente à boca e assopra, você vai ver que não tem nenhum oxigênio – Chuck disse impaciente – Você não tá sonhando. Você tá morto. De verdade, meu chapa.
– Ok, eu vou me lembrar disso quando eu acordar.
– Então acorda logo. Fecha os olhos e acorda.
Sonhos esquisitos o perseguiram por toda sua vida. Então quando tinha oito anos, Lazaro criou instintivamente um método para lidar com isso. Ele se tornou capaz de simplesmente fechar os olhos e acordar automaticamente. Sempre funcionava.
– Então tenta meu chapa- disse Chuck Norris com ar desafiador, como se pudesse ler seus pensamentos.
Com ar de quem aceita um desafio respirou fundo, apesar de não sentir a presença de oxigênio ali. Concentrou-se e fechou os olhos.
Foi quase sem nenhum choque que ouviu o anjo com voz de marginal, explicar que Lazaro havia morrido dormindo aos vinte e cinco anos. Ouviu com apatia que sua morte havia sido tão apática quanto sua vida. Sem drama aceitou o fato. E quando o anjo lhe perguntou por que estava tão calmo agora, ele respondeu:
– A vida é como uma sacolinha de supermercado. Só vale o que você coloca dentro dela. Por si só não vale nada.
Chuck Norris levantou voo puxando Lazaro pelos braços. O toque do anjo em seu braço era suave. E apesar de não vento contra seu rosto, ele sabia que estava se movendo rápido. Sabia que estava voando e não era uma decepção, era divertido!
Uma sensação de paz futura, próxima e possível. A sensação de ter algo novo e bom para esperar. Era isso que sentia naquele instante.
Foi enquanto relaxava voando sobre o nada e o nada se distraia mergulhando sob ele sem ser percebido, que uma dúvida banal decidiu num acesso de grandeza ocupar sua mente (elas têm esta mania).
– Eu não ouvi falar da sua morte. Quanto tempo faz que você virou um anjo?
– Eu sempre fui anjo!- respondeu Chuck, intrigado.
– Mas você não era ator?
– Ah! Você acha que eu morri e virei anjo, não é?
– É. Não foi não?
– Não. Nós que fazemos esse trabalho de buscar vocês na sala de espera, aprendemos com o tempo que os desencarnados reagem melhor a essa parada de morte se a gente usar uma fisionomia e atitudes que vocês estão acostumados. Sacou?
– Saquei.
– A gente sacou que fica mais fácil pra vocês, se a primeira figura que vocês enxergam é um ídolo ou alguém que vocês admiram.
– Ah, tá.
Um sentimento que parecia estar sendo deixado para trás retornou furioso como um ex-marido que não pagou a pensão, recém-liberado da cadeia em uma segunda-feira. Era um sentimento familiar, tinha um quartinho nos fundos reservado para ele e um apelido carinhoso. Pode ir entrando!
Subitamente se tornou menos prazeroso para o nada mergulhar sob Lazaro. O vazio disse precisar de uma mudança de ares, e foi deixar de preencher outros lugares, bem longe dali.
Lazaro agora se via morto e apavorado, sendo guiado por alguém que nem sabe o que é medo. Alguém que está a milhares de anos luz de distância em todos os sentidos possíveis. Um ser que nunca odiou como ele, que nunca riu como ele, e com certeza nunca chorou como ele. Alguém que não conhece o homem. Alguém que pensa que ele é idolatra Chuck Norris!
Com toda essa revolta em seu coração, toda a apatia sentiu que estava sobrando ali. Escorregou rápida e sutilmente por uma artéria, tentando sair de fininho. Mas a artéria estava entupida, então a apatia teve que ficar lá encolhida se fingindo de morta. Enquanto as palavras de ÓDIO, que todo mundo sabe são escritas com a tecla “caps lock” ligada, se multiplicaram até estufa-la através daquela artéria bloqueada (fato esse que se ocorrido antes teria evitado a morte de Lazaro). Morto esse que agora via as coisas sob uma nova perspectiva.
“Logo agora que tudo estava indo tão bem!”, alguém pensou, em toda parte no universo.
Ele se soltou dos braços de Chuck. Com medo da queda ele fechou os olhos. Alguns segundos depois quando teve coragem para abrir os olhos, percebeu que não tinha caído.
– Uai, porque eu não caí?
– Caiu de onde? Tá maluco?
– Tanto faz. A parada é que eu não vou com você. Não vou pra lugar nenhum e ninguém vai me obrigar. E se você acha que é homem pra isso…
– Você tem que segurar sua onda- Chuck o interrompeu, com um sorriso – Livre arbítrio é a parada que rola por aqui. Se você quiser ficar aqui você fica. Vai quando quiser. Tá limpo.
Da última vez que se sentiu tão envergonhado, tinha nove anos e estava chorando dentro da sala de aula por pensar que tinham roubado a caneta de desenho que tinha ganhado do pai. Quando explicou para a professora o motivo do escândalo, ela perguntou se era aquela caneta presa na gola de sua camisa, e ele respondeu que sim. Era vergonhoso ser pego de surpresa e não conseguir inventar uma mentira a tempo.
