Dirigido e estrelado por Ben Stiller, o filme “A Vida Secreta de Walter Mitty” (“The Secret Life of Walter Mitty”, 2013) foi apreciado pela maior parte dos espectadores. A crítica especializada, porém, qualificou o trabalho como pouco mais que mediano, uma vez que lhe faltaria a “substância” necessária a concretizar sua proposta ambiciosa. Supondo que essa afirmação se refira à simplicidade do roteiro – e discordando desde já -, deixo aqui minhas impressões sobre o filme, um dos mais belos e inspiradores a que assisti nos últimos anos.
“Walter Mitty” foi inspirado num conto do escritor americano James Thurber, publicado em 1939 no jornal “The New Yorker”(1). Considerado uma das obras-primas do autor, o texto conta as aventuras imaginárias de Mitty, um homem comum, aparentemente de meia-idade, que, enquanto desempenha tarefas tão prosaicas quanto fazer compras para a esposa, se imagina como um bravo piloto de navio, um cirurgião e até mesmo um assassino. Mais ou menos o que acontecia com o protagonista da série de desenhos dos anos 1990 “Bobby´s World”, de Howie Mandel, aqui conhecida como “O Fantástico Mundo de Bobby” (2). O sonhador do desenho, no entanto, era um menino de quatro anos, idade em que – ao menos em teoria – é mais “aceitável” ter a cabeça na lua, ao passo que de Walter Mitty se espera que esteja alerta e – no filme – capaz de responder a uma situação de grande pressão.
Antes de prosseguir, é bom lembrar que esta não é a primeira adaptação do conto de Thurber para o cinema. Em 1947, o produtor Samuel Goldwyn levou às telas uma versão em Technicolor, estrelada por Danny Kaye (3), na qual Walter Mitty se envolve com uma trama de espionagem, torna-se um agente secreto e acaba conseguindo se impor sobre um chefe aproveitador e uma mãe tirânica. Já a versão de Ben Stiller foge à solução fácil de transformar Mitty numa espécie de 007 (ou Agente 86): ela o apresenta, segundo o próprio site oficial do filme (4), como aquele sujeito que existe em vários escritórios, um cara que até parece legal e que todos cumprimentam com um aceno, mas com o qual ninguém se detém para conversar. A função que desempenha na tradicional “Life Magazine” – ele é o responsável pelos negativos, armazenados no subsolo – contribui para sua quase-invisibilidade, embora seu trabalho seja da maior importância para a revista.
Como bibliotecária – aquela pessoa que está por trás de toda grande pesquisa e que quase ninguém vê –, já deve ter dado para perceber o quanto me identifiquei com Walter Mitty. O ponto principal, porém, foi o fato de ele ser um sonhador, alguém cuja imaginação o leva a altos voos, ao passo que tem dificuldade para fazer frente às exigências do mundo corporativo e mesmo a se arriscar em alguma situação que vá além da rotina. Isso porque, mesmo antes de ser pressionado pelo cara asqueroso (Adam Scott) que foi contratado para acabar com a versão impressa da revista, Walter já havia renunciado a alguns de seus sonhos de juventude e se via em apuros para chamar a atenção de Cheryl, uma atraente colega de trabalho vivida por Kristen Wiig.
Em meio a uma onda de incertezas na revista e frustração em relação a Cheryl, um incidente no trabalho leva Walter Mitty a empreender uma longa jornada, passando pelos lugares e situações mais improváveis a fim de encontrar Sean O´Connell (Sean Penn), um fotógrafo que está sempre em movimento. Ele o faz de forma deliberada – afinal, não tem nada a perder -, mas muitas vezes cede a impulsos, jogando-se (literalmente) nos braços da sorte. O verdadeiro ponto de partida, já a muitas milhas de casa, tem como música de fundo a canção de David Bowie, “Space Oddity” (5), aliás uma sacada genial do filme: embora, a princípio, a comparação feita pelo “carrasco” da Life entre Mitty e o fictício “Major Tom” tenha o intuito de constrangê-lo, ela atinge um significado mais positivo ao se compreender a inadequação de Walter não como alienação e fraqueza, mas como algo semelhante à solidão que um astronauta sente no espaço. É preciso uma grande motivação para superá-la.
As transformações que se operam no personagem ao longo da viagem são evidenciadas de várias formas: ele adquire uma postura mais solta, (re)aprende a se conectar com as pessoas e, principalmente, deixa de usar sua capacidade de imaginação para fugir do mundo real. Sua viagem tem as características de um processo de cura interior, em que Walter resgata elementos da sua bagagem emocional (simbolizados pelo brinquedo presenteado pela irmã e pelo bolo feito pela mãe, que fora usado pelo chefe para ridicularizá-lo e acaba por conquistar a boa-vontade de um chefe tribal), redescobre dons e recursos interiores (como o skate, um elemento de ligação com o pai, que por sua vez serve para conectá-lo a seu possível futuro enteado) e até percebe, através do contato com o funcionário de um site de relacionamentos, que suas experiências o estão tornando uma pessoa mais interessante aos olhos alheios. E ao retornar, ainda que tudo pareça ter dado errado, consegue manter a cabeça erguida e se comportar com dignidade.
Assim, Walter completa o filme como um novo homem, mas – essa foi uma das coisas de que mais gostei – ele não precisa, para isso, se tornar um super-herói, agente secreto ou (mais uma solução fácil) aventureiro profissional, como o excêntrico e inalcançável Sean. Não precisa nem mesmo tirar os óculos, como Clark Kent. Não, o que ele precisa fazer é se reencontrar, reconciliar-se com a imagem que tinha formado de si mesmo e à qual estava resignado. Só assim toma as rédeas de sua própria vida, passando a prestar atenção na mãe e na irmã (Shirley MacLaine e Kathryn Hahn, ambas à vontade no papel), superando a perda do pai, fazendo-se entender por Cheryl e (finalmente!) dizendo ao yuppie imbecil o que ele precisa ouvir, sem fazer O Grande Discurso Americano, como eu temia, mas da forma simples, discreta e eficaz com que sempre realizou seu trabalho. Em outras palavras: a jornada de Walter não serve apenas para fazê-lo “ver o mundo”, mas sim para harmonizar o homem e o universo, o micro e o macrocosmo, como diz a antiga tradição.
Alguns críticos afirmaram que “Walter Mitty” é essencialmente uma espécie de apelo dirigido a pessoas de meia-idade para que se arrisquem a sair de sua rotina e se sintam felizes. Se for verdade, minha resposta é: espero que tenha dado certo, pois só isso já valeria a pena, contudo acho que o filme oferece muito mais. Como os poemas épicos e os contos de fadas, ele fala de uma longa viagem, mas deixa claro que o grande desafio de seu herói é regressar e saber agir de acordo com a nova perspectiva que adquiriu de si mesmo.
E, embora sem saber se Walter foi feliz para sempre, gostei muito de ver a coragem do “Major Tom” ao sair de sua cápsula.
Referências:
- Conto completo de James Thurber, em inglês http://www.newyorker.com/archive/1939/03/18/390318fi_fiction_thurber?currentPage=all
- Abertura da série O Fantástico Mundo de Bobby https://www.youtube.com/watch?v=djz2KpPcfxY
- A versão de 1947 com Danny Kaye http://en.wikipedia.org/wiki/The_Secret_Life_of_Walter_Mitty_(1947_film)
- Site oficial do filme de 2013 http://www.waltermitty.com/index.php
- “Space oddity” com cenas do filme: https://www.youtube.com/watch?v=ZrZlhD0Oeto&feature=kp