-Então eu não sou obrigado a ir com você?
-Claro que não, se você quer ficar aqui, fica.
– Ok.
-Agente se vê, até mais. Com essa resposta Chuck desapareceu dentro da luz. E mesmo duvidando da existência de sua bunda e do chão, Lazaro se sentou e esperou.
Mesmo sem a existência de tempo, as horas pareceram passar. Mesmo sem a existência de tempo os dias pareceram passar. Os meses esperaram na fila pela sua vez de parecer passar. Os anos alegaram que era seu direito legítimo e inalienável parecer passar. E os séculos exigiram seu direito de parecer passar através de greve de fome e protestos de nudez. Já a revolta dos milênios o desgastou muito, e Lazaro prefere que não se comente essa derrota.
Enquanto o tempo não passava, ele teve muito dele para pensar sobre cada coisa que fosse possível pensar a respeito. Acabou percebendo que não tinha muita variedade, e se perguntando se estava variando.
Pensou sobre cada coisa quantas vezes foi possível. Enquanto os pontos de vista se alternavam e zig-zagueavam dentro de um círculo, todas as coisas ganhavam e perdiam importância dentro de sua mente. Vida e morte, tempo e remorso. Uma chance de felicidade que deixou escapar. Traições que sofreu e traições que cometeu. As escolhas que fez. Que escolhas fez?
Procurando uma distração ele enfiou a mão no bolso e achou seu celular. Todas as barras de sinal estavam cheias. Cobertura impressionante no mundo dos mortos. Ele tentou ligar para sua mãe, mas o que ouviu foi o seguinte.
-Bem vindo ao “Alô Senhor”, sua linha direta para falar com o criador- Disse a atendente eletrônica.
Lazaro se sentiu aliviado que depois de tantos acontecimentos estranhos e incômodos, este era somente incomodo.
–Para solicitações sobre um futuro melhor aperte um. Para louvar graças concedidas aperte dois. Para reclamações e dúvidas, aperte três. Para verificar possíveis reencarnações em outros planetas; aperte quatro. Falar com o criador; aperte cinco.
Ele apertou cinco.
–Jeová, neste momento está ocupado tenha fé e ele responderá o seu recado. Jeová, o ultimo a sair e o primeiro a entrar. Há mais de cem mil anos no mercado sempre, com tudo muito bem profetizado. Jeová, nesse a gente pode confi…
Uma voz que agrega todas as qualidades admiráveis do universo, uma sabedoria obviamente inalcançável, serenidade provinda da onisciência e firmeza da onipotência. Isso era tudo que esperava reconhecer naquela voz, do outro lado da linha. Foi tudo que não ouviu. Por que era sua própria voz.
A conversa mono vocálica durou as ultimas horas da existência. Lazaro reclamou e questionou tudo que havia ensaiado. Deus respondeu usando argumentos para os quais ele não tinha contexto, capacidade ou saco para compreender.
Lazaro reagiu com ofensas, chorando, mostrando o dedo e outros gestos e movimentos corporais. Deus respondeu com “Eu te amo, tu és meu filho”. Então Lazaro se acalmou, chorou um pouco mais e por fim agradeceu.
Quando estavam prestes a encerrar a ligação, ele se lembrou da suposição que havia começado tudo. Que Deus ou alguém em algum cargo próximo ao dele, acreditava que todo mundo na terra era fã do Chuck Norris. O que sugeria incapacidade de interpretar humor humano. Diferenciar admiração real de uma piada. Algo que seria difícil para um alienígena nos observando de um disco voador talvez, mas não deveria ser para Deus.
Depois de explicar tudo isso com eloquência, Lazaro fez uma sugestão. Ele sugeriu que Deus descesse a terra para passar uma vida como humano. Não um profeta ou um salvador, só um humano comum, sem nada de importante para fazer em sua vida.
Nenhum proposito, além dos que o homo sapiens regular pode encontrar. Alguém nascido de pais comuns, escolhidos aleatoriamente. Sem nada que pudesse chamar a atenção, seja fisicamente ou por sua personalidade. De preferencia alguém feio ele adicionou depois de pensar um pouco. E dessa vez, ele poderia ser uma mulher.
A vida teria que ser completa, até o fim. Sem crucificação ou subir ao céu. Ou qualquer outro plano de fuga, pra quando as coisas ficarem chatas demais. E por ultimo, quando você estiver lá, tente assistir algum filme do Chuck Norris.
Deus concordou com todos os termos, pediu um momento. Imediatamente desceu ao corpo de uma criança qualquer em um lugar qualquer.
Toda aquela vida passou e terminou enquanto Lazaro aguardou na linha por dez segundos. Então deus pegou o telefone de novo para dizer uma ultima coisa.
-Obrigado por ter aguardado, desculpe pela demora.
-Tudo bem.
– Eu entendo.
E foi o fim da criação